Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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11/09/2016 (Nº 57) GÊNERO, EMPODERAMENTO E SUSTENTABILIDADE: UMA EXPERIÊNCIA DE MUDANÇA POR MEIO DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM REDE DE MULHERES
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GÊNERO, EMPODERAMENTO E SUSTENTABILIDADE: UMA EXPERIÊNCIA DE MUDANÇA POR MEIO DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM REDE DE MULHERES

 

 

Ariene Bomfim Cerqueira, advogada, mestranda em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente - UESC/PRODEMA, bolsista da FAPESB. E-mail: ariene.bomfim@gmail.com

 

Guilhardes de Jesus Júnior, advogado, professor Adjunto da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) – Ilhéus/BA. Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente - UESC/PRODEMA, coordenador do Projeto SER-Mulher (Projeto de Extensão financiado com recursos do MEC/PROEXT). E-mail: guilhardes@uesc.br

 

Christiana Cabicieri Profice,psicóloga, professora Adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz(UESC) – Ilhéus/BA. Doutora em Psicologia Social pela UFRN. Líder do grupo de pesquisa em interações socioambientais). E-mail: ccprofice@uesc.br

 

Tiago dos Santos Santana, discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz(UESC) – Ilhéus/BA. Bolsista de Iniciação Científica (ICB/UESC) do Observatório de Direitos Socioambientais. E-mail: t.ssantana@outlook.com

 

Resumo

 

A partir da premissa de que, para se compreender a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável, não se pode apenas considerar a utilização contínua dos recursos naturais e a justa repartição dos ganhos econômicos, mas também precisam ser trazidas à tona as reflexões a respeito dos fatores culturais, do bem-estar, das relações de poder entre gêneros e o reconhecimento das limitações ecológicas do espaço ocupado, numa perspectiva de seu contexto histórico, é que se busca discutir, a correlação existente entre gênero, poder e sustentabilidade ambiental nas comunidades extrativistas e pesqueiras do sul da Bahia. O presente trabalho apresenta uma revisão de literatura correspondente ao tema, bem como se dispõe a analisar a influência da atuação em rede por parte das mulheres,como fator de educação ambiental política, na superação de conflitos, no aumento da participação política, e no desenvolvimento sustentável de comunidades.

 

Palavras-chave: Empoderamento; Meio Ambiente; Trabalho; Gênero;

 

 

Abstract

 

In order to understand sustainability and sustainable development, one ought to considerate continuous use of natural resources and fair partition of economic gains as well as cultural factors, welfare, power and gender relations, besides the awareness about ecological restraints of the occupied area. Observing historical context and the assumptions showed above, this article aims to discuss the linkage among gender, power and environmental sustainability in extractive communities – based on fishing activities – from the South of Bahia, Brazil. The paper presents a literature review about this theme and an analysis on the influence of female collective action as an aspect which fosters political and environmental education, conflict-overcoming, political participation rising and sustainable development in such communities.

 

Keywords: Empowerment; Environment; Occupation; Gender;

 

 

Introdução

 

 

            Em questões de cultura, identidade e gênero, algumas sociedades estabeleceram papéis e funções diferenciados para o homem e para a mulher, dando maior valor às funções fixadas culturalmente como masculinas. Esse processo segregativo e estigmatizado formou uma cultura de invisibilidade do elemento feminino, levando a maioria das mulheres a acreditar que não tinha importância no processo de construção e de desenvolvimento do seu grupo social. Pelo mecanismo de estigmatização descrito por Saraiva (2012), é essa “normalidade” construída que vai ressaltar as “diferenças” entre o masculino e o feminino, impondo às mulheres diversos níveis de depreciação, não somente para enfatizar a distinção, mas também para desacreditá-las diante das características da normalidade imposta e fazê-las acreditar tão piamente a ponto de também aplicar sanções às suas semelhantes que não se enquadrem na regra imposta, e a educar seus filhos e filhas a partir deste mesmo padrão.

            Esse estigma negativo levou as mulheres a condicionarem suas vidas a partir da vontade e da força masculina, adotando a premissa da superioridade de um gênero em detrimento do outro. Seguindo a lógica de dominante e dominado, nota-se o traçado cultural das relações de gênero em algumas sociedades, nas quais o poder masculino, ao tornar-se imperativo, leva a mulher a se reconhecer como submissa e dependente da vontade dos seus donos, constituídos nas figuras do pai, irmão, marido ou filho mais velho. Com efeito, tal manifestação é típica do poder patriarcal, por Weber (2004) identificada como relações de piedade rigorosamente pessoais, fundadas na tradição e crença na inviolabilidade da autoridade masculina, bem como na instituição de normas a serem obedecidas pelos submetidos ao poder da autoridade doméstica.

            Esse fenômeno de dominação, pelo qual vêm passando as mulheres na história, tem sido atacado por meio das lutas por direitos, a partir de um forte componente que é a união e o fortalecimento das mulheres nos seus agrupamentos sociais.

            Neste sentido, o Brasil, país de colonização predominantemente europeia, fortemente influenciada pelos valores gregos e judaico-cristãos nos quais a submissão da mulher se configurou como traço cultural marcante, inclusive chancelada pela legislação que, dentre outras coisas, instituiu em determinado momento histórico o pátrio poder familiar, a exclusividade do voto para o sexo masculino, o crime de sedução de “mulher honesta”, o reconhecimento da legítima defesa da honra em caso de adultério feminino. Nesse contexto, não obstante tais institutos já tenham sido banidos do nosso sistema jurídico, as mulheres, no Brasil, convivem até os dias de hoje com toda espécie de violação de direitos, notadamente a violência doméstica, que é um desafio da sociedade brasileira, objeto de legislação e de políticas específicas.

            O Estado da Bahia não foge a essa regra. Distingue-se de forma especial a região sul do Estado, que tem sido marcada pelo histórico patrimonialista e patriarcal de tradição conservadora, segundo um modelo escravista e de exploração da mão de obra.

            A partir da década de 1980, a região começa a sentir sucessivas crises econômicas, afetando sua principal atividade econômica (lavoura cacaueira), em função de fatores como o conservadorismo dos produtores de cacau, o processo inflacionário nacional e a superprodução mundial de cacau (AGUIAR et al., 2011), culminando em 1989 com a contaminação das áreas produtivas com a enfermidade chamada de “vassoura de bruxa”, que leva ao declínio da produção de cacau, crescimento da inadimplência dos produtores, desemprego maciço na zona rural, aumento da migração campo – cidade e logo depois cidade – cidade (das cidades menores para os polos regionais, Ilhéus e Itabuna) e acirramento dos problemas sociais urbanos (OLIVEIRA et al., 2006). Aguiar et al. (2011) vão afirmar que essa região foi tomada por bolsões de miséria e seus municípios viram aprofundar-se a degradação da malha social em suas zonas urbana e rural, propiciando ou alargando problemas como o aumento do desemprego, favelização, aumento dos casos de violência, prostituição e pressão sobre os recursos naturais.

            Esse fenômeno contribuiu também para que outras atividades econômicas viessem a surgir, como a carcinicultura em áreas de manguezal, ou se fortalecer, como a pesca artesanal, esta ultima impulsionada pela significativa riqueza natural da região, detentora de extensas áreas de praia, estuários, vastas áreas de manguezal, diversidade de espécies de fauna, dentre outras riquezas. Podemos afirmar que esse território compreende um espaço laborativo, de sobrevivência e identitário para as populações residentes. Assim, Aguiar et al. (2011) vão perceber que esse locus constituiu-se em um espaço de importância histórica, cultural e econômica para as populações de pescadores e extrativistas, os quais perceberam a necessidade de preservar o ecossistema local da pesca e extração predatórias, bem como da especulação imobiliária que se instalou como alternativa à crise da lavoura cacaueira.

            Não obstante toda a potencialidade da atividade pesqueira, estudos demonstram (Woortman, 1992; Motta-Maués, 1999; Di Ciommo, 2007; Dantas, 2010; Blume, 2011; Maneschy et al, 2012) que é forte nessas comunidades a divisão do trabalho entre homens e mulheres que laboram na pesca artesanal, cabendo aos homens a função de pescador em mar aberto e às mulheres, a de marisqueiras, ou seja, retirando do mangue crustáceos e moluscos, além da preparação para a venda.

            As responsabilidades das atividades como organizadoras do lar, educadoras dos filhos e serviçais dos companheiros são rotinas no cotidiano de marisqueiras. As alterações de identidades ocorridas nos últimos anos, em que se verificam transformações nas relações sociais e de poder no âmbito familiar e comunitário, não foram ainda suficientes para transformar o espaço da pesca, que ainda é um lugar de injustiça de gênero. Para Maneschy et al. (2012), o modelo capitalista vigente, ancorado na apropriação do valor gerado pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras, tende a premiar quem se adéqua mais facilmente ao modelo de hierarquização dos perfis de ocupação, os quais também são valorizados em termos de prestígio, remuneração, carreiras, direitos sociais.Nesse sentido, as tarefas ditas “masculinas”, que exigem força e coragem, são mais valorizadas que as consideradas “femininas”, mais dóceis e domésticas, ainda que o trabalho das marisqueiras não tenha qualquer leveza, posto que passam longos períodos em ambientes úmidos, insalubres, em posições ergonomicamente prejudiciais à saúde, por vezes sem estrutura e equipamentos de proteção individual, sujeitando-se inclusive a acidentes de trabalho.

            Como reação a essa realidade, Jesus Júnior (2014) aponta que se têm verificado movimentos de mobilização de mulheres em torno de objetivos comuns, notadamente vinculados a cadeias produtivas (extrativistas, artesãs, pescadoras, etc) ou por outra motivação identitária (mulheres rurais, da floresta, das águas, etc.), unindo-se numa teia complexa de relações entre elas e entre seus parceiros domésticos (maridos e companheiros) e institucionais (associações, governos, Redes). Um exemplo desta nova configuração é a Rede de Mulheres de Comunidades Extrativistas e Pesqueiras do Sul da Bahia (Rede).

            A Rede surgiu em 2009 com a união das pescadoras e marisqueiras dessa região da Bahia com o intuito de dar visibilidade às demandas e às necessidades do grupo, tais como acesso a políticas públicas destinadas à essa categoria profissional, valorizar a atividade extrativista e pesqueira desempenhada por mulheres residentes nas comunidades da Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras e seu entorno, e lhes conferir maior participação nos fóruns de discussões de políticas públicas e de políticas setoriais.

            Em verdade, sua gênese se confunde com as lutas para implantação e consolidação dessa Unidade de Conservação, porém, a Rede estende-se para além da Reserva Extrativista, e conta com a participação de pescadoras e marisqueiras de seis municípios: Santa Cruz de Cabrália, Belmonte, Ilhéus, Itacaré, Una e Canavieiras, todos situados na região sul da Bahia e, desde sua formação, tem o apoio da ONU Mulheres (antiga UNIFEM), além de outros parceiros locais.

            Iniciou formalmente suas atividades com a aprovação do seu primeiro projeto, financiado pela ONU Mulheres, que tinha como objeto a identificação das lideranças de cada comunidade e a capacitação delas para o desempenho de suas funções com base nos objetivos desejados. Nesse primeiro momento, percebeu-se claramente a capacidade de articulação das lideranças locais, formadas por jovens ou experientes mulheres, algumas até sem escolaridade, mas com uma inserção social significativa.

            Parece evidente que o surgimento da Rede de Mulheres traz à tona a existência de mulheres extrativistas e pescadoras como protagonistas do processo produtivo. Nota-se aí um despertar para sua condição de “ser mulher”, livre dos estigmas e estereótipos socialmente impostos. A Rede tem conseguido reunir um número expressivo de mulheres em diversos momentos, para debater e lançar as bases de construção de uma nova realidade para mulheres de comunidades extrativistas e pesqueiras.

            Vislumbra-se a Rede como uma iniciativa inovadora que poderá servir de instrumento ao acesso a direitos e melhoria das condições de vida de mulheres marisqueiras e pescadoras, inclusive, possibilitando-as a um maior engajamento político e participativo e, se for bem sucedido, poderá ser replicado para outras mulheres de outras cadeias produtivas e identidades diversas, tais como mulheres rurais, das florestas ou de periferias urbanas, posto que, ao se vincularem umas às outras, as mulheres formam interconexões de interesses, tornam-se defensoras mútuas e com isso resgatam a potencialidade feminina entorpecida e vedada pelo véu da cultura dominante.

            É um verdadeiro processo de educação ambiental, assim encarada como um processo transformador da sociedade, à medida que seja praticada em meio a um processo de formação do sujeito - cidadão, consciente de que não é apenas mais um no meio sócio-ambiental. O indivíduo respeita a natureza à medida que se sente parte dela, e passa a respeitar o outro porque exige também respeito de quem compartilha espaço com ele. É a visão de uma nova ética, que permeia as relações do indivíduo com ele mesmo, com os outros, e com o ambiente natural.

Nesse processo de educação para a cidadania, as mulheres promovem significativas mudanças dos modelos culturais, redefinem identidades e reconstroem suas relações consigo, com sua família e com o seu entorno. Porém não há que se pensar em uma estabilidade e tranquilidade no atual estado dos direitos das mulheres, pois estes continuam a ser ameaçados a cada momento, vestidos como se, do fundo dos tempos históricos, mitos e estereótipos antigos teimassem em retornar, renovados com novas roupagens, visando assombrar as mínimas conquistas (PINSKY; PINSKY, 2005).

Jesus Júnior (2014, 2015) destaca que um aspecto importante da Rede diz respeito à sua natureza coletiva, ao seu grau de proteção e sustentabilidade, de influência no processo de autonomia das mulheres e nos novos arranjos econômicos no seio das comunidades. E no âmbito territorial a Rede pode ser um somatório no processo de conservação produtiva, e servir de instrumento para o desenvolvimento do território e da manutenção e perpetuação do modo de viver das comunidades extrativistas e pesqueiras no Litoral Sul da Bahia. A Rede se identifica, em sua formação histórica, com o processo de luta contra a sujeição de gênero e pelo empoderamento feminino. O perfil das relações comunitárias e familiares no âmbito da Reserva e das demais comunidades demonstra, pelas suas práticas sociais, a existência de um habitus próprio do perfil de comunidades pesqueiras, em face do qual emerge a cultura de resistência à dominação, e traz à tona os conflitos dentro do campo de poder instalado nessas comunidades.

           

 

Gênero, poder e patriarcado

 

 

Diante da análise de eventos históricos, verifica-se preponderante subjugação das mulheres aos homens. A ideia de inferioridade feminina proporcionou a manutenção deste sistema, fundamentado na ideologia machista de que o homem como o “chefe natural” da casa pode todas as coisas, e permitiu a opressão do sexo feminino durante décadas.

Filósofos como Locke e Rousseau, por exemplo, propunham uma estrutura de organização social na qual os homens, iguais e livres, estariam aptos a direcionarem suas ações e destinos, todavia, tais ideias jamais foram pensadas em relação às mulheres, visto que, sequer eram consideradas participantes da sociedade civil, sob o argumento de que eram natural e biologicamente inferiores, conforme preleciona Nye(1995).

Dessa forma a mulher, tida muitas vezes como res, não possuía em muitas sociedades os direitos fundamentais à liberdade, propriedade, segurança, e até mesmo o seu direito à vida era relativizado, visto que estava sob o comando do marido.

Em civilizações antigas a mulher possuía direitos de forma precária e pouco efetiva. Segundo assevera Nascimento (2007, p. 23) “a posição da mulher na sociedade já lhe concedia direitos equiparados aos do homem, de modo a ser-lhe garantido o pleno exercício da sua capacidade jurídica”. Entretanto, entre os babilônicos, por exemplo, é possível perceber no Código de Hamurabi, que a mulher possuía apenas alguns direitos, sendo simbólica e indiretamente considerada como objeto, na regulamentação legal quanto à família.

 

“A lógica paradoxal da dominação masculina e de submissão feminina, só pode ser compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres, ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe.”

 

 

A partir do padrão imposto pela cultura, as mulheres eram classificadas em duas categorias: as que incorporavam as regras impostas, consequentemente vistas como “mulheres de classe”, e as que não acolhiam tal modelo, incutido como sendo virtudes morais que na visão dominante pertenciam a sua índole, eram tidas como seres promíscuos, desprezados pela sociedade.

A partir do momento em que a mulher passa a transgredir as regras patriarcais, entravam em ação os chamados métodos corretivos, que são justamente: ameaças, ofensas, agressões físicas, estupros e assassinatos, de modo a se entender que a violência doméstica e familiar, encontra-se intrinsecamente ligada a existência de valores sexistas e patriarcalistas, que por muitas décadas foram legitimados e reproduzidos na sociedade.

            Durante a segunda guerra, as mulheres ganharam certa evidência. O recrutamento dos homens para o fronte permitiu que experimentassem autonomia, e que se mostrassem capazes de enfrentar serviços tipicamente masculinos. Agora podiam votar, ter propriedade, desfrutavam de igualdade jurídica no casamento e a sociedade parecia tê-las aceito como cidadãs. Entretanto, essa situação gerou uma série de conflitos, principalmente ligados ao fato de que os homens que retornavam, não aceitavam a alteração nos papéis tradicionalmente femininos.

            A criação feminina sempre fora voltada ao ambiente doméstico, enquanto a masculina, preocupava-se em preparar o sujeito para o ambiente público. Dedicar-se a intelectualidade, trabalhar em prol de ideais, ou participar da política, nunca foram opções femininas, ao contrário, esse sempre foi um luxo o qual somente os homens podiam utilizar.

Destarte, por força das relações de poder ditadas, o homem assumiu um papel fundado em diferenças biológicas, que lhe conferia supremacia na gestão de todas as coisas, enquanto às mulheres, restou a muda aquiescência a um esquema social, por vezes perverso, que explicitamente impossibilitava a modificação de papéis.

A história de uma Idade Áurea feminista permanece um mito não substancial o bastante para ser traduzido em insights que possam orientar a prática corrente. Em vez disso, sentindo a injustiça em toda parte a sua volta, procurando algum modo de dar sentido à sua experiência e projetar um programa efetivo para a ação futura, as mulheres tem adotado teorias, sistemas e categorias inventadas pelos homens para racionalizar e justificar as atividades dos homens. (NYE, 1995)

 

A articulação masculina para manter o status de superioridade em face das mulheres utilizava da má-fé, de convenções sociais e violências em todas as suas formas, para conservar a submissão e a apatia delas, conforme se verificana aplicação do Estatuto da Mulher Casada e à submissão das famílias ao pátrio poder. Além disso, as mulheres acabavam cúmplices de seus próprios opressores, depositando neles todas as suas aspirações e contribuindo para a manutenção desse círculo vicioso.

Outro fator importante que vem a caracterizar o processo de submissão nas relações de gênero é a questão da manutenção da propriedade na família do varão, ou seja, para seus descendentes. Esse processo só seria garantido se o homem fosse o único copulador e, para isso, a mulher deveria estar sob sua total vigilância e comando. Assim, se delineia um padrão social que vem a gerar uma cultura nas relações de gênero, construindo a identidade do homem e da mulher e definindo os seus papeis no corpo familiar e social. (ENGELS, 2002)

A construção dessas identidades deu origem à denominada dominação patriarcal, construída sob bases econômicas e religiosas, nas quais o homem, por se tornar detentor das bases econômicas de subsistência do grupo, alia-se a um discurso legitimador de caráter divino para apropriação, manutenção e transmissão do poder familiar e comunitário.

A autoridade da comunidade doméstica é seu núcleo de sustentação, e vai a partir daí forjar sua continuidade na formulação das normas que devem ser obedecidas por todos os membros do grupo submetidos ao poder do patriarca. Seu fundamento é a tradição, um sistema baseado nos “costumes” que se enraízam em algum momento histórico no grupo e é identificada com aura divina, que se consolida, se cristaliza e é crida como uma espécie de mandamento inviolável e de vigência eterna, que existe desde sempre.

Nesse tipo de dominação, a legitimação dessas normas está fundada na submissão pessoal ao senhor, que garante a legitimidade das regras por ele ditadas e somente o fato e os limites de seu poder de mando têm, por sua vez, sua origem em “normas”, mas em normas não instituídas, sagradas pela tradição e, na medida em que seu poder não está limitado pela tradição ou por poderes concorrentes, ele o exerce de forma ilimitada e arbitrária, e sobretudo, sem compromisso com regras (WEBER, 2004).

A dominação patriarcal é uma forma estrutural mais consequente de uma autoridade baseada na santidade da tradição (WEBER, 2004). No caso da autoridade doméstica, antiquíssimas situações naturalmente surgidas são a fonte da crença na autoridade, baseada em piedade; para todos os submetidos da comunidade doméstica, a convivência especificamente íntima, pessoal e duradoura no mesmo lar, com sua comunidade de destino externa e interna; para a mulher submetida à autoridade doméstica, a superioridade normal da energia física e psíquica do homem; para a criança, sua necessidade objetiva de apoio; para o filho adulto, o hábito, a influência persistente da educação e lembranças arraigadas da juventude; para o servo, a falta de proteção fora da esfera de poder de seu amo, a cuja autoridade os fatos da vida lhe ensinaram submeter-se desde pequeno. (WEBER, 2004)

Castells (2010) vai identificar o patriarcalismo como uma das estruturas sobre as quais se assentam sociedades contemporâneas e, junto com Weber (2004), vai caracterizá-lo como imposição institucional de autoridade do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. A partir daí a dominação e a violência marcarão indelevelmente os relacionamentos interpessoais e, consequentemente, a personalidade de seus membros.

É também Castells (2010) que vai identificar que a família patriarcal tem sido contestada pelos processos inseparáveis de transformação do trabalho feminino e da conscientização da mulher. As forças propulsoras desses processos, segundo ele, são o crescimento de uma economia informacional global, mudanças tecnológicas no processo de reprodução da espécie e o impulso poderoso promovido pelas lutas da mulher e pelo movimento feminista multifacetado, tendências observadas a partir do final da década de 1960.

Esse mesmo autor manifesta o pensamento de que o movimento feminista, manifestado na prática e em diferentes discursos, é extremamente variado. Identifica uma essência comum subjacente à diversidade do feminismo: o esforço histórico, individual ou coletivo, formal ou informal, no sentido de redefinir o gênero feminino em oposição direta ao patriarcalismo.  O feminismo como expressão ideológica ou política autônoma, segundo Castells (2010), é claramente a “reserva ambiental” de uma minoria formada por mulheres intelectuais e profissionais, embora sua presença nos meios de comunicação amplie seu impacto muito além do número que elas representam. Embora pertencer ao sexo feminino não seja garantia de feminismo e a maioria das mulheres envolvidas na vida política aja segundo a estrutura política patriarcal, seu impacto como modelo, principalmente para as jovens, e como forma de quebrar tabus da sociedade, não deve ser desprezado.

O ponto crucial do feminismo é a defesa dos direitos da mulher. Todas as outras premissas incluem a afirmação básica das mulheres como seres humanos e não como bonecas, objetos, coisas ou animais, nos termos da crítica feminista clássica (CASTELLS, 2010). Nesse sentido o feminismo é positivamente uma extensão do movimento pelos direitos humanos, que no dizer de Bobbio (1992) são direitos históricos, nascidos em certas circunstâncias caracterizadas em lutas por defesas de novas liberdades contra velhos poderes.

Nesse esteio, verificam-se movimentos que partem da concepção feminista para atribuir à cultura machista a responsabilidade pela degradação ambiental. Denominados ecofeministas, esses movimentos partem do pressuposto de que a emancipação da mulher e a proteção ambiental, constituem duas faces da mesma moeda, uma vez que traz à tona uma visão de mundo desvinculada da concepção socioeconômica e de dominação (FLORES E TREVISAN, 2015).

 

Divisão sexual do trabalho

 

O papel reservado às mulheres na família e na sociedade é um dos principais obstáculos para a participação feminina nas lutas políticas. Para ela, a divisão sexual do trabalho determina uma diferença que diz respeito à liberdade que se tem na estrutura social e familiar, ou seja, a mulher tem que ocupar o seu espaço e se reconhecer como sujeito autônomo e participativo.

De acordo com Sen (1987), a análise de desenvolvimento não pode estar divorciada das categorias de gênero e observações específicas relacionadas ao sexo. De acordo com esse autor, as mulheres são vistas cada vez mais, tanto pelos homens como por elas próprias, como agentes ativos de mudança: promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem alterar a vida das mulheres e dos homens. O êxito decorrente das mudanças experimentadas pelas mulheres não se resume apenas ao bem estar delas próprias, mas se reflete no cotidiano de suas casas, entre sua família, e também na sua comunidade. Em decorrência dessas nuances culturais e identitárias, Sen (2010) propõe ajustes cooperativos entre o homem e a mulher para que, ambos, tenham ganhos positivos no acordo firmado e, as relações não caiam no limbo do padrão vigente, que tende a impor, nos afazeres domésticos, privações maiores à mulher em detrimento do homem.

Evidencia-se, portanto, o modo como o respeito e a consideração pelo bem-estar das mulheres são acentuadamente influenciados por variáveis como o potencial das mulheres para auferir uma renda independente, encontrar emprego fora de casa, ter direitos de propriedade, ser alfabetizadas e participar como pessoas instruídas nas decisões dentro e fora da família.

Di Ciommo (2007), em estudo realizado na Reserva Extrativista de Corumbau, situada no extremo sul da Bahia, aponta para essa questão, quando percebe relações inequitativas de gênero em comunidades de pescadores daquela unidade de conservação, manifestas na distribuição desigual das tarefas familiares, em que desempenham atividades consideradas de importância secundária, bem como não têm o controle sobre recursos necessários ao desenvolvimento das atividades.As mulheres dessas comunidades não possuem controle sobre a horta e seus produtos, ou as decisões sobre o que plantar e o que fazer com os recursos. Seu acesso e controle é ainda menor no que se refere a ferra­mentas, equipamentos e utensílios como redes de pesca e motores de barcos, equipamentos de segurança, como boias e salva-vidas, e é inexistente quanto à posse de barcos.

O estudo de Di Ciommo aponta também para o fato de que a presença feminina em momentos de participação política, como reuniões da RESEX ou das Associações, tem sido abafada pelo aspecto restritivo do espaço masculino, pelos afazeres domésticos como cuidar dos filhos, assim como a pouca habilidade para compreender a linguagem própria das atividades administrativas.

Resta considerar que o sentimento de utilidade e de autopertencimento das mulheres inseridas no mundo profissional representa uma forte referência para a elevação da sua autoestima e reconstrução de sua identidade, não mais de subserviência (ROCHA, 2009). Todavia, possuir um grande capital cultural e ter independência econômica não são condições suficientes para permitir que a mulher se livre das pressões do modelo dominante, sendo necessário um esforço conjunto de colaboração intensa entre os gêneros, de forma a reconhecer-seo feminino como autônomo e protagonista de sua própria história(BOURDIEU, 2002).

O processo de incorporação das mulheres no mercado de trabalho remunerado gera consequências muito importantes na família. A primeira é que quase sempre a contribuição financeira das mulheres é decisiva para o orçamento doméstico. Assim o poder de barganha da mulher no ambiente doméstico tem crescido significativamente. Sob regime estritamente patriarcal, a dominação das mulheres pelos homens era, antes de mais nada, uma questão de estilo de vida: o seu trabalho era cuidar do lar. Com as mulheres trazendo dinheiro para casa as divergências passaram a ser discutidas sem chegar necessariamente a repressão patriarcal. Além disso a ideologia de patriarcalismo legitimando a dominação com base na ideia de que o provedor da família deve gozar de privilégios, ficou abalada (Castells, 2010).

À medida que as mulheres ocupam os espaços como verdadeiras agentes de transformação, possivelmente há ganho social, pois a capacidade que elas possuem de fazer parcerias, serem cooperativas e priorizar relacionamentos será um somatório importantíssimo à assertividade e a objetividade masculina. Ettinger (2013) parece reconhecer tais considerações ao compartilhar experiências vivenciadas em comunidades do Pacífico Colombiano, mais especificamente na região de Guapi, onde existe uma forte atuação de mulheres pescadoras e marisqueiras que, através da Rede Matamba y Guasan, dotada de fortes laços identitários com a cultura africana e uma concepção de acolhimento de seus companheiros no processo de (re)conhecimento de seus direitos e de seu empoderamento.

A autora mostra como o trabalho em Rede tem despertado o interesse associativo das mulheres, inclusive culminando com a formação de uma Cooperativa – a Cooperativa de Mulheres Produtivas de Guapi – Coopmulheres. A cooperativa se firmou como um espaço de apoio e desenvolvimento econômico de mulheres artesãs, modistas e doceiras, tendo no artesanato sua maior força de trabalho e visibilidade. Surgido com finalidade predominantemente econômica, o espaço se tornou, ao longo do tempo, um local de formação de mulheres em direitos humanos e sociais.Importante salientar como a estratégia de acolhimento dos homens em atividades da cooperativa tem dado resultados positivos para as relações entre homens e mulheres (ETTINGER, 2013).

No que se relaciona ao trabalho desempenhado junto às comunidades extrativistas e pesqueiras do sul da Bahia, observa-se que a pesca é uma atividade ainda adstrita a um mundo masculino, em que suas representações exibem com clareza a mencionada divisão sexual do trabalho: o espaço público, o alto mar, o mar de fora, é o espaço do homem, enquanto o espaço privado, a praia, o mar de dentro, é o espaço da mulher (Melo et al., 2013).

O imperativo machista da divisão sexual do trabalho, evidenciado na construção histórica do mundo feminino, estabeleceu um caráter de invisibilidade da participação da mulher nas atividades produtivas, considerando que, nessa visão, esta nasceu exclusivamente para o trabalho doméstico e para reprodução. Vislumbra-se que em algumas cadeias produtivas esse valor dominante é tão mais intenso por reforçar a ideia de que o trabalho desempenhado pela mulher é uma extensão da atividade doméstica, tonificando o grau de desinteresse e exclusão do fazer produtivo feminino, que se resume a uma simples atividade não considerada digna de remuneração e proteção.  Nesse contexto de esquecimento e abandono, encontram-se as mulheres que desempenham atividades pesqueiras, denominadas de marisqueiras e/ou pescadoras.

Em virtude dessa configuração, a atividade pesqueira feminina passa a ter um sentido cultural de atividade secundária, por ser considerada um simples braço da subsistência familiar, principalmente porque “o trabalho das mulheres pescadoras é realizado junto ao grupo familiar nos estuários, mangues e praias e não em “alto mar”, visto como espaço dos homens”. No Brasil, segundo dados do IBAMA, cerca de 60% de toda a pesca extrativista vem da pesca artesanal e nesse percentual mais de 25% dessa pesca é desempenhada por mulheres (MELO et al., 2012).

Essa semelhança entre atividade pesqueira feminina e trabalho doméstico foi responsável pela não identificação profissional das mulheres pescadoras e marisqueiras, as quais eram impedidas de participar dos espaços públicos de discussão em suas comunidades, não tinham acesso a benefícios previdenciários, a saúde, a educação e informação dos Direitos.

Além disso, trabalhavam de forma precária e insalubre e, quando reconhecidas como mulheres da pesca, não eram tratadas em suas especificidades, impactando nos resultados produtivos e no grau de participação das mulheres nos espaços de poder, pois não lhes sobrava tempo para ir além do espaço doméstico. Sem deixar de falar das diversas violências sofridas nas relações com seus companheiros e esposos, nem sempre percebidas, sendo que muitas vezes são consideradas “normais”, ou mesmo fruto das obrigações conjugais.

Segundo Maneschy et al. (2012) essa situação tem se agravado, inclusive, nas regiões Norte e Nordeste porque as mulheres, além da realização de atividades instáveis e descontínuas, como tecer redes, beneficiar o pescado, coletar mariscos e algas e pescar nas proximidades, somam-se as ameaças externas às suas comunidades, a exemplo da concorrência na ocupação das zonas costeiras, normalmente mais acirrada onde o turismo é mais intenso, além da poluição e impactos de eventos climáticos amplificados por causa de desmatamentos e ocupações irregulares. Nessa situação, aponta-se para um quadro geral de intensa vulnerabilidade.

Nota-se, com o histórico apresentado, que essa identidade se constituiu projetando a mulher da pesca a não ser pescadora, deixando-a à margem dos direitos, das proteções, dos benefícios e dos acessos relacionados à atividade pesqueira e, como disse Melo et al.(2012), a significação do que é ser pescadora é permeado pelo significado dos sentidos do trabalho produtivo, ou seja, é questionar QUEM pesca e ONDE pesca.

Ademais, exercendo suas atividadesprofissionais em locais compreendidos como extensão do quintal ou terreiro de sua casa, muitas mulheres pescadoras não conseguem diferenciar as atividades produtivas das tarefas domésticas, como se ambas pertencessem a um único núcleo, situação que dificulta, inclusive, a consciência de que são detentoras de direitos e remuneração, ou pelo menos à valorização do trabalho não remunerado.

Essa percepção se faz tão importante, porque além da busca de uma nova forma de vida ou uma nova orientação sobre si mesmas, essas mulheres intensificam o seu papel de produtoras e reprodutoras da cultura pesqueira. E, em se tratando da pesca artesanal, elas são fundamentais na preservação dos manejos tradicionais relacionados à pesca e à extração dos mariscos, os quais são importantíssimos para preservação ambiental e para o uso sustentado dos ecossistemas naturais. Assim, Rosário (2013) compreende a importância do papel feminino na educação e socialização das tradições pesqueiras.

Por estarem tão ligadas ao ambiente que vivem e, por terem a consciência que é dele que vem o seu sustento e de suas famílias, as mulheres pescadoras e marisqueiras criam um elo de apropriação do seu habitat, - residencial e de labor -, desenvolvendo um sentimento de pertencimento, o qual as impulsionará a ter um olhar e uma ação mais cuidadosa com o ambiente que as circunda, além de ser um caminho a promover o desenvolvimento local, porque, no dizer de Maneschy et al. (2012), quando a mulher pescadora torna-se consciente dos seus diversos papeis – econômicos, sociais e políticos – isso faz com que se verticalizem as discussões sobre a atividade pesqueira para o âmbito local, a fim de melhorar as condições de vida e trabalho de suas comunidades.

 

Sustentabilidade e desenvolvimento

 

O tema da sustentabilidade ambiental se inscreve nas lutas sociais pela apropriação da natureza, orientando a reflexão teórica e a ação política para o propósito de desconstruir a lógica econômica e construir uma racionalidade ambiental (LEFF, 2006).

A ideia de sustentabilidade imprime em si uma carga de subjetividade que expressa, mais das vezes, a filiação ideológica de quem constrói esse conceito. Assim, é importante considerar que o conceito de desenvolvimento é dinâmico e, atualmente, a sustentabilidade do meio ambiente constitui parte do conceito de desenvolvimento, ou seja, considera-se que ou o desenvolvimento é sustentável ou não é desenvolvimento.

Nos anos 1970, surge o debate sobre desenvolvimento sustentável, que emerge no cenário internacional por meio da Conferência das Nações Unidas para o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, a qual em seu discurso de reapropriação da natureza define a necessidade de associar o crescimento econômico à preservação do meio ambiente.

Naquele momento, uma das premissas do denominado “desenvolvimento sustentável” foi o reconhecimento da inadequação econômica, social e ambiental do desenvolvimento (associado a um crescimento econômico) em relação à manutenção do equilíbrio ambiental planetário nas sociedades contemporâneas, posto que a satisfação das necessidades humanas, a qualidade de vida e do meio ambiente apresentaram-se como elementos interdependentes.

Desse paradigma emergente à época surge o conceito consagrado na literatura, exposto pelo Relatório Brundtland, oriundo da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), que reunida entre outubro de 1984 e abril de 1987, expôs o entendimento de que “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”. (CMMAD, 1991, p. 46)

O relatório parte de uma visão complexa das causas dos problemas socioeconômicos e ecológicos da sociedade global, entretanto sem afastar-se da visão economicista. Ele avança seu discurso quando sublinha a interligação entre economia, tecnologia, sociedade e política e chama também atenção para uma nova postura ética, caracterizada pela responsabilidade tanto entre as gerações quanto entre os membros contemporâneos da sociedade atual. Embora se possa encontrar tal avanço, o documento mantém ainda a forte identidade de desenvolvimento com crescimento econômico. Esse entendimento está expresso na introdução do documento, que evoca para “uma nova era de crescimento econômico”, apoiada em “práticas que conservem e expandam a base de recursos ambientais”. Acredita-se, no documento, que esse modelo de crescimento é absolutamente essencial para mitigar a grande pobreza que se verificava intensificar-se na maior parte do mundo em desenvolvimento” (CMMAD, 1991).

Contemporaneamente o conceito adotado de desenvolvimento abarca o crescimento econômico, como não poderia deixar de ser, todavia deixa mais clara a existência de dimensões que dizem respeito à liberdade de escolhas individuais e sociais e a participação efetiva na tomada de decisões a respeito da produção e distribuição das riquezas, bem como dos seus custos, principalmente culturais e ambientais.

            Neste sentido, afirmam Flores e Trevisan (2015), que a sustentabilidade não se efetiva apenas com a “reprodução vegetativa”, mas também depende da melhoria das condições de vida nas comunidades, em função das expectativas que forem sendo geradas, sendo destarte necessária a oposição a um desenvolvimento pautado na majoração de benefícios financeiros em detrimento das necessidades das comunidades.

            Ressaltam ainda os autores a necessidade de unir a luta pelos direitos das mulheres à luta em defesa do meio ambiente, posto que relacionam-se intimamente, quando se parte do pressuposto de posteriormente ao momento em que os homens apropriaram-se dos meios de produção e instalaram um regime patriarcal, as liberdades da mulher e equilíbrio do meio ambiente restaram comprometidos.

 

Considerações Finais

 

Diante do exposto, observa-se que o tecimento da Rede, tornou visível a pesca e amariscagem exercida pelas mulheres, uma vez que tais atividades tradicionalmente consideradas masculinas, atribuíam papel secundário às mulheres na cadeia produtiva.

 Neste sentido, a educação para a cidadania, como propulsionadora do empoderamento feminino enquanto oportunidade de aquisição de poder e de consciência para reverter os esquemas de sujeição incorporados, concede condições para agir e mudar realidades, visto que ao ampliar a consciência crítica, a ciência sobre direitos e serviços para atendimento de suas necessidades, gera interesse para além de fatos ligados ao espaço doméstico, dá acesso a recursos financeiros, e sobretudo à cidadania feminina efetiva.

Partindo dessa premissa ressalta-se que o empoderamento das mulheres, através da articulação em Rede, não deve tender a uma mudança de hegemonia, mas a busca de uma convivência harmônica, cooperativa e igualitária entre os gêneros.

Destacando esse arranjo coletivo, que mostra tendência para alterações no status quo local, inclusive, nas relações econômicas e de poder, chega-se à conclusão que, de fato, segundo sua própria percepção, ocorreram essas mudanças na vida das mulheres marisqueiras e pescadoras, de suas famílias e de suas comunidades.

Pode-se afirmar que a situação anterior dessas mulheres, de invisibilidade, baixa autoestima e falta de acesso a direitos básicos, é decorrente da falta de acesso à educação, ao limitado conhecimento de seus direitos e de outras atividades de socialização. Essa condição, na qual ainda se encontram mulheres das várias comunidades, é reforçada pela perpetuação de uma cultura patriarcal reproduzida pelas circunstâncias sociais que identificam os homens à função de produção e vinculam a mulher à função de reprodução ou no máximo auxiliar da atividade.

Essa mudança radical e o cuidado das mulheres pescadoras com o ambiente que trabalham e vivem, tornou-se notório, o que lhes deu maior fôlego no que diz respeito à capacidade de articulação e ação, com o fim de garantir a vida e a sobrevivência no ambiente pesqueiro, lugar que não é só da subsistência econômica, mas compreende outros aspectos históricos, afetivos, da identidade e do pertencimento de suas comunidades.

Observou-se, ainda, que essa emergente Rede de Mulheres, com seu forte apelo característico de relações de gênero, propiciou a obtenção de dados que são fundamentais no estudo das questões de gênero, bem como no tratamento de novos arranjos culturais que, porventura, estejam se formando no seio das comunidades que estão ligadas à Rede. Esse estudo e suas constatações podem levar suas componentes a novas reflexões para o fortalecimento e sustentabilidade do trabalho, bem como permite disseminar sua experiência, com seus acertos e seus equívocos cometidos, no intuito de estimular mulheres de outros segmentos e outras localidades a se mobilizarem em torno de seus próprios interesses.

Essa possibilidade de mudança ratifica a concepção de que um padrão cultural não é perpétuo. O que promove mudanças em seu juízo de valor, vem a dar significado e simbologia à visão que cada ser tem sobre si e sobre a realidade que vive, enquanto um valor que se reconstrói constantemente.

Ademais a atuação em Rede colabora com o efetivo combate às desigualdades de gênero, estimulando-as a trabalharem em rede não somente para construção do bem-estar econômico, mas de uma situação que lhes permita o exercício de suas liberdades enquanto seres humanos, promovendo desenvolvimento sustentável das comunidades onde convivem.

 

 

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Ilustrações: Silvana Santos