Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Do Linear ao Complexo
13/03/2023 (Nº 82) A EXPERIÊNCIA DE UM GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
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A EXPERIÊNCIA DE UM GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

Marina Patrício de Arruda1

Izabel Cristina Feijó de Andrade2

Anne Carolina R. Klaar3



Introdução

A experiência que iremos relatar foi desenvolvida junto ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Saúde e Vida Sustentável (GEPESVIDA). Fundado em 2010, o grupo de estudos e pesquisa tinha como proposta construir um espaço para a articulação de saberes e exercício do pensamento plural envolvendo as áreas de educação e saúde, e por um longo tempo o grupo integrou discussões e pesquisas de pesquisadores, mestrandos e egressos de Cursos de Mestrado. Nossa ideia inicial era contribuir com a formação do educador e educando no sentido de promover reflexões baseadas no desenvolvimento da teoria da complexidade ou, ainda, teoria da auto-organização, na perspectiva do resgate do ser de inteireza. Esta construção de conhecimento teve por base a articulação entre ensino-pesquisa-extensão.

Nesse sentido, o estudo de questões relacionadas ao pensamento complexo permitiu-nos construir conhecimento a partir de nossas próprias dúvidas, reconhecendo a necessidade de se devolver à ciência e aos pesquisadores a emoção que a ciência clássica abortou sob o argumento da contaminação do cientificismo. Num movimento mais geral, o GEPESVIDA pretendeu incentivar e desenvolver estudos, pesquisas que primassem pela produção de proposições reflexivas para ações práticas que impactassem o futuro mais próximo.

Nesse caminho, o grupo se dispôs ao estudo de teorias, saberes e práticas contemporâneas contextualizadas e significativas, a partir de discussões realizadas por Edgar Morin (1998, 2003, 2010,2012) e outros teóricos que difundiam o pensamento complexo. Nessa perspectiva, o processo de construção do conhecimento e o desenvolvimento da aprendizagem buscaram, em contraposição ao modelo tradicional de transmissão do conhecimento, instigar o exercício da “dúvida radical” e da problematização.

De acordo com Ausubel (1982) a aprendizagem significativa tem vantagens respeitáveis para o delineamento do ensino-aprendizagem, movimento que se dá a partir da relação com conhecimentos prévios o que é diferente da aprendizagem mecânica e conteudista. No encaminhamento dessas discussões recorremos aos sete saberes necessários à Educação do futuro apresentados por Edgar Morin (2012) e que serviram como guia metodológico para a renovação do pensamento.

Entre os sete saberes, o princípio do conhecimento pertinente, foi aquele que mais instigou nossa curiosidade. Esse princípio alertava-nos para a necessidade de se ter uma visão capaz de perceber o conjunto, a necessidade de se desenvolver a capacidade de colocar o conhecimento no seu devido contexto considerando que contexto local tem a ver com o global. As ações locais têm repercussão sobre o conjunto das ações globais. Para Morin (2003) o conhecimento do mundo surge como imperativo sendo, ao mesmo tempo, intelectual e vital, por isso o autor propõe a reforma do pensamento.

Para articular e organizar os conhecimentos para reconhecer e conhecer os problemas do mundo, impõe-se essa reforma. Trata-se de uma reforma paradigmática que diferente da programática, se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. A esse problema universal confronta-se a educação do futuro, pois existe inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários (MORIN, 2000, p. 35-36).

Nesse sentido, intensificamos o debate sobre a relação entre a educação e as questões globais e locais considerando a dimensão individual, comportamental, cultural social e espiritual para refletir e enfrentar problemas. Ao alertar-nos sobre a inadequação do modelo fragmentado de educação para a compreensão dos problemas da realidade, argumentos de Morin (2000) mostrou-nos a importância do diálogo para a construção de um conhecimento pertinente.

E com o intuito de discutir questões de nosso tempo, a reflexão do grupo foi se firmando dentro do paradigma da complexidade, situando especificamente a mudança que existe em potência no princípio do “conhecimento pertinente”.



A Teoria da Complexidade: interdependência entre parte e todo

À luz do pensamento complexo, fomos pensando o grupo como um sistema e percebendo os diferentes posicionamentos dos integrantes nas discussões propostas. Observamos o que nos distinguia também nos complementava. Aos poucos impôs-se a construção de uma proposta hologramática quando passamos a reconhecer que “não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte” (MORIN, 2011, p. 74). Essa ideia contrária ao pensamento simplificador e à visão reducionista, alertou-nos para o fato de que apenas é possível definir uma parte como tal, em relação a um todo.

Assim, a cada encontro do grupo, cada um dos integrantes se posicionava e partilhava sua construção de pensamento integrando os princípios hologramático e sistêmico. À medida que nos reconhecíamos como parte de um todo, também compreendíamos melhor o fundamento do pensamento holístico;  “(...), por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana” (MORIN, 2000, p. 25). Aos poucos fomos construindo um “olhar” coletivo e ampliado a partir de diferentes conexões.

Compreendemos que a Teoria da Complexidade (MORIN,2000) embasa um novo paradigma do pensar e agir humano cujo eixo articulador é o conhecimento pertinente. A complexidade concebida como um desafio e uma motivação para pensar a incompletude do conhecimento, ao invés de ser entendida como uma resposta, uma receita pronta a ser replicada.  A consciência da completude e da incompletude num movimento holográfico transcendia o paradigma fragmentado e recuperava o sentido da vida. Desse modo, o sujeito “[...] reconciliado com o sentido da vida, ao perceber sua inteireza, entende que a riqueza da humanidade está na sua diversidade, fonte de criatividade, e se reconhece na Odisseia incerta em que está” (ANDRADE, 2011, p. 99). Sendo assim, a complexidade permitiu-nos construir um olhar capaz de enxergar a inteireza da realidade.

Num sentido, o pensamento complexo tenta dar conta daquilo que o tipo de pensamento mutilante se desfaz, excluindo o que eu chamo de simplificadores e por isso ele luta, não contra a incompletude, mas contra a mutilação (MORIN, 1998, p. 176).



Assim, o pensamento complexo passou a questionar o princípio da ciência moderna, de divisão e de separação na produção do conhecimento, que levou à supremacia da fragmentação e da especialização tendo em vista que o paradigma moderno simplificador não possibilita a compreensão da complexidade do real. Nessa direção, corrobora com essa perspectiva, Santos (2002) quando apresenta questões voltadas à problemáticas impossíveis de serem resolvidas por meio dos paradigmas modernos. Para Santos (1998) “todo o conhecimento é auto-conhecimento”, mas a ciência moderna, para evitar a interferência dos valores e emoções humanas no conhecimento dos objetos de estudo, julgou que fosse possível ser um pesquisador neutro. Felizmente, a partir da percepção de que o conhecimento se dá por meio do olhar de quem pesquisa, a ciência passou a considerar os sentidos atribuídos pelo observador/pesquisador.

Assim, no paradigma emergente, a aprendizagem passou a ser entendida a partir da ressignificação do conhecimento; estudantes passaram a ser protagonistas do processo educativo e professores os mediadores de emoções e conhecimentos (ARRUDA, ARAÚJO, LOCKS & PAGLIOSA, 2008).

A complexidade, em sua essência se apresentou como um caminho epistemológico que possibilitou-nos repensar ciência e a visão simplificadora do conhecimento. Na adoção deste novo paradigma para a educação, a aprendizagem passou a ser concebida como resposta a uma situação-problema. A problematização é transformadora e construtora da organização da realidade (BORDENAVE & PEREIRA, 1977).

E assim o grupo conseguiu reparar seu pensamento para seguir reparando sua “cabeça” para tê-la bem-feita. Este desafio nos remeteu a uma base conceitual, filosófica e metodológica que favoreceu a mudança de pensamento das pessoas com as quais convivíamos e aprendíamos. A educação guiando a reforma do pensamento para identificar e tratar os problemas a partir da organização e religação dos saberes. E nós, como grupo de estudos e pesquisa, aprendendo a conviver com as incertezas e a viver com responsabilidade.

É nesse caminho que julgamos necessário criar espaços de convivência, de interação e de reflexão para que educadores e educandos interajam e reparem no seu entorno, no seu meio de convivência e reflitam sobre seu próprio processo de atuação. Na perspectiva de Morin (2000), a reforma do pensamento exige a interligação entre os diversos conhecimentos para se chegar à compreensão da condição humana no cosmos tornando-nos responsáveis coletivamente pelo atual momento em que a humanidade se encontra.

Para isso, é preciso investir na formação de intelectuais abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido mais amplo; profissionais encorajados a religarem suas disciplinas e investirem em reformas curriculares, para reunirem natureza e cultura, homem e cosmo, construindo uma aprendizagem que reponha a inteireza da condição humana (ANDRADE, 2011, p. 149)

A predisposição ao aprendizado nos guiou nessa transição paradigmática. Morin (2013) aponta para a necessidade de se ensinar que a contextualização do conhecimento é que promove uma educação eficaz. O que significa dizer que ensinar é situar e articular o que se pretende conhecer em seu contexto, dando significado e coerência ao saber e ao sabido. Parafraseando Montaigne, Morin alerta que “mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia” (2004, p.21).

Nessa perspectiva, a missão de ensinar não se completa quando dissociada do sentido da vida. É preciso dar sentido ao que se ensina, reconhecendo que esse processo não se esgota, é incerto e frágil. Quem ensina também aprende, o que faz do educador um ser sensível ao conhecimento pertinente e contextualizado.

Possibilitar que educadores e educandos presentes num grupo de estudos (re)pensem a construção do conhecimento é levá-los a relacionar os diferentes saberes que estão confinados nas disciplinas. “O excesso de separação é perverso na ciência, pois torna impossível religar os conhecimentos” (MORIN, 2007, p. 101), situação que nos remete a uma compreensão reducionista do humano. Por isso a importância do olhar transdisciplinar, aquele capaz de ir além das fronteiras entre os saberes para integra-los a diversos conhecimentos.



Concluindo a reflexão sobre essa experiência

Um grupo que aspira ser e agir dentro do paradigma da complexidade necessita de reflexões conjuntas e continuas sobre os princípios deste paradigma. Como integrantes do grupo GEPESVIDA pudemos constatar que a reforma do pensamento não seria algo simples, mas processual, pois muitas concepções positivistas ainda estão imbricadas na ciência e na cultura que nos conforma e permeia o modo como somos criados e educados.

A maneira como aprendemos na escola e na própria Universidade, espaço onde ainda se reforça a fragmentação do conhecimento pela divisão dos conteúdos em disciplinas, incluindo a didática tradicional de muitos professores até o incentivo às especializações, constituem os obstáculos que o pensamento linear impõe ao pensamento complexo. Deste modo, compreendemos que transcender a fragmentação do conhecimento é um desafio que exige transformação do próprio pensamento, do modo como articulamos os saberes, de como olhamos o mundo e agimos sobre ele, e do modo como convivemos uns com os outros.

É claro que toda transformação paradigmática passa por momentos de incertezas. Todavia, é fundamental estar aberto ao novo, refletir para compreender que segundo o pensamento complexo não há como separar o ser humano da realidade onde vive, fazemos parte de um ciclo de mudanças que visam especialmente integrar o conhecimento para repensar os desafios da  pós-modernidade. A reflexão e debate foram centrais para um redirecionamento qualitativo da educação e girou em torno da questão paradigmática.

O “conhecimento pertinente” foi aquele saber que nos permitiu operar os princípios organizadores do conhecimento complexo a partir da compreensão da complexidade das informações no contexto em que se inserem. Nesse sentido, se queremos de fato uma sociedade mais justa e igualitária, será preciso encarar os desafios e incertezas que a educação do século XXI nos apresenta. Uma formação que faça sentido para alunos e professores inclui conhecimentos que se constroem e se reconstroem a todo instante em conexão com a história, com a cultura, com a subjetividade e experiências vividas. Vem daí a nossa responsabilidade, como “parte” na transformação do “todo”. “Temos, portanto, de ensinar a pertinência, ou seja, um conhecimento simultaneamente analítico e sintético das partes religadas ao todo e do todo religado às partes” (MORIN, 2004, p. 87).

Nessa direção caminhou o GEPESVIDA, pela reflexividade buscou construir uma cabeça bem-feita para contextualizar e globalizar o conhecimento para melhor compreender e solucionar os problemas da vida humana.



Por fim...

Nos últimos anos, por iniciativa do próprio grupo, passamos a publicar construções reflexivas de alunos, mestrandos, professores e estudiosos da interdisciplinaridade/transdisciplinaridade. Nossa missão, como educadores foi mostrar a importância de se considerar a interdependência entre áreas que aparentemente diferentes, se complementam como Educação, Saúde e a Vida.

GEPESVIDA tornou-se uma revista semestral a divulgar artigos, resenhas e relatos com o propósito de servir como veículo de disseminação de informação para comunidade acadêmica, profissional e sociedade em geral. Fundamentados pelas orientações de Edgar Morin incentivamos o desenvolvimento de pesquisas e estudos que tratem questões complexas dentro de uma visão sistêmica da vida ao entrelaçar os diferentes campos do conhecimento.
Nosso periódico eletrônico tornou-se uma publicação oficial que, no ano de 2022 foi classificada com o estrato 
B1 pelo portal Webqualis. Esse resultado foi alcançado por meio de muito esforço de professores e pesquisadores que atuam na revista divulgando a importância da pesquisa e escrita acadêmica para a popularização da ciência, fruto do compromisso de um grupo de estudos e pesquisa na construção do conhecimento.

Na prática, nos meses em que se seguiram os encontros reflexivos de aprofundamento teórico, pudemos acompanhar educadores e educandos em suas vivências de incertezas, contudo também foram compartilhados significativos movimentos de transformação, conquistas e de aprendizado novo a partir de uma teoria nunca estudada. Tal processo não foi linear. Houve momentos em que uns demandaram mais espaço que outros, e por vezes, as discussões exigiram reflexões mais profundas, críticas e até existenciais. O mais importante foi observar ao longo dos anos que os integrantes do grupo construíram caminhos singulares, sem agenda determinada, mas cada um aprofundando temas e pesquisas que emergiram de acordo com seus interesses, em contextos sociais e históricos particulares. Com orgulho, registramos aqui essa exitosa experiência de formação.



Referências

ARRUDA, M. P., ARAÚJO, A. P., LOCKS, G. A., & PAGLIOSA, F. L. (2008, dezembro). Educação permanente: uma estratégia metodológica para os professores da saúde. Revista Brasileira de Educação Medica, 32(4), 518-524. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n4/v32n4a15.pdf

ANDRADE, I. C.F. (2011). A inteireza do ser: uma perspectiva transdisciplinar na autoformação de educadores. (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

ALMEIDA, M. da C. de., Carvalho, E. de, A Morin, E. (2004). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. (2ª ed.). São Paulo: Cortez.

AUSUBEL, D. P. (1982). A aprendizagem significativa: a teoria de David Ausubel. São Paulo: Moraes.

BORDENAVE, J. D., & Pereira, A. M. (1977). Estratégias de ensino-aprendizagem. Petrópolis: Vozes.

MORAES, M.C., & Almeida, M.C. (2008). Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes.

MORIN, E. (2000).  A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

MORIN, E. (2003). Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO.

MORIN, E. (2007). Introdução ao pensamento complexo. (3ª ed.) Porto Alegre: Sulina.

MORIN, E. (1998). Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

MORIN, E. (2011). Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez.

MORIN, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil.

MORIN, E. (2012).  Os sete saberes necessários à educação do presente. In

SANTOS, B.V de S. (1998, Maio/Abril). Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, 2(2), 47-71. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n2/v2n2a07.pdf.

SANTOS, B.V de S. (2002). Reinventar a democracia. (2ª ed.) Lisboa: Gradiva,



1 Pós-doutora em Educação/PUCRS. E-mail: profmarininh@gmail.com

2 Dra. em Educação/PUCRS. E-mail: andrade@technologist.com


3 Mestre em Educação UNIPLAC. E-mail: carolklaar@gmail.com

Ilustrações: Silvana Santos