Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
14/03/2024 (Nº 86) ENREDAMENTOS VITAIS DA ARTE/EDUCAÇÃO AMBIENTAL
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ENREDAMENTOS VITAIS DA ARTE/EDUCAÇÃO AMBIENTAL



Giuliana Bazarele Machado Brunoi

Cláudia Mariza Mattos Brandãoii





Resumo: O presente artigo aborda reflexões sobre o papel das/os arte/educadores acerca do valor dos conhecimentos ancestrais, dos nossos povos originários. Com foco no contexto da educação escolar, enfatizando a escuta como meio de educar preservando e protegendo a memória e a identidade da Terra. Escolhemos pensar sobre algumas questões que encaminham os principais pressupostos para uma arte/educação ambiental, na tentativa de modificar uma visão cultural mercantilista e europeizante.



Iniciamos a reflexão pensando sobre a arte como experiência, e de como nós, arte/educadoras, temos um papel fundamental no contexto da educação escolar. Abordando assuntos necessários e pertinentes somos capazes de sensibilizar nossas/os estudantes para discussões das relações humanas com o meio vivencial.

Somos conscientes de nossa intrínseca conexão com a natureza, e também de muitos “pecados” do campo da arte para com a natureza em si. Utilizamos seus recursos em diversas linguagens e suas práticas de aprendizado, mas, será que estamos pensando no esgotamento desses? É possível colaborar para que nossas atividades pedagógicas e artísticas não mais contribuam com a poluição, assumindo cuidados para com a preservação do meio natural, além do social?

Compreendemos que a arte é um potente meio para auxiliar o desenvolvimento das identidades e a preservação das memórias, independente de nossa vivência familiar. Desde as nossas primeiras impressões para com o mundo, somos educadas para “sonhar”, e mesmo que tentemos ouvir lá no fundo o que o mundo está querendo nos dizer, muitas vezes não somos capazes de entender seus sinais. Como arte/educadoras muito do que aprendemos é sobre a necessidade do encaminhamento de práticas pedagógicas em artes visuais no sentido de sensibilizar crianças e adolescentes para a percepção do seu contexto vivencial; histórico, social, político e ambiental. Somos ensinadas a instigar através de obras de arte, de diferentes técnicas e linguagens, que em comum passam alguma mensagem, expressões do pensar reflexivo e crítico, manifestações expressivas que emergem do âmago das/os envolvidas/os em tais processos.

Seja um poema, uma pintura, gravura, escultura, fotografia, música, espetáculo de teatro, dança, será percebido na potência da sua mensagem se as/os receptores estiverem preparadas/os para tais interações sensíveis. Entretanto, a formação do povo brasileiro em todos os âmbitos está pautada num ponto de vista europeu/colonizador, valorizando sobremaneira uma visão utilitarista sobre o meio ambiente. Portanto, é uma questão que também se apresenta a nós, arte/educadoras. Isso, dá a ver a necessidade de voltarmos nossos corações e mentes para os povos originários, sua cultura, mentalidade e comportamentos.

Esta edição da Revista Educação Ambiental em Ação é balizada pelo tema “Educação Ambiental para uma vida saudável”, tendo como disparadora das escritas a frase do pensador indígena Ailton Krenak: “Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre” (Krenak, 2020, p.11). Nesse sentido, nesta coluna dedicada à Arte & Ambiente, escolhemos desenvolver uma reflexão sobre algumas questões que encaminham os principais pressupostos para uma arte/educação ambiental.

Os povos indígenas produzem arte o tempo todo, desde artefatos a pinturas corporais, e mais recentemente muitas/os de suas/eus artistas estão engajados no movimento Arte Contemporânea Indígena. Entretanto, seja a produção artística institucionalizada ou a que produzem cotidianamente, elas são elaboradas preservando o respeito ao meio ambiente, a esse universo tão diverso e complexo. Elas/les são as/os que sabem ouvir os sons das matas e interpretá-los, a fala das montanhas e das águas, de toda forma de vida orgânica a e inorgânica que habita esses lugares: os pássaros, sapos, grilos e até mesmo os peixes.

Devo lhe avisar que estas estórias são parte da minha vida e que realmente Makunaima é meu avô; isso é um fato. Makunaima e muitos outros vovôs são daqui do extremo norte da Amazônia. Nós temos uma história e uma geografia. Somos parentes diretos. É uma relação biológica, genética, material e uma parte substancial em espírito, ou energia. (Esbell, 2018, p. 12).

Makunaima, o avô de Jaider Esbell, criador do movimento da Arte Indígena Contemporânea, é o que conhecemos como o acidente geográfico Monte Roraima. Sim, Jaider - e tantas/os outras/os descendentes diretas/os dos povos originários -, considera que um monte é o seu avô. A sua relação com a natureza é horizontal, parental. “Makunaima como disse dispensa uma forma, um gênero, uma gênese. É um estado de energia que se cria e recria em si mesmo como uma bananeira que não precisa de par”, afirma Esbell (id., p. 14).

Quando o homem branco, dito civilizado e cristão, chegou e roubou a inocência dos povos que habitavam o território, hoje considerado brasileiro, sem sequer dar escolha para que vivessem em liberdade, ocorreu o que Krenak chama de “genocídio”. Isso se caracterizou por um silenciamento seletivo e a consequente destruição de quase tudo aquilo que sustenta a vida comunitária desses povos, todos vinculados familiarmente ao planeta compartilhado por toda a humanidade.

Podemos utilizar aqui o exemplo das borboletas e mariposas. Algumas espécies têm em suas asas desenhos de olhos, para que seus predadores achem verdadeiramente esses desenhos como olhos, e vários deles, enquanto repousam sobre as árvores ou galhos, realmente estão protegidas por esses olhos nas asas, com as mais variadas cores e tamanhos. Nesse momento vemos como a natureza é perfeita. Se até as mariposas tem uma maneira para tentar sobreviver (o que não lhes dá a certeza da vida), quem somos nós, humanas/os mal acostumadas/os com nossas tecnologias tão fantásticas, nesse universo fantástico?

Temos medo até dos insetos que não nos causam mal algum, nos perguntamos sobre o que fazíamos quando não tínhamos um celular com câmera para pesquisar a nocividade de determinada espécie? Usávamos almanaques e catálogos de biologia que continham informações sobre as variadas espécies. E assim também funcionava com as palavras desconhecidas, recorremos hoje aos dicionários online, onde podemos com facilidade encontrar sinônimos, antônimos e assim completarmos o sentido de nossos pensamentos. Mas, o que podemos fazer sem nenhum desses recursos para traduzir o que hoje o mundo tenta nos mostrar?

É sobre isso que trata o pensador Ailton Krenak no livro intitulado “Ideias para adiar o fim do mundo”. Ele nos traz uma reflexão interessante sobre o período no qual vivemos:

A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. Porque, se nós imprimirmos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitam prosperar e sentir que estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos que tínhamos uma casa comum que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em que havia a corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. (Krenak, 2020, p. 46-47).

No mesmo livro o autor também fala que se algo de muito ruim acontecer ao mundo, eles, os povos originários, sabem como sobreviver, pois, sabem ouvir o que a terra está querendo dizer: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa” (id., p.31).

Nesse trecho ele está alertando a nós, humanos, espécie que não resiste a quase nada, que somos tão letais e tão frágeis ao mesmo tempo, principalmente, quem vive nas grandes metrópoles urbanas. Independente da esmagadora concentração nesses espaços, se dependermos de ar puro não será nas zonas urbanizadas sem planejamento que sobreviveremos. Krenak tem um olhar atento e preocupado com relação à possibilidade de que a espécie humana seja exterminada por não “ouvir” a Terra; por sequer preservar o mínimo de nossos espaços. Quando ele e Esbell falam sobre a Montanha ser seu avô, é possível entender, entretanto, quando narra suas lutas pelo espaço que foi surrupiado, invadido, mexido e remexido pelas mineradoras - que só visam o mercado e o lucro -, entendemos, concordamos e avaliamos a dificuldade de modificar essa realidade. Segundo Krenak (2020, p. 60):

O fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder. Parece que todos os artifícios que foram buscados pelos nossos ancestrais e por nós têm a ver com essa sensação. Quando se transfere isso para mercadoria, para objetos, para as coisas exteriores, se materializa no que a técnica desenvolveu, no aparato todo que se foi sobrepondo ao corpo da mãe Terra.

Estaremos preparados para o fim do mundo?

Sem querer gerar pânico, avaliamos que um número significativo de pessoas, focadas no hoje/agora, não está preocupada com o futuro. Entretanto, é no presente que precisamos agir, e mesmo assim, não temos garantias de sucesso, sendo que não temos olhos nas asas como as borboletas e as mariposas.

É nessa hora que nos deparamos com os livros e seus conteúdos. Nós seres letrados, ensinados desde a escola a preservar o meio ambiente, aprendendo sobre a reciclagem, sobre as espécies em extinção e sobre como estamos nos movendo para tentar diminuir ao máximo a geração de lixo. Nós temos acesso à educação, mas, e à nossa memória ancestral? Mesmo com toda a tecnologia, nossa memória não é impecável, muito menos intocável. Se faltar luz não temos mais acesso a quase nada, todos os aparelhos tecnológicos que utilizamos para escrever esse texto, por exemplo, dependem dela, a luz.

O valor e respeito que nós devemos aos povos que ocupavam este território antes da invasão colonizadora, não nos é ensinado na escola. Não aprendemos sobre o modo como se desenvolveram e transmitiram às gerações a sabedoria sobre seus territórios, seus modos de permanência, embora a grave interferência europeia, retirando direitos, se apossando violentamente de suas terras, modificando os rios e lagos com rejeitos, os quais supostamente são restos necessários do progresso urbano. E com essa justificativa, estamos poluindo tudo, produzindo, reproduzindo e consumindo o que resta de limpo no planeta. Se o mundo e a própria natureza nos sinalizam de que estamos destruindo vertiginosamente recursos que demandam um tempo cada vez maior para se regenerar, a sabedoria ancestral de quem sempre cuidou de seu entorno natural é algo importantíssimo. Tais ensinamentos merecem destaque, precisam ser considerados com atenção. São palavras simples, de fácil entendimento, mas que pouco reverberam numa sociedade urbana e europeizada. Vivemos querendo que nos escutem, mas poucas pessoas tem a capacidade de realmente escutar.

Para que servirão os equipamentos tecnológicos se esgotarmos os meios que dão suporte à vida humana sobre o planeta Terra?

Se a internet sair do ar, se a luz não funcionar e se tudo se apagar/silenciar, restarão os livros de história e aqueles impressos que já possuímos, para nos lembrarem do passado. Porém, cabe lembrar que a cada dia aumenta o número de pessoas que só acessa informações online. Além disso, a capacidade humana de elaborar manualmente artefatos está em decadência.

Nós seres urbanos, criados em cidades temos pouco ou nenhum conhecimento sobre um passado relativamente recente. Esse conhecimento nem sempre consta nos livros, e em qualquer situação, presente ou não, exige a nossa capacidade de interpretação e um escopo de conhecimento ancestrais. Vivemos um momento no qual é fundamental escutar os nossos povos originários, pois eles são dotados de uma memória e de uma cultura que é transmitida oralmente de geração para geração em busca de preservar, viver e sobreviver, biológica e culturalmente. Ao contrário, nós, seres urbanos, com uma cultura centrada nos valores europeus, não estamos engajados nessa luta, com uma parcela significativa distanciada do assunto, alienada da complexidade do mundo que nos rodeia.

Quando propomos práticas de ensino em artes visuais pautadas numa arte/educação ambiental, não nos referimos a atividades manuais envolvendo o uso de materiais reciclados, como identificamos acontecer em muitas escolas. Diferente disso, defendemos práticas pedagógicas centradas num fazer artístico resultante de reflexões críticas sobre o mundo. Nesse sentido, consideramos fundamental trocar as lentes, acrescentando aos conteúdos da área, exemplos de práticas e pensamentos dos povos originários. Somos conscientes de que para mudar comportamentos é necessário transformar as mentalidades, ampliando os referenciais e refletindo crítica e ludicamente sobre quem somos, nossas origens e influências. E isso precisa contaminar as instituições escolares.



Referências:



ESBELL, Jaider. Makunaima meu avô em mim. Artigo. Iluminuras, Porto Alegre, v. 19, n. 46, p. 11-39, jan/jul, 2018.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

_______. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2020.

i Mestranda do PPGArtes, do Centro de Artes/UFPel. Graduada em Artes Visuais - Licenciatura, é pesquisadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

giulianabmb@gmail.com

ii Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), Mestre em Educação Ambiental, é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Artes. Líder do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

http://www.photographein-pesquisa.com.br/

http://www.clamar-art.com

claummattos@gmail.com

Ilustrações: Silvana Santos