![]()
Dissertação de Mestrado em Educação Ambiental, FURG, defendida em 29/03/03. Cláudia Mariza Mattos BrandãoArte-educadora, Mestre em Educação Ambiental
Hoje
eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra. Daqui
vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas. Daqui
vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros. Daqui
vem que todas as pedras podem ter qualidade de sapo. Daqui
vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvores. Daqui
vem que os poetas podem arborizar os pássaros. Daqui
vem que todos os poetas podem humanizar as águas. Daqui
vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas. Que
os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos. Daqui
vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos. Que
os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto. (Despalavra, Manoel de Barros, 2000:23) São os sonhos que se perdem, as pessoas
que se apertam, os passos que não se cruzam ... o cotidiano que sufoca. É a cidade que nos devora e nos dispersa, numa tensão constante entre
memória e esquecimento. Olhar a
cidade do Rio Grande no tempo do obturador fotográfico mostrou-me que viver
o (e no) mundo implica relacionar-se com ele através da percepção, num processo
dinâmico e contínuo que acompanha toda a existência humana. Juntamente com o tempo, o espaço é o
primeiro elemento do universo que percebemos e é no espaço contextualizado que
nossas percepções nos relacionam com a realidade. Percebi que a aproximação
dos detalhes, a sobreposição das mensagens, as composições transitórias e a comunicabilidade
das construções nos fornecem matéria para uma recepção coletiva
simultânea e propõem o aprendizado de olhar e repensar o espaço
urbano de acordo com o processo de aceleração das cidades contemporâneas. Para
qualquer observador mais atento, é possível identificar que os desvios criados
pelas constantes mudanças - determinadas pelo acúmulo de objetos,
de mensagens e de pessoas - alteram a paisagem, provocando o gradativo
deslocamento dos referenciais que garantem a manutenção da cultura de uma
comunidade, e a conseqüente perda da alteridade do homem urbano. ... e tudo começou com um
velho fogão abandonado... Em 1995, aluna da disciplina de Fotografia comecei –
como prática de aprendizagem – a fotografar sistematicamente a paisagem ao meu
redor, e a praia do Cassino - a maior em extensão da América do Sul - foi o
primeiro cenário escolhido. Aos poucos, descobri uma quantidade
absurda de objetos, que dia a dia acumulavam-se - tanto na orla
marítima, como nas ruas mais distantes -, formando bizarras combinações e
transformando a paisagem num grande lixão a céu aberto. Dentre todas, uma em
especial chamou minha atenção: um fogão sobre uma duna de areia. A descontextualização de um objeto tão familiar e
significativo a todos nós, chamou minha atenção para o descompromisso
da comunidade local com a manutenção da integridade física de seu ambiente
natural, principalmente por tratar-se de uma área de preservação ambiental. Paulatinamente minha câmera desvelou uma cidade
desrespeitada, tanto pelo poder público como pelo cidadão comum. A sensação de
estranhamento que a situação suscitou, despertou meu interesse para a questão
e, a partir de então, meu olhar começou a buscar essas estranhas composições
oriundas da ação cotidiana do homem sobre o meio, determinando minha proposta
de pesquisa. Como forma de inserção no espaço da Educação
Ambiental, busquei delinear uma crônica visual narrativa através do
registro de aspectos do espaço urbano, tomados como linguagem do espaço
social, que informa sobre o modo de vida comunitário. De um conjunto de
quase mil imagens realizadas ao longo dos últimos sete anos, selecionei vinte e
uma fotografias para comporem o ensaio fotográfico “Com Rio Grande na retina”,
apresentado no capítulo 4 da dissertação de mestrado. Em algumas fotos enfoco símbolos vinculados ao
imaginário da comunidade, referenciando um passado histórico que evoca tempos
em que a condição econômica do município proporcionava uma vida mais digna a
seus cidadãos, porém minha cidade pode ser qualquer uma, em qualquer
parte do planeta: um lugar comum, onde a cotidiana violência social, política e
econômica dilacera pouco a pouco a cidadania de seus habitantes. Os textos fotográficos que seguem são, mais do
que uma representação da realidade, a minha interpretação dos fatos: uma
produção de sentido e significação. Algumas fotografias foram elaboradas,
enquanto outras foram captadas como flagrantes; muitas permanecem somente na
memória, entretanto todas remetem à singular questão da degradação nas relações
sociais e naturais do homem urbano ocidental, discussão desenvolvida ao longo
da dissertação. A linguagem fotográfica, como toda linguagem
artística, articula determinados códigos que colaboram na ênfase da mensagem, e
são passíveis de leitura. Uma das possibilidades para pensar as relações entre
a imagem e o tema é analisar a utilização de determinados elementos expressivos
nas composições. Como um modo de destacar a condição de solidão e
abandono do homem contemporâneo, dei preferência às imagens que privilegiam os
arranjos arquitetônicos em detrimento da figura humana; que, por sua vez, cede
espaço ao indicativo de presença. Em comum todas têm a predominância das linhas
horizontais, numa alusão ao infinito horizonte que compõe nossa paisagem litorânea, repleta de cores e nomes. Consciente de que não conseguiria ignorar a presença
maciça dos fios de iluminação e de telefone na paisagem urbana, optei por
incorporá-los aos recortes. Nas janelas e fachadas eles se destacam, muitas
vezes encobrindo e mascarando as marcas da história. Como elementos alegóricos,
nos remetem à mentalidade tecnicista que estruturou nossa visão de mundo, exibindo
os acúmulos de um progresso que não busca a integração dos diferentes tempos
históricos. A presença degradada do passado confunde-se no emaranhado de
mensagens, e o transeunte muitas vezes não percebe os confusos discursos que se
manifestam na urbe. Numa profusão de formas e cores a cidade fotografada
se revela como um grande quebra-cabeça. A fotografia, tomada como síntese das
relações estabelecidas, dá conta da construção de textos autônomos, que
suscitam múltiplas leituras e interpretações de acordo com a bagagem cultural
do receptor. A análise que fiz de minhas imagens é uma das possibilidades de abordagem
da questão. O que é possível afirmar é que a característica indicial
da imagem fotográfica permite a recuperação permanente de sua origem, sem que
esse referente impeça novas construções de significado. Minha pesquisa foi desenvolvida numa abordagem qualitativa,
percorrendo a vertente da antropologia social, numa opção metodológica atrelada
a uma cosmovisão segundo a qual os outros moram em
nós, e nós moramos nos outros... ( MORIN, 2002:35),
remetendo à questão fundamental da identidade dos vários atores
sócio-culturais que co-habitam o espaço urbano. É um estudo na área da Educação
Ambiental Informal com a intenção de discutir a nossa vulnerabilidade diante de
processos antagônicos e incontroláveis que nos contaminam e assolam nossas
cidades, priorizando a importante contribuição da Arte Fotográfica para essa
reflexão, bem como, para a construção do pensamento e do saber.
|