Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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13/03/2019 (Nº 67) O MAIOR ATO DE CRENÇA ESTAVA NA PRECE – ENTRELAÇANDO EDUCAÇÃO AMBIENTAL E UMBANDA ATRAVÉS DE NARRATIVAS
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O MAIOR ATO DE CRENÇA ESTAVA NA PRECE – ENTRELAÇANDO EDUCAÇÃO AMBIENTAL E UMBANDA ATRAVÉS DE NARRATIVAS



Raphael Alves Feitosa1; Amablly Renata Martins de Moura2



1Doutor em Educação, Departamento de Biologia, Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: raphael.feitosa@ufc.br

2Bolsita de Iniciação Científica, Universidade Federal do Ceará (UFC)



Resumo: Considerando que a Educação Ambiental possui uma conexão direta entre a relação humana com seus recursos naturais, mas também com a valorização da cultura e formação humana, objetivando ao ser social refletir e participar dos debates e decisões sobre as questões socioambientais. Com essa visão ampla do tema, o objetivo do presente trabalho é analisar as percepções ambientais advindas da vivência com a Umbanda, através de narrativas de experiências do vivido. Os resultados da investigação trazem a natureza como sagrada na medida em que a mesma assume uma representação de divindades africanas, ou, considerando os orixás como a própria natureza. As vivências advindas da prática umbandista funcionam como uma educação de caráter informal.

Palavras-chave: educação informal; narrativas; Umbanda; educação ambiental.

THE GREATEST ACT OF BELIEF WAS IN THE PRAYER - TRAINING ENVIRONMENTAL EDUCATION AND UMBANDA THROUGH NARRATIVES

Abstract: Considering that Environmental Education has a direct connection between human relationship and its natural resources, but also with the appreciation of human culture and formation, aiming at the social being to reflect and participate in debates and decisions on social and environmental issues. With this broad view of the theme, the aim of the present report is to analyze the environmental perceptions arising from the experience with the Umbanda, through narratives of experiences of the lived. The results of the investigation bring nature as sacred to the extent that it assumes a representation of African deities, or, considering the Orixas as nature itself. The experiences of Umbandist practice work as an informal education.

Keywords: informal education; narratives; Umbanda; environmental education.



Introdução

O presente texto é resultado das reflexões ligadas à mesa redonda intitulada “A vida além das dimensões físioanatômicas: Religiosidades, Artes e Cultura na vida natural”, a qual participamos durante o “I Simpósio Cearense de Ensino de Biologia (I SCEB)”, ocorrido no ano de 2018. O foco central do presente trabalho é analisar as contribuições das crenças das religiões de matriz africana (Umbanda) para a educação ambiental, através de narrativas de experiências do vivido.

O tema que aqui será desenvolvido emerge diante da crescente demanda mundial por recursos naturais, o crescimento dos grandes centros urbanos, destruição da natureza, e outros problemas ambientais, acarretaram desequilíbrio ambiental para o planeta, como desmatamento da flora, extinção de espécies e entre outros danos irreversíveis a vida (OLIVEIRA; SILVA; ESTEVES, 2017).

Desta feita, o objetivo do presente trabalho é analisar as percepções ambientais advindas de narrativas de experiência com a Umbanda. Adotando como referencial uma Educação Ambiental que conecte o ser e a natureza, o sagrado e o profano, mundo material e espiritual.

O debate em torno desse tema evidencia-se como relevante quando tomamos como referência o fato de a maior parte da população brasileira vive em cidades, observa-se uma crescente degradação das condições ambientais. Isto nos remete a uma necessária reflexão sobre os desafios para mudar as formas de pensar e agir em torno da questão ambiental, numa perspectiva contemporânea (CAMARGO; CALLONI, 2012; JACOBI, 2003). Para que mudanças relativas às consequências causadas pelas atividades humanas e ao assunto meio ambiente, ligado à educação ambiental, é necessário para que todas as pessoas conheçam a importância e o valor desse tema e sua relação com nossa existência cotidiana.

A problemática ambiental eleva-se do modo como a sociedade se reconhece diante da natureza e de que formas nela se integra. A atual relação desequilibrada dos indivíduos com o meio ambiente induz a uma série de problemas que envolvem todo o planeta (NASCIMENTO, 2009). O início dos problemas com o meio ambiente está na exploração indiscriminada e devastadora dos recursos naturais, sendo assim a natureza um palco de processos sociais que se complexificam. O acesso à informação e o desenvolvimento de valores sobre a questão ambiental é o primeiro passo para o desenvolvimento de uma visão de mundo pessoal, que, ao interagir com os aspectos sociais, deverá criar um paradigma social em relação ao meio ambiente.

Os índices que apontam para as mudanças climáticas estão cada vez mais evidentes, o desmatamento continuou às mesmas taxas anuais, a extinção de espécies se acelerou, o quadro de poluição do solo, da água e do ar se agravou e a desigualdade social, apesar dos avanços nas políticas de inclusão social, não diminuiu (JACOBI, 2003). Na última década, vimos ressurgir no Brasil velhos conflitos em torno à temática socioambiental e da distribuição de áreas agrícolas e florestais (OLIVEIRA; SILVA; ESTEVES, 2017).

Para Martins (2015), universidades e academias científicas têm tratado do assunto de maneira exaustiva, reavaliando valores culturais e mudando suas práticas pedagógicas até então voltadas unicamente para a transmissão de conhecimentos. Para o autor, nos últimos anos, a visão de educação ambiental vem se ampliando e há investimento não apenas na utilização racional dos recursos naturais, mas também na valorização da cultura e formação humana, objetivando ao ser social refletir e participar dos debates e decisões sobre as questões socioambientais.

Concordamos com Castor e Tristão (2015, p. 178), ao indicarem que ideia global de busca por uma sustentabilidade “[...] mudou as prioridades da ciência e da educação: a meta agora é, ao invés de dominar a natureza, reestabelecer a interação entre esta e a sociedade por meio das culturas”. Assim, torna-se deveras relevante investigar as relações e entrelaçamentos da educação ambiental com a religiosidade de origem afro-brasileira, em especial a umbandista.

A realidade atual exige uma reflexão cada vez menos linear, e isto se produz na inter-relação dos saberes e das práticas coletivas que criam identidades e valores comuns e ações solidárias diante da (re)apropriação da natureza, numa perspectiva que privilegia o diálogo entre saberes (JACOBI, 2003). Nessa perspectiva, os cultos religiosos possuem o poder de formação de opinião, atuando e modificando o pensamento sobre aqueles que os apreciam, como também contribuindo na construção das relações sociais e da forma como os seres humanos concebem/agem com/sobre a natureza (MUSA; OLIVEIRA; VIEIRA, 2006; RODRIGUES, 2011).

Meio ambiente e religiosidade umbandista: uma intersecção no campo da educação e das práticas ambientais

Toda religião proporciona uma visão de mundo, seus fundamentos influenciam no comportamento dos seus adeptos, determinando os valores a serem adotados e transmitidos para seus sucessores. Em razão das atuais discursões sobre as questões ambientais, as religiões afro-brasileiras, como Umbanda, vêm ganhando destaque devido a sua relevância da identidade religiosa para a percepção da relação homem-natureza (RODRIGUES, 2011). As práticas religiosas presentes nas mesmas proveem valores, uma interpretação sobre o mundo, éticas ambientais, que modelam a forma que seus adeptos interagem de modo mais complexo com a diversidade biológica e a natureza (CAMARGO; CALLONI, 2012).

Como destaca Biesdorf (2011), a família e a religião são as principais instituições responsáveis pela educação informal, através da qual são ensinados os costumes humanos como falar, andar, comer, religião, cultura, etc. Esse é um tipo de educação não-sistematizado, contrastando com a educação formal escolar.

Do ponto de vista da educação formal escolar, a presença das artes, do estudo da história e das culturas afro-brasileiras e indígenas no âmbito educacional estão asseguradas legalmente através da lei Nº 13.278/2016 (BRAGA; SANTOS; LOPES, 2017). Contudo, ainda são escassos os estudos a respeito do tema (MARQUES, 2017; MARTINS, 2015; RODRIGUES, 2011).

Nessa perspectiva, Martins (2015, p. 267) advoga que para as religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé, “[...] a natureza é um espaço sagrado, de comunhão entre o mundo espiritual e o material, que deve ser respeitado e bem cuidado”. Esta concepção alinha o culto milenar a uma das maiores preocupações da atualidade: a preservação da biodiversidade. Seguindo essa premissa, a seguir, exploramos um pouco sobre a Umbanda.

Do ponto de vista histórico, embora os rituais e elementos da Umbanda viessem sendo forjados desde o período do Brasil-Colônia, nos chamados calundus dos quilombos, outras práticas e crenças contribuíram para que ela se solidificasse, a partir do início do século XX, como uma das religiões brasileiras mais sincréticas. A Umbanda “[...] resulta do sincretismo entre elementos do Catolicismo, do espiritismo kardecista, da tradição dos orixás africanos e espíritos de origem indígena. (MARQUES, 2017, p. 86).

É relevante destacar que essa educação informal ligada a tradição afro-brasileira possui forte característica de oralidade, diferentemente de outros países latinos, como Cuba, por exemplo, onde era frequente os babalaôs guardarem os mitos de Ifá em cadernos. Por sua vez, Prandri (2001) destaca que na tradição religiosa de nosso país, fazer anotações de histórias míticas era algo bastante incomum até pouco tempo atrás.

Os princípios umbandistas estão diretamente relacionados à natureza, haja vista que o culto aos orixás representa o contato direto com os elementos da natureza, a busca de energias ancestrais e a prática da caridade (MORAIS, 2012). Cada ponto da natureza possui uma força de um orixá, por exemplo, Oxóssi, Oxum, Iemanjá são representados respectivamente pelas matas, águas doces, e os oceanos, e são tidos como ecossistemas importantíssimos para o equilíbrio do planeta.

Dessa forma, adeptos a Umbanda estão fortemente ligados à natureza, pois através dela que se iniciam os rituais religiosos e ela é a fonte da crença de seus adeptos. Os orixás são divinos, mas portam cárteres humanos, “[..] alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas dos orixás dos quais descendem” (PRANDI, 2001, p. 24).

A Umbanda através de seus fundamentos promove uma interação, no plano mítico, entre as práticas sociais e a categoria ambiental. A força da cultura africana é uma relação étnica com o cosmo, com a natureza e seus elementos (MORAIS, 2012). Sendo assim, isso torna essa religião de matriz africana fonte relevante de investigações que envolvem o tema ambiental (RODRIGUES, 2011).

Partindo desse princípio, uma relação entre religião e ambiente, buscamos analisar, a partir de uma narrativa de experiências, um percurso de vida que apresente o vínculo entre divindades cultuadas dentro da Umbanda com a natureza. Desta feita, é possível expressar a riqueza da dimensão ambiental da cultura e, em especial, da religião, e como a mesma poderá influenciar sobre as questões ambientais.

Visto que a Biologia, ponto de partida dos autores das narrativas que se seguem, é a ciência que estuda a vida e que a Umbanda apresenta-se como uma conexão com os elementos da natureza, é possível prevê um ponto de contato entre ambas, já que essa religião toma como sagrado a natureza, propondo uma educação ambiental de caráter informal para seus simpatizantes.

Buscamos por uma educação ambiental entrelaçada com a vida, com a sociedade e cultura, a qual produza intersecções com outras lógicas e sentidos no habitar de outras perspectivas de mundo, “[...] incorporando os sentidos das narrativas umbandistas, como o respeito as diferenças, a aceitação, o acolhimento, a solidariedade, a coletividade, a conexão com a terra, com a cultura, com a natureza”. (CASTOR; TRISTÃO, 2015, p. 179).

Procedimentos metodológicos da investigação

A presente investigação tem fundamento de base a pesquisa qualitativa, caracterizada, principalmente, pela ausência de medidas numéricas e análises estatísticas, examinando aspectos mais profundos e subjetivos do tema em estudo (SILVERMANN, 2009). Ademais, reconhece a dimensão subjetiva da busca pelos saberes e do estabelecimento de possíveis ilações sobre os conhecimentos de um grupo de indivíduos.

O método utilizado para o desenvolvimento da pesquisa foi o trabalho com narrativas, no qual extraímos tais experiências com o contato direto com a religião Umbanda e seus princípios, enquanto pesquisadores-participantes-narradores. A conotação narrativa do tema, levou em consideração a proposta investigativa de Castor e Tristão (2015) e de Martins (2015), na qual os autores buscaram em narrativas aspectos que inter-relacionam as experiências dos sujeitos com a religiosidade afro-brasileira e a Educação Ambiental.

A narrativa de formação tem se constituído no cenário educacional como uma das opções metodológicas dentre os diversos métodos que já apresentam campo estabelecido (SOUSA; CABRAL, 2015). É, por sua natureza, carregada de significados e características próprias, permitindo-nos entender como seus componentes desencadeiam e proporcionam aos sujeitos a problematização, a revelação, a compreensão e o processo de reflexão sobre a prática docente através de diferentes técnicas e instrumentos.

Esse trabalho se caracteriza pelo o uso de narrativas com base em experiências do vivido, com caráter autobiográfico, a qual se caracteriza por haver uma experiência significativa na vida do sujeito pesquisador, este a toma como objeto de compreensão (LIMA; GERALDI; GERALDI, 2015). Essas pesquisas decorrem de uma situação não experimental, mas vivencial. Segundo Lima, Geraldi e Geraldi (2015), a especificidade deste tipo de investigação reside no fato de que o sujeito da experiência a narra sobre o próprio vivido e narrado, do qual se extraem lições que valem como conhecimentos produzidos a posteriori, resultando do embate entre a experiência e os estudos teóricos realizados após a experiência narrada.

A seguir, expomos duas narrativas vivenciadas dentro da Umbanda. Portanto, nas páginas que se seguem, considerando a vivência subjetiva da temática, iremos utilizar a primeira pessoa do singular para as narrativas.

Narrativa 1 - Umbanda e o encontro com natureza

Sou regida por Ogum1 e Oxum2. Nasci em uma família que cultua religiões de matriz africana, e, ao longo do meu crescimento, sempre permaneci aberta para conhecer os rituais e ideais destas. Aos meus 16 anos, tomei a decisão de me tornar uma filha da Umbanda na Tenda Espírita Caboclo Aymoré, na qual florescia um sentimento entre fé e amor pela natureza.

Devido os problemas envolvendo questões ambientais, atualmente, religiões como o a Umbanda e outras de matriz afrodescendente têm ganhado atenção (CAMARGO; CALLONI, 2012; MORAIS, 2012), pois os terreiros são tidos como modelos de preservação ambiental para aqueles que seguem essas doutrinas religiosas, visto que tais crenças envolvem um estreito laço com a natureza e sua fé.

A partir do momento em que se conhece a força de cada ponto da natureza, representado por um orixá, desenvolve-se uma visão diferente em relação ao meio ambiente, se comparada ao que eu possuía antes da minha aproximação com essa religião, pois é impossível olhar para um ecossistema e não enaltecer os encantos e a diversidade de divindades ali presentes. Por exemplos, o ar é de Oxalá, as pedreiras de Xangô, o mar azul é de Iemanjá, os rios e cachoeiras de Oxum, as chuvas de Iansã e outros. Os orixás no panteão das religiões afrodescendentes seriam uma reprodução dos elementos naturais (BRAGA; SANTOS; LOPES, 2017; MARQUES, 2017; PRANDI, 2001).

Minha primeira experiência envolvendo a conexão entre religião e a natureza, foi em uma gira3 de abertura da casa e festa para o orixá Oxóssi, em janeiro de 2016, em que nós, os filhos de santo e o chefe do terreiro, fomos para uma pequena mata durante o nascer do sol para cultuarmos à Oxóssi, orixá responsável pelos ecossistemas florestais, agricultura e caça. O ritual, veio nos ensinar o respeito e o amor ao meio ambiente. Durante a manifestação de um dos guias espirituais do pai de santo4 Erivan de Oxum, o caboclo Aymoré5, ocorreu que este deixou sua mensagem para todos os filhos ali presente, que refletia um assunto bastante discutido: “quem honra a força das matas, respeitaria e preservaria os nossos recursos naturais e seres ali presentes”.

Enquanto os atabaques tocavam, cada filho ofertou uma fruta em forma de gratidão ao orixá pela renovação constante do ambiente e recursos naturais que usufruímos. A comemoração anual da festa de Oxóssi me proporciona um sentimento de reaproximação e contemplação com a natureza, que diversas vezes é corrompido com o cansaço e correria da cidade grande.

Assim que entrei para a religião, fui apontada como filha de Oxum, o orixá feminino que representa a fertilidade, a riqueza das águas doces, como rios e cachoeiras, visto que é o recurso natural que está se tornando cada vez mais escasso, e, portanto, muito debatido mundialmente. É por meio de suas águas que o solo é fertilizado para a produção de alimentos, detém a sede dos seres vivos e mantém os ciclos biológicos.

Ser filha de Oxum e ouvir notícias na mídia a respeito da falta de água em diferentes regiões do país e do mundo, motivado pela poluição hídrica ligada a ações antropogênicas, trazem à tona pontos de força que seria de Oxum em completa fadiga, e total falência vibratória, induzindo a uma reflexão sobre como o homem ignora os problemas ecológicos e suas consequências. Ser umbandista é acreditar na preservação dos seus domínios naturais, e saber da necessidade de respeitar cada ponto da natureza, como se fosse um templo sagrado e intocável.

Ao longo desse tempo dentro da Umbanda, meu zelador de santo6 Pai Márcio de Obaluaê sempre esteve disposto a educar seus filhos no âmbito ambiental: não deixamos nenhuma oferenda em espaço públicos, como em encruzilhadas, praias, rios e matas. Devemos ter consciência de que orixá é a própria manifestação da natureza, e certamente não aprova a poluição de seus espaços sagrados, sendo esse um dos grandes fundamentos da Umbanda: manter o equilíbrio do meio ambiente, pois se colocarmos objetos que agridem a natureza, eu estaria contrariando a ideologia umbandista.

Para que esse pensamento ambientalista seja desenvolvido, aprendi a confeccionar oferendas e rituais com a utilização de materiais biodegradáveis, evitando-se, muitas vezes, o uso de plásticos, vidros ou outros objetos que demandam um longo período para sua degradação. A utilização das folhas de bananeira, na forma de uma bandeja, para colocar os alimentos, dispensando o uso de alguidares ou gamelas7.

Acredito que existem inúmeros chefes de templos de Umbanda e Candomblé, que preparam seus filhos para que, ao final de cada ritual de oferendas, sejam retirados todos os objetos utilizados: garrafas, velas e comidas, pois por mais biodegradável que seja, todo o material pode provocar o acúmulo lixo, além de ser um desrespeito para com quem não é da nossa religião. Apesar da retirada dos materiais, é inegável que exista espaço favoráveis às entregas de oferendas como outros que são impróprios, seguindo as regras definidas pelos chefes do terreiro, como acender velas próximo a raízes de árvores e permanecer no local até a queima final da vela, evitando incêndios e queimadas.

A esse respeito, Nascimento (2009) ressalta que as oferendas nas religiões afro-brasileiras, sobretudo na Umbanda, são práticas concretizadas com o intuito de constituir uma ligação entre os seres humanos e o transcendente. Essa prática funciona a partir de uma relação de troca; se oferta para pedir, agradecer, ou meramente para amimar uma entidade.

Certa vez, em uma gira de exú8, uma das entidades que me acompanham, Dona Maria Navalha, uma entidade feminina, disse para um consulente em que ela atendia, que o maior ato de crença estava na prece, e não nos itens que eram deixados, deixando claro que natureza é o nosso refúgio e sujá-la, seja no meio urbano, nas matas e florestas é romper com a morada de nossos ancestrais e orixás. Penso que a preocupação ambiental e a responsabilidade humana com a natureza/cultura foram nítidas para mim. O mesmo ponto de vista é compartilhado por Braga, Santos e Lopes (2017), Rodrigues (2011), Camargo e Calloni (2012) em estudos ligados aos temas dos orixás e educação ambiental.

É inegável que, após minha entrada para religião, desencadeou em mim uma maior preocupação ambiental, haja vista que cada experiência vivida aos princípios umbandistas é intrínseca à natureza: tudo nela tem uma conexão direta com seus fundamentos. A fé ecológica umbandista se efetiva da força dos orixás (RODRIGUES, 2011).

Seguindo essa linha de pensamento, podemos identificar a relação entre o conjunto de saberes tradicionais envolvendo os elementos culturais e ambientais da Umbanda; “[...] é nessa relação que podemos sugerir algumas reflexões e composições entre Educação ambiental e a Cultura Religiosa de Matriz Africana.” (MARTINS, 2015, p. 266).

Narrativa 2 - O poder das ervas e o meio ambiente

Quando estamos aptos a conhecer espaços diferentes, nos surpreendemos com os contrastes inerentes a atual sociedade, os quais, muitas, ocultam a verdadeira faceta da vida. Comumente, aos olhos de pessoas leigas, a Umbanda não é vista como aquilo que ela realmente é, isto é, uma veneração aos nossos antepassados e a natureza, que unidos tem o compromisso de praticar a caridade e procura enaltecer o equilíbrio do homem com o meio em que está inserido, fundamento que é base desta religião. Apesar de existir inúmeros rituais que envolvem essa conexão direta entre a religião e os recursos disponíveis na natureza, um dos que mais me chamou a atenção, desde da minha entrada no terreiro, é a virtude do uso dos vegetais nas ritualísticas e sua importância para a Umbanda, tanto com o valor simbólico e histórico africano das ervas, como os seus efeitos de cura e sintonia com o meio (MARQUES, 2017; MORAIS, 2012; PRANDI, 2001).

Na primeira vez que conheci a casa em que sou filha de santo, fiquei supressa com a diversidade de espécies de plantas ali presentes e com o seu imenso local para cultivação. Nos terreiros de Umbanda possuem como caráter a presença das ervas em quase tudo que compõe a religião (BRAGA; SANTOS; LOPES, 2017; RODRIGUES, 2011), e com o passar do tempo aprendi que cada planta carregava uma força ligada a uma divindade e representava um santo ou entidade. Um dos exemplos é a Espada de São Jorge, a qual pode ser encontrada com facilidade em qualquer casa ou jardim. Ela, segundo o que aprendi no terreiro, é uma das plantas que possuem uma história de origem africana e possui um significado importante de eliminação de energias negativas.

No terreiro, as entidades nos transmitem o seus conhecimentos milenares sobre o manuseio das ervas e plantas, que podem ser utilizadas para os inúmeros rituais preparados pelos guias para serem feitos dentro do barracão9, como defumação e rituais de benzimento com ervas, como também em consultas feitas pelos Pretos Velhos e Caboclos, entidades que representam os negros africanos e indígenas do período colonial respectivamente, nos quais prescrevem aos consulentes que apresentam algum tipo de doença, sendo usufruída de diversas formas, como banhos, chás, benzimentos e técnicas terapêuticas.

Na análise das mitologias da Umbanda (CAMARGO; CALLONI, 2012; MORAIS, 2012; RODRIGUES, 2011) no panteão dos orixás, os conhecimentos sobre as ervas utilizadas em remédios ou em vários rituais eram atribuições ao orixá Ossaim10, e em todos os terreiros, essa divindade é tratada com muito respeito, pois sem as folhas nada se faz, em razão de que sãos produtores nas cadeias alimentares. Em seu mito, Ossaim era o senhor das folhas, da ciência e das ervas, e todos os outros orixás recorriam a ele para curar de males do corpo. A partir do seu mito, é possível deferir que sua força e atuação estão nas plantas, e se manifestam como alimento, medicamento e símbolo religioso.

Dessa forma, é relevante o uso dos vegetais dentro dos terreiros de Umbanda, sendo um exemplo da interação entre a crença e a natureza, pois as entidades cultuadas habitam justamente as florestas, campinas, cachoeiras, pedreiras, lagos, pântanos, rios, fontes, praias, mares, etc. Assim, o desrespeito com a natureza é uma ruptura entre a religião e sua fonte de existência. Tais saberes/fazeres são aprendidos de maneira informal pelos praticantes da Umbanda, caracterizando-se, assim, uma educação (BIESDORF, 2011; CAMARGO; CALLONI, 2012).

Analisando a experiência aqui narrada, a vivência umbandista nos possibilitou discutir que “[...] lugares de poder e de negociação e resistência são potentes para pensar a viabilidade da produção de sociedades sustentáveis e outros sentidos mais habitáveis” (CASTOR; TRISTÃO, 2015, p. 175). Indo para além do campo conceitual e de educação formal, a prática religiosa descrita configura-se como uma educação ambiental entrelaçada com nossa própria vida.

Considerações finais

No presente texto apresentamos algumas categorias de análise vividas nos processos de educação ambiental ligada à religiosidade umbandista, expondo a natureza como sagrada na medida em que a mesma assume uma representação de divindades africanas, ou, considerando os orixás como a própria natureza. Logo, a natureza torna-se intocável, divina, parte integrante e essencial da religião. Deixando de ser uma simples associação de meio ambiente e orixá, passando a ser a incorporação literal da entidade na natureza.

Durante o tempo de vivência na Umbanda aprendemos a compreender que essa religião acolhe e se nutre desse encontro entre natureza e mito, e é um dever de todos que a cultuam possuírem um olhar ambiental mais responsável e consciente, dedicando-se ao equilíbrio do meio ambiente. A educação é fundamental para mudanças e transformações, assim a instrução de valores ambientais tidos na Umbanda, mesmo que de maneira informal, promoveram uma transformação no nosso pensar/agir diante da problemática ambiental.

NOTAS

- Ogum é, na mitologia iorubá, o orixá ferreiro, senhor do ferro, da guerra, da agricultura e da tecnologia.

2 - Oxum, na mitologia iorubá, é um orixá que reina sobre a água doce dos rios, o amor, a intimidade, a beleza, a riqueza e a diplomacia.

3 - Gira é o encontro dos seguidores para realização dos rituais.

4 - Pai de santo é o líder máximo presente em um terreiro de Umbanda.

5 - Caboclo Aymoré é uma entidade que carrega consigo a força dos indígenas que habitavam o Brasil durante o período de colonização.

6 - Zelador de santo é uma das hierarquias presentes nos terreiros de Umbanda.

7 - Alguidares ou gamelas são recipientes feitos de argila.

8 - Gira de exú é um dos rituais dentro dos terreiros.

9 - Sinônimo de terreiro ou tenda.

10 - Ossaim é, na mitologia iorubá, orixá das folhas e ervas medicinais.





REFERÊNCIAS

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Ilustrações: Silvana Santos