Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
16/09/2018 (Nº 65) IDENTIDADE E INFÂNCIAS INVENTADAS: IMERSÕES NA LIQUIDEZ CONSUMISTA CONTEMPORÂNEA
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IDENTIDADE E INFÂNCIAS INVENTADAS: IMERSÕES NA LIQUIDEZ CONSUMISTA CONTEMPORÂNEA

Cláudia Mariza Mattos Brandãoi


Resumo: O artigo tem por objetivo problematizar o desenvolvimento das crianças em meio às relações de mercado, visto que elas são consideradas público-alvo preferencial da publicidade. Relacionando identidade, consumo e vida líquida, teorizada por Zygmund Bauman, analiso uma série da artista fotógrafa Annu Palakunnathu Matthew e o documentário “Criança, a alma do negócio”, da diretora Estela Renner, na busca por um maior entendimento de como se desenvolvem as relações de pertencimento na infância contemporânea e os fundamentos de seus processos identitários.

Annu Palakunnathu Matthewii (1964) é, antes de tudo, uma inglesa de origem indiana que busca a partir de sua produção artística problematizar questões referentes a ser uma imigrante em território norte-americano. Fotógrafa e professora do departamento de Arte e História da Arte, da Universidade de RhodeIsland’s (EUA) ela discute questões referentes à condição de estrangeiros, muitas vezes designada aos imigrantes.

Figura 1: Annu Palakunnathu, Série Self Portraits – AnIndianfromIndia, fotografia, 2001 – 2007.

Morando nos Estados Unidos desde 1992, Annu tem uma condição etnocêntrica ímpar, como mais uma criança de reinos de língua inglesa, e ainda conserva um forte acento britânico. As suas origens indianas são destacadas em muitas de suas criações, em especial na série Self Portraits – AnIndianfromIndia (Figura 1). Colocando sua imagem lado a lado a de índios americanos, ela “brinca” com uma inversão sociocultural, semântica e psicológica, para afirmar que é “uma indiana da Índia” (SLADE, 2014), ao mesmo tempo em que valoriza aqueles que muitas vezes são relegados ao esquecimento, embora representem as raízes étnicas fundantes da cultura norte-americanas.

Figura 2: Annu Palakunnathu, Série Self Portraits – AnIndianfromIndia, fotografia, 2001 – 2007.

A artista resgata arquivos fotográficos do final do século XIX e inicio do XX, cujos fotógrafos buscavam “catalogar e simbolicamente definir os índios primitivos, supostamente desaparecidos da América do Norte” (SLADE, 2014, p. 38). Assim, ela compõe imagens nas quais acrescenta as suas marcas étnicas mistas aos registros dos “primeiros habitantes” da região. Como declara em publicação no seu site www.annumatthew.com:

Quando me tornei cidadã americana em Providence, numa manhã chuvosa de quarta-feira, eu fiquei perplexa ao ler o panfleto que me foi dado, intitulado “Boas Vindas à Cidadania Americana”: “Hoje você se tornou um cidadão dos Estados Unidos da América. Você não é mais um inglês, um francês, um italiano, um polonês. Nem você será um americano com hífen”.

Estas palavras contradisseram minha experiência e me parecem negar minha própria transnacionalidade, tendo vivido na Inglaterra, Índia e, agora, América.

O termo hyphenated é relacionado com a naturalização de imigrantes ou de seus descendentes e/ou cultura. Muitas vezes essas pessoas são chamadas de Irish-American, Polish-American... O texto propõe que não exista mais isso, assim seriam completamente americanos...

Essas palavras definem uma busca que não é somente de Matthew, somando-se a milhares de outras vozes espalhadas pelo mundo, clamando por questões identitárias e a sua condição de estrangeiro/imigrante, mesmo para aqueles, que como os nossos indígenas, constituem-se como povos originários, primeiros “donos da terra”.

Recentemente, reassistindo o documentário “Criança, a alma do negócio” (RENNER, 2008) (Figura 3) - que já foi tema do ENEM, com um grupo de estudantes, lembrei-me da obra de Palakunnathu e suas problematizações. Isso, pois entendo que a discussão poética proposta pela artista acerca de marcas identitárias e a condição de estrangeira/imigrante que elas evidenciam revelam um sentimento de pertencimento que ela busca destacar, renegando padronizações e massificações identitárias, uma situação que se contrapõem às reflexões/ provocações apresentadas no documentário.

Figura 3: Cartaz de divulgação de Criança, a alma do negócio, documentário, DVD, 2008.



Estela Renner propõe a discussão acerca da relação problemática entre a publicidade e suas mídias,e as crianças, muitas vezes consideradas como meros “alvos primários” para instigar o consumo das famílias, aqui entendido como uma filosofia de vida que pode afetar e ser norteadora da infância. A diretora, através de entrevistas, nos fala sobre quando o desejo de comprar passa a ser o desejo em si, pois através do consumo a criança se sente igual ao outro, gerando uma padronização de gosto, fundada em posicionamentos publicitários que muitas vezes rompem os limites éticos e morais.

Na contemporaneidade a mídia se converteu no primeiro fator de construção da subjetividade, não mais a família. E assim, as nossas crianças se veem imersas num processo de aculturação, acreditando que consumindo será inscrito na sociedade. Afinal, o tênis importado é uma marca de campeão e um novo aparelho de celular garante uma posição social de destaque no seu grupo. E assim “a sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação” (BAUMAN, 2007, p. 106).

Ao longo do documentário testemunhamos crianças declarando que preferem comprar a brincar, que desconhecem os nomes das frutas, mas reconhecem todos os logotipos das operadoras de celular; meninas que aos quatro anos não dispensam o uso de batom, que aos seis anos já sabem se maquiar, e que aos oito anos estão preocupadas com roupas que favoreçam seus pequenos corpos!

Durante aproximadamente 49minutos testemunhamos relatos de infâncias inventadas, cujos corpos cada vez mais estáticos, em nada lembram a agitação natural da criançada. O que vemos na tela resulta de processos nos quais a imaginação reprodutora, que copia o que se vê, se sobrepõe à imaginação criadora, aquela que possibilita “transver o mundo”, como destaca Manoel de Barros, uma característica fundamental para a promoção de transformações sociais.

E não podemos esquecer que é na infância que começamos a duvidar e questionar o mundo, impulsionando assim o desenvolvimento de sujeitos críticos frente à realidade. Ou seja, destaco aqui a possibilidade da mídia publicitária estimular o aumento de sujeitos acríticos na contemporaneidade, que tendo o período da infância diminuído, crescem com uma ampliação do tempo de ação nociva sobre o planeta. Sim, pois consumidores contumazes não distinguem/escolhem objetos de desejo!“E assim, permitam-me repetir, a sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura (para alguns!) – e, portanto, da redundância e do lixo farto” (BAUMAN, 2007, p.111).

Revendo o documentário logo me lembrei das ideias de ZygmundBauman, e creio ser difícil que isso não aconteça entre os seus leitores. O que vemos passar na tela são imagens/testemunhos de um mundo que produz Vidas Líquidas, ou seja, vorazes consumidores que no frenesi das “tentações” expostas em vistosas vitrines, reais e virtuais, não percebem a energia da vida se esvaindo.

Além dessas questões, “Criança, a alma do negócio” provocou em mim uma intimação mais profunda: Como se produzem as raízes identitárias frente a liquidez contemporânea?

Se considerarmos que a identidade é um fator determinante para as escolhas ao longo da vida, e para o estabelecimento de relações de pertencimento com o contexto vivencial, a qual identidade/pertencimento remete uma infância imersa no consumo?

Segundo Bauman (2007, p. 116):

O mercado agora atua como intermediário nas cansativas atividades de estabelecer e cortar relações interpessoais, aproximar e separar pessoas, conectá-las e descartá-las, datá-las e deletá-las do diretório do texto. Altera as relações humanas no trabalho e no lar, no domínio público assim como nos mais íntimos domínios privados. Reorienta e redistribui os destinos e itinerários das buscas existenciais de modo que nenhuma delas possa evitar a passagem pelos shoppings centers.

Concordando com as palavras do autor, fico pensando “cá com meus botões” sobre as questões propostas por Annu Matthew, sobre a externalização artística de suas buscas pessoais e seus vínculos de pertencimento:- Quantas crianças estarão sendo cooptadas pelos apelos da mídia nesse exato momento, banalizando e padronizando as suas próprias percepções acerca do entorno, da família, da comunidade, da cultura e da natureza?

Dentre essas, provavelmente algumas tenham raízes étnicas diferenciadas e futuramente estarão submersas na frieza das relações mercadológicas e suas padronizações, esquecendo histórias, hábitos, culturas fundantes, que fazem de cada pessoa um ser único, assim como Matthew busca reafirmar através de suas produções artísticas. E a reafirmação/ressignificação dos vínculos identitários é fundamental, visto que:

O “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos por toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17).

Essas são características mutantes, submetidas às “intempéries” sociais, que podem apagar origens e massificar populações. A velocidade e a volatilidade do mercado colocam os consumidores num frenesi sem limite, num tempo que não permite a percepção sensível do mundo, os questionamentos/dúvidas pessoais e as particularidades das relações interpessoais, ou seja, as manifestações do “humano do humano”, como propõe Edgar Morin (2002).

Eis um tema complexo, que, com certeza, não se encerra nesta curta escrita. Entretanto, avalio que precisamos cotejar a questão, principalmente, na consideração da importância fundadora de não nos esquecermos de quem somos, e do compromisso dos adultos em preservar a liberdade de uma infância criativa para as nossas crianças.

Referências:



BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

_______. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

MORIN, Edgar. O método5: a humanidade da humanidade. PortoAlegre, RS: Sulina, 2002.

SLADE, George. AnnuPalakunnathu Matthew:AnIndianfromIndia. Artigo. Black & White Magazine. Disponível em http://www.annumatthew.com/wp-content/uploads/2015/06/BlackWhite-magazine-2014.pdf

RENNER, Estela. Criança, a alma do negócio. Documentário, 00:49:05 min, Maria Farinha Filmes, 2008. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=ur9lIf4RaZ4 >

iDoutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura e Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). attos@vetorial.net

iiSobre vida e obra da fotógrafa consultar http://www.annumatthew.com/portfolios/projects.html




Ilustrações: Silvana Santos