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A EXPERIÊNCIA DE UM GRUPO DE ESTUDOS E PESQUISA NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTOMarina Patrício de Arruda1 Izabel Cristina Feijó de Andrade2 Anne Carolina R. Klaar3
Introdução A experiência que iremos relatar foi desenvolvida junto ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Saúde e Vida Sustentável (GEPESVIDA). Fundado em 2010, o grupo de estudos e pesquisa tinha como proposta construir um espaço para a articulação de saberes e exercício do pensamento plural envolvendo as áreas de educação e saúde, e por um longo tempo o grupo integrou discussões e pesquisas de pesquisadores, mestrandos e egressos de Cursos de Mestrado. Nossa ideia inicial era contribuir com a formação do educador e educando no sentido de promover reflexões baseadas no desenvolvimento da teoria da complexidade ou, ainda, teoria da auto-organização, na perspectiva do resgate do ser de inteireza. Esta construção de conhecimento teve por base a articulação entre ensino-pesquisa-extensão. Nesse sentido, o estudo de questões relacionadas ao pensamento complexo permitiu-nos construir conhecimento a partir de nossas próprias dúvidas, reconhecendo a necessidade de se devolver à ciência e aos pesquisadores a emoção que a ciência clássica abortou sob o argumento da contaminação do cientificismo. Num movimento mais geral, o GEPESVIDA pretendeu incentivar e desenvolver estudos, pesquisas que primassem pela produção de proposições reflexivas para ações práticas que impactassem o futuro mais próximo. Nesse caminho, o grupo se dispôs ao estudo de teorias, saberes e práticas contemporâneas contextualizadas e significativas, a partir de discussões realizadas por Edgar Morin (1998, 2003, 2010,2012) e outros teóricos que difundiam o pensamento complexo. Nessa perspectiva, o processo de construção do conhecimento e o desenvolvimento da aprendizagem buscaram, em contraposição ao modelo tradicional de transmissão do conhecimento, instigar o exercício da “dúvida radical” e da problematização. De acordo com Ausubel (1982) a aprendizagem significativa tem vantagens respeitáveis para o delineamento do ensino-aprendizagem, movimento que se dá a partir da relação com conhecimentos prévios o que é diferente da aprendizagem mecânica e conteudista. No encaminhamento dessas discussões recorremos aos sete saberes necessários à Educação do futuro apresentados por Edgar Morin (2012) e que serviram como guia metodológico para a renovação do pensamento. Entre os sete saberes, o princípio do conhecimento pertinente, foi aquele que mais instigou nossa curiosidade. Esse princípio alertava-nos para a necessidade de se ter uma visão capaz de perceber o conjunto, a necessidade de se desenvolver a capacidade de colocar o conhecimento no seu devido contexto considerando que contexto local tem a ver com o global. As ações locais têm repercussão sobre o conjunto das ações globais. Para Morin (2003) o conhecimento do mundo surge como imperativo sendo, ao mesmo tempo, intelectual e vital, por isso o autor propõe a reforma do pensamento. Para articular e organizar os conhecimentos para reconhecer e conhecer os problemas do mundo, impõe-se essa reforma. Trata-se de uma reforma paradigmática que diferente da programática, se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. A esse problema universal confronta-se a educação do futuro, pois existe inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários (MORIN, 2000, p. 35-36). Nesse sentido, intensificamos o debate sobre a relação entre a educação e as questões globais e locais considerando a dimensão individual, comportamental, cultural social e espiritual para refletir e enfrentar problemas. Ao alertar-nos sobre a inadequação do modelo fragmentado de educação para a compreensão dos problemas da realidade, argumentos de Morin (2000) mostrou-nos a importância do diálogo para a construção de um conhecimento pertinente. E com o intuito de discutir questões de nosso tempo, a reflexão do grupo foi se firmando dentro do paradigma da complexidade, situando especificamente a mudança que existe em potência no princípio do “conhecimento pertinente”.
A Teoria da Complexidade: interdependência entre parte e todo À luz do pensamento complexo, fomos pensando o grupo como um sistema e percebendo os diferentes posicionamentos dos integrantes nas discussões propostas. Observamos o que nos distinguia também nos complementava. Aos poucos impôs-se a construção de uma proposta hologramática quando passamos a reconhecer que “não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte” (MORIN, 2011, p. 74). Essa ideia contrária ao pensamento simplificador e à visão reducionista, alertou-nos para o fato de que apenas é possível definir uma parte como tal, em relação a um todo. Assim, a cada encontro do grupo, cada um dos integrantes se posicionava e partilhava sua construção de pensamento integrando os princípios hologramático e sistêmico. À medida que nos reconhecíamos como parte de um todo, também compreendíamos melhor o fundamento do pensamento holístico; “(...), por exemplo, a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana” (MORIN, 2000, p. 25). Aos poucos fomos construindo um “olhar” coletivo e ampliado a partir de diferentes conexões. Compreendemos que a Teoria da Complexidade (MORIN,2000) embasa um novo paradigma do pensar e agir humano cujo eixo articulador é o conhecimento pertinente. A complexidade concebida como um desafio e uma motivação para pensar a incompletude do conhecimento, ao invés de ser entendida como uma resposta, uma receita pronta a ser replicada. A consciência da completude e da incompletude num movimento holográfico transcendia o paradigma fragmentado e recuperava o sentido da vida. Desse modo, o sujeito “[...] reconciliado com o sentido da vida, ao perceber sua inteireza, entende que a riqueza da humanidade está na sua diversidade, fonte de criatividade, e se reconhece na Odisseia incerta em que está” (ANDRADE, 2011, p. 99). Sendo assim, a complexidade permitiu-nos construir um olhar capaz de enxergar a inteireza da realidade. Num sentido, o pensamento complexo tenta dar conta daquilo que o tipo de pensamento mutilante se desfaz, excluindo o que eu chamo de simplificadores e por isso ele luta, não contra a incompletude, mas contra a mutilação (MORIN, 1998, p. 176).
Assim, o pensamento complexo passou a questionar o princípio da ciência moderna, de divisão e de separação na produção do conhecimento, que levou à supremacia da fragmentação e da especialização tendo em vista que o paradigma moderno simplificador não possibilita a compreensão da complexidade do real. Nessa direção, corrobora com essa perspectiva, Santos (2002) quando apresenta questões voltadas à problemáticas impossíveis de serem resolvidas por meio dos paradigmas modernos. Para Santos (1998) “todo o conhecimento é auto-conhecimento”, mas a ciência moderna, para evitar a interferência dos valores e emoções humanas no conhecimento dos objetos de estudo, julgou que fosse possível ser um pesquisador neutro. Felizmente, a partir da percepção de que o conhecimento se dá por meio do olhar de quem pesquisa, a ciência passou a considerar os sentidos atribuídos pelo observador/pesquisador. Assim, no paradigma emergente, a aprendizagem passou a ser entendida a partir da ressignificação do conhecimento; estudantes passaram a ser protagonistas do processo educativo e professores os mediadores de emoções e conhecimentos (ARRUDA, ARAÚJO, LOCKS & PAGLIOSA, 2008). A complexidade, em sua essência se apresentou como um caminho epistemológico que possibilitou-nos repensar ciência e a visão simplificadora do conhecimento. Na adoção deste novo paradigma para a educação, a aprendizagem passou a ser concebida como resposta a uma situação-problema. A problematização é transformadora e construtora da organização da realidade (BORDENAVE & PEREIRA, 1977). E assim o grupo conseguiu reparar seu pensamento para seguir reparando sua “cabeça” para tê-la bem-feita. Este desafio nos remeteu a uma base conceitual, filosófica e metodológica que favoreceu a mudança de pensamento das pessoas com as quais convivíamos e aprendíamos. A educação guiando a reforma do pensamento para identificar e tratar os problemas a partir da organização e religação dos saberes. E nós, como grupo de estudos e pesquisa, aprendendo a conviver com as incertezas e a viver com responsabilidade. É nesse caminho que julgamos necessário criar espaços de convivência, de interação e de reflexão para que educadores e educandos interajam e reparem no seu entorno, no seu meio de convivência e reflitam sobre seu próprio processo de atuação. Na perspectiva de Morin (2000), a reforma do pensamento exige a interligação entre os diversos conhecimentos para se chegar à compreensão da condição humana no cosmos tornando-nos responsáveis coletivamente pelo atual momento em que a humanidade se encontra. Para isso, é preciso investir na formação de intelectuais abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido mais amplo; profissionais encorajados a religarem suas disciplinas e investirem em reformas curriculares, para reunirem natureza e cultura, homem e cosmo, construindo uma aprendizagem que reponha a inteireza da condição humana (ANDRADE, 2011, p. 149) A predisposição ao aprendizado nos guiou nessa transição paradigmática. Morin (2013) aponta para a necessidade de se ensinar que a contextualização do conhecimento é que promove uma educação eficaz. O que significa dizer que ensinar é situar e articular o que se pretende conhecer em seu contexto, dando significado e coerência ao saber e ao sabido. Parafraseando Montaigne, Morin alerta que “mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia” (2004, p.21). Nessa perspectiva, a missão de ensinar não se completa quando dissociada do sentido da vida. É preciso dar sentido ao que se ensina, reconhecendo que esse processo não se esgota, é incerto e frágil. Quem ensina também aprende, o que faz do educador um ser sensível ao conhecimento pertinente e contextualizado. Possibilitar que educadores e educandos presentes num grupo de estudos (re)pensem a construção do conhecimento é levá-los a relacionar os diferentes saberes que estão confinados nas disciplinas. “O excesso de separação é perverso na ciência, pois torna impossível religar os conhecimentos” (MORIN, 2007, p. 101), situação que nos remete a uma compreensão reducionista do humano. Por isso a importância do olhar transdisciplinar, aquele capaz de ir além das fronteiras entre os saberes para integra-los a diversos conhecimentos.
Concluindo a reflexão sobre essa experiência Um grupo que aspira ser e agir dentro do paradigma da complexidade necessita de reflexões conjuntas e continuas sobre os princípios deste paradigma. Como integrantes do grupo GEPESVIDA pudemos constatar que a reforma do pensamento não seria algo simples, mas processual, pois muitas concepções positivistas ainda estão imbricadas na ciência e na cultura que nos conforma e permeia o modo como somos criados e educados. A maneira como aprendemos na escola e na própria Universidade, espaço onde ainda se reforça a fragmentação do conhecimento pela divisão dos conteúdos em disciplinas, incluindo a didática tradicional de muitos professores até o incentivo às especializações, constituem os obstáculos que o pensamento linear impõe ao pensamento complexo. Deste modo, compreendemos que transcender a fragmentação do conhecimento é um desafio que exige transformação do próprio pensamento, do modo como articulamos os saberes, de como olhamos o mundo e agimos sobre ele, e do modo como convivemos uns com os outros. É claro que toda transformação paradigmática passa por momentos de incertezas. Todavia, é fundamental estar aberto ao novo, refletir para compreender que segundo o pensamento complexo não há como separar o ser humano da realidade onde vive, fazemos parte de um ciclo de mudanças que visam especialmente integrar o conhecimento para repensar os desafios da pós-modernidade. A reflexão e debate foram centrais para um redirecionamento qualitativo da educação e girou em torno da questão paradigmática. O “conhecimento pertinente” foi aquele saber que nos permitiu operar os princípios organizadores do conhecimento complexo a partir da compreensão da complexidade das informações no contexto em que se inserem. Nesse sentido, se queremos de fato uma sociedade mais justa e igualitária, será preciso encarar os desafios e incertezas que a educação do século XXI nos apresenta. Uma formação que faça sentido para alunos e professores inclui conhecimentos que se constroem e se reconstroem a todo instante em conexão com a história, com a cultura, com a subjetividade e experiências vividas. Vem daí a nossa responsabilidade, como “parte” na transformação do “todo”. “Temos, portanto, de ensinar a pertinência, ou seja, um conhecimento simultaneamente analítico e sintético das partes religadas ao todo e do todo religado às partes” (MORIN, 2004, p. 87). Nessa direção caminhou o GEPESVIDA, pela reflexividade buscou construir uma cabeça bem-feita para contextualizar e globalizar o conhecimento para melhor compreender e solucionar os problemas da vida humana.
Por fim... Nos últimos anos, por iniciativa do próprio grupo, passamos a publicar construções reflexivas de alunos, mestrandos, professores e estudiosos da interdisciplinaridade/transdisciplinaridade. Nossa missão, como educadores foi mostrar a importância de se considerar a interdependência entre áreas que aparentemente diferentes, se complementam como Educação, Saúde e a Vida.
GEPESVIDA
tornou-se uma revista semestral a divulgar artigos, resenhas e
relatos com o propósito de servir como veículo de
disseminação de informação para
comunidade acadêmica, profissional e sociedade em geral.
Fundamentados pelas orientações de Edgar Morin
incentivamos o desenvolvimento de pesquisas e estudos que tratem
questões complexas dentro de uma visão sistêmica
da vida ao entrelaçar os diferentes campos do
conhecimento. Na prática, nos meses em que se seguiram os encontros reflexivos de aprofundamento teórico, pudemos acompanhar educadores e educandos em suas vivências de incertezas, contudo também foram compartilhados significativos movimentos de transformação, conquistas e de aprendizado novo a partir de uma teoria nunca estudada. Tal processo não foi linear. Houve momentos em que uns demandaram mais espaço que outros, e por vezes, as discussões exigiram reflexões mais profundas, críticas e até existenciais. O mais importante foi observar ao longo dos anos que os integrantes do grupo construíram caminhos singulares, sem agenda determinada, mas cada um aprofundando temas e pesquisas que emergiram de acordo com seus interesses, em contextos sociais e históricos particulares. Com orgulho, registramos aqui essa exitosa experiência de formação.
Referências ARRUDA, M. P., ARAÚJO, A. P., LOCKS, G. A., & PAGLIOSA, F. L. (2008, dezembro). Educação permanente: uma estratégia metodológica para os professores da saúde. Revista Brasileira de Educação Medica, 32(4), 518-524. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n4/v32n4a15.pdf ANDRADE, I. C.F. (2011). A inteireza do ser: uma perspectiva transdisciplinar na autoformação de educadores. (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ALMEIDA, M. da C. de., Carvalho, E. de, A Morin, E. (2004). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. (2ª ed.). São Paulo: Cortez. AUSUBEL, D. P. (1982). A aprendizagem significativa: a teoria de David Ausubel. São Paulo: Moraes. BORDENAVE, J. D., & Pereira, A. M. (1977). Estratégias de ensino-aprendizagem. Petrópolis: Vozes. MORAES, M.C., & Almeida, M.C. (2008). Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes. MORIN, E. (2000). A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. MORIN, E. (2003). Educar na era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem no erro e na incerteza humana. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO. MORIN, E. (2007). Introdução ao pensamento complexo. (3ª ed.) Porto Alegre: Sulina. MORIN, E. (1998). Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. MORIN, E. (2011). Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez. MORIN, E. (2013). A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil. MORIN, E. (2012). Os sete saberes necessários à educação do presente. In SANTOS, B.V de S. (1998, Maio/Abril). Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, 2(2), 47-71. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n2/v2n2a07.pdf. SANTOS, B.V de S. (2002). Reinventar a democracia. (2ª ed.) Lisboa: Gradiva,
1 Pós-doutora em Educação/PUCRS. E-mail: profmarininh@gmail.com 2 Dra. em Educação/PUCRS. E-mail: andrade@technologist.com
3 Mestre em Educação UNIPLAC. E-mail: carolklaar@gmail.com |