Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
30/05/2017 (Nº 60) A PRAIA E A ESCOLA
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A PRAIA E A ESCOLA

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Guilherme Susin Sirtoli[ii]

 

 

RESUMO: O artigo versa sobre as atividades do projeto de extensão PhotoGraphein vai à Escola, realizadas na EMEF Peixoto Primo, situada no Balneário Cassino (Rio Grande, RS), com ênfase nas questões relacionadas ao meio ambiente. O foco temático se justifica, visto que a escola está localizada nas proximidades da orla da Praia do Cassino.

 

 

Existe uma pequena escola no extremo sul do Brasil, que embora semelhante a tantas outras espalhadas pelo país, com instalações acanhadas frente às necessidades de seu público, tem uma característica que a torna singular. Esta escola possui um pequeno pátio, igualmente insuficiente para as rumorosas brincadeiras dos seus pequenos frequentadores. Entretanto, em função de sua localização privilegiada, ela tem um pátio “anexo”, a infinita faixa de areia branca que se estende por mais de 250 quilômetros, entre os Molhes da Barra do Rio Grande e a Barra do Chuí, ou seja, a praia do Cassino (Rio Grande, RS).

Refiro-me a Escola Municipal de Ensino Fundamental Pedro Carlos Peixoto Primo, localizada no bairro Querência, Balneário Cassino, no município de Rio Grande (RS). Uma instituição que enfrenta inúmeras dificuldades e restrições, mas que oferece a possibilidade ímpar de incorporar aos seus “domínios” a natureza em sua plenitude ancestral (Figura 1).

 

Figura 1: Cláudia Brandão, Atividades do projeto PhotoGraphein vai à Escola, fotografia, 2014.

 

            E é nesse espaço tão particular no cenário da região, que nós, pesquisadores do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq), desenvolvemos o projeto de extensão PhotoGraphein vai à Escola[iii],  desde 2014. E isso só é possível pela mediação realizada pela professora de Artes da escola, Xênia Juliano Fidalgo Velloso, também pesquisadora do Núcleo.

O título deste artigo faz uma referência à obra de Marcos Reigota (1999), “A FLORESTA E A ESCOLA: por uma educação ambiental pós-moderna”, que logo na sua apresentação destaca:

 

No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade escreveu que precisamos aprender o que a Floresta e a Escola têm a nos ensinar. Evidentemente que, hoje, poderíamos alargar para além da Floresta e da Escola os espaços possíveis de aprendizagem e das possibilidades da Educação Ambiental. No entanto, essa aparente dicotomia entre a Floresta (natureza) e a Escola (cultura), que Oswald de Andrade tentou romper, continua emblemática aos desafios da ecologia contemporânea e muito próxima dos objetivos gerais da educação ambiental (REIGOTA, 1999, p. 7).

 

E fizemos tal menção, pois é exatamente sobre uma experiência profícua de aproximação entre natureza e cultura que versa este texto.

O “PhotoGraphein vai à Escola” tem como objetivo geral proporcionar a escolares a construção de conhecimentos no campo de Artes Visuais, tendo como tema propulsor a fotografia, utilizando-a como recurso amplificador do olhar sensível e crítico sobre o cotidiano. O projeto propicia o desenvolvimento de um espaço para discussões sobre as práticas e produtos fotográficos como uma possibilidade de ver o cotidiano sob outra perspectiva, propondo o exercício do olhar crítico e a aproximação efetiva das pesquisas acadêmicas do contexto escolar. Tal postura possibilita abordar na escola de forma lúdica a importância de experiências que viabilizam leituras visuais do mundo. Isso, na consideração do papel relevante que as imagens desempenham no cotidiano contemporâneo, suprindo demandas das escolas com relação ao consumo consciente das imagens, e permitindo discussões facilitadoras da construção de um conhecimento teórico-prático em consonância com a realidade.

A nossa proposta foi ao encontro dos anseios da referida instituição, e juntos estamos desenvolvendo uma série de atividades que focalizam particularmente o ecossistema costeiro, e a implicação negativa de comportamentos nada adequados às singularidades desse espaço, tanto por parte do seu público frequentador, assim como do poder público.

Devido a sua extensão a praia do Cassino é muito frequentada, em especial no verão. Nela é possível se deslocar de carro desde o Balneário até a fronteira com o Uruguai, e isso agrava o problema de descarte do lixo dos visitantes. No seu núcleo central encontramos lixeiras e banheiros químicos, mas conforme nos afastamos do centro eles desaparecem. Esse fato, somado à falta de cuidado dos veranistas, faz com que as dunas de areia branca se transformem, em alguns locais, em verdadeiras lixeiras a céu aberto.

Também é preciso destacar que a necessidade de dragagens, para a manutenção do calado necessário a uma navegação segura através da Barra do Rio Grande, provoca o depósito de barro em determinados trechos da orla. Ou seja, o lixo somado ao barro vem periodicamente transformando a paisagem costeira como uma marca cruel de ações nocivas ao meio ambiente.

 

Figura 2: Cláudia Brandão, Montando Câmeras Lata-de-Sardinha, fotografia, 2014.

 

Em nossa primeira intervenção, em novembro de 2014, permanecemos durante os dois turnos de funcionamento da escola, apresentando vários equipamentos fotográficos, discutindo sobre as práticas artesanais da fotografia e conduzindo atividades práticas de construção de câmeras lata-de-sardinha (Figura 2). Esse é um tipo específico de câmera pinhole, caracterizada pela utilização de uma lata de sardinha como base para sua construção, e do uso de filme fotográfico como material fotossensível.

 

Figura 3: Cláudia Brandão, A praia e o barro, fotografia, 2014.

 

E nada mais apropriado para a experimentação das novas câmeras do que uma caminhada pela orla da praia (Figura 3). Na época era impossível não reparar no barro depositado na beira d’água, formando blocos resistentes misturados a restos de plantas, animais marinhos e lixo (Figura 4).

 

Figura 4: Cláudia Brandão, Pegadas, fotografia, 2014.

 

            Aproveitamos a presença do barro para discutir sobre a sua origem e o impacto de sua presença aterrando o local. Além dos registros fotográficos resultantes, o nosso primeiro encontro com a garotada do Peixoto Primo foi importante para a introdução de uma discussão acerca de questões ambientais pertinentes às especificidades da linha litorânea, pois:

 

Sabemos que a educação ambiental veio para ficar e que a sua continuidade depende da pertinência das nossas respostas aos desafios que surgem nas escolas, nas florestas, nos sindicatos, nas igrejas, nos movimentos sociais, nas empresas, nas universidades, nos museus, nas ruas, etc., esperando torná-la elemento intrínseco do nosso cotidiano (REIGOTA, 1999, p. 9).

 

Com o apoio da professora Xênia as nossas ações reverberaram, e a sua iniciativa de criar um grupo fechado no facebook, o “PhotoGraphein vai ao Peixoto Primo”, estabeleceu um canal de comunicação permanente entre os escolares e os universitários.

Em 2015 demos continuidade às nossas atividades e dessa feita construímos uma câmera escura gigante no alpendre do prédio de madeira da biblioteca (Figura 5). Nossa visita à escola repercutiu e o projeto foi destaque no site da Prefeitura Municipal de Rio Grande[iv]. Além disso, as imagens fotográficas se transformaram em postais e foram distribuídas à comunidade cassinense, durante a exposição “Círculo das Águas”; visita ao atelier do artista Marcelo Calheiros aconteceu, e com a colaboração de grafiteiros, estudantes do curso de Artes Visuais - Bacharelado, da UFPel, os muros da escola foram recobertos por  pinturas alusivas à problemática do barro na praia.

 

Figura 5: Cláudia Brandão, Construindo uma Câmera Escura, fotografia, 2015.

A praia se tornou o foco das discussões nas aulas de Artes da professora Xênia, e as turmas passaram a vê-la sob uma nova ótica, um olhar fotográfico que problematiza questões ambientais caras à comunidade rio-grandina.

Ao longo dos últimos anos fomos somando forças, escola e universidade se tornaram parceiras em diferentes propostas, todas voltadas para a discussão acerca de mentalidades e comportamentos que impactam o planeta e a nossa qualidade de vida.

Para conseguir entender a relação dos estudantes da EMEF Peixoto Primo com a praia é de suma importância salientar que este é o contexto vivencial dos envolvidos no projeto. Estes estudantes moram em um bairro relativamente afastado do centro do balneário, porém, isso faz com que eles tenham uma relação de pertencimento para com a praia do Cassino e o mar, diferente dos demais rio-grandinos. Muitas pessoas que frequentam esse espaço estão ali temporariamente, e desfrutam da praia como bem entendem. Para essas crianças, a região costeira em que vivem não está ali apenas por uma época do ano, mas sim todos os dias. Enquanto a rotina ‘normativa’ de outros escolares acontece no meio urbano, entre prédios e asfalto, a dos frequentadores do Peixoto Primo se dá na praia, onde o oceano pode ser visto através da janela.

            Em maio deste ano retornamos à escola para dar continuidade às atividades do projeto, participando de uma atividade especial que mais uma vez envolveu a praia. Trata-se de um Festival de Esculturas na Areia[v], organizado pela professora Xênia, que em sua segunda edição encantou a todos, provocando nos estudantes brilho nos olhos, não somente por estarem fora da sala de aula, mas, principalmente, por estarem em contato com um lugar de muito afeto, em que se reconhecem. Essa foi uma experiência intensa e prazerosa, pois além de instigar a relação de companheirismo e coletividade das turmas de sexto a nono ano, também ajudou a reforçar a ideia de pertencimento e respeito de cada um perante o espaço em que habitam.

 

Figura 6: Festival de Esculturas na Areia, acervo da escola, 2017.

 

            O impacto da relação afetiva dos estudantes desta escola para com a praia se reflete profundamente no tratamento que os mesmos têm para com o local. É interessante analisar o aprofundamento das discussões ao longo dos últimos anos, percebendo o desenvolvimento do senso político e da responsabilidade na garotada, embora sua pouca idade. As atividades que vem sendo realizadas pela professora Xênia, somadas às propostas do “PhotoGraphein vai à Escola”, reforçam a conscientização para com o uso da praia, ajudando cada criança a entender que aquele local precisa ser respeitado. E tal respeito implica na consciência de que ele não deve ser explorado indevidamente, visto a riqueza de sua biodiversidade, sendo que a poluição provocada pelos humanos e suas práticas desrespeitosas tem sérias consequências para o círculo da vida ali estabelecido.

 “O enfraquecimento de uma percepção global leva ao enfraquecimento do senso de responsabilidade – cada um tende a ser responsável apenas por sua tarefa especializada –, bem como ao enfraquecimento da solidariedade – ninguém mais preserva seu elo orgânico com a cidade e seus concidadãos” (MORIN, 2003, p. 18). Logo, a preservação dos ecossistemas costeiros é um assunto que permeia a contemporaneidade frente ao descaso de muitos cidadãos para com essa região. A vida dos animais marinhos e de todas as espécies que habitam o universo litorâneo está cada vez mais prejudicada. É necessário aprender a se (re)conhecer neste espaço e criar fortes vínculos de pertencimento, não apenas no âmbito escolar, mas, principalmente, no comunitário. Acreditamos que com nossas ações, associando universidade e escola, estamos agindo como facilitadores para que os estudantes percebam a possibilidade de serem uma influência positiva, (trans)formadora, no seio de suas comunidades.

            O PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação tem como proposta ser um espaço de encontro para pessoas interessadas em refletir sobre as vivências cotidianas e seus imaginários em diferentes contextos. Investimos em pesquisas nas quais a linguagem fotográfica está associada aos processos educativos e de formação docente. Somos um coletivo que explora a foto-graphia como matéria de expressão e singularização, trabalhando em prol da educação com potência de transformação social.

Unidos significativamente à EMEF Peixoto Primo, através da professora Xênia Velloso e das Artes, vemos a cada dia a reverberação de nossos ideais e ideias, colaborando para a promoção de um ensino escolar com qualidade, pautado na interdisciplinaridade. Acreditamos ser importante aguçar a sensibilidade aliada à reflexão crítica, permeada por questões sociais, políticas e ecológicas. Consideramos que a Arte é uma parceira fundamental para a criação e fruição do olhar sensível, visto que mais do que nunca é necessário (re)conhecer para (re)existir, (re)pensando as práticas para (re)formar mentalidades, como propõe Morin.

 

 

Referências:

 

MORIN, Edgar. A CABEÇA BEM-FEITA: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

REIGOTA, Marcos. A FLORESTA E A ESCOLA: por uma educação ambiental pós-moderna. São Paulo: Cortez, 1999.

 

 



[i] Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes, Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação( UFPel/CNPq). attos@vetorial.net

[ii] Acadêmico do curso de Artes Visuais – Modalidade Licenciatura (CA/UFPel), pesquisador do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq), bolsista PROBEC/UFPel do projeto de extensão “PhotoGraphein vai à Escola”. gui_sirtoli@hotmail.com

[iii] Projeto de Extensão do Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas,  coordenado pela professora Cláudia Brandão, integrando as ações do Programa Arte, Educação e Cidadania, da referida universidade, coordenado pela professora Nádia Senna.

[v] Para maiores informações sobre o evento acessem o nosso blog, disponível em: http://photographein-pesquisa.blogspot.com.br/

 

Ilustrações: Silvana Santos