Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Relatos de Experiências
06/12/2018 (Nº 66) A PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS SOBRE O PROJETO AMBIENTAL “PÉ-DE-PINCHA”
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A PERCEPÇÃO DE CRIANÇAS SOBRE O PROJETO AMBIENTAL “PÉ-DE-PINCHA”

Gelciane da Silva Brandão1, Naiara Batista de Vasconcelos2, José Vicente de Souza Aguiar3

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia, Universidade do Estado do Amazonas. brandaoanny@hotmail.com.

2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia, Universidade do Estado do Amazonas. naiarabavasc@hotmail.com.

3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia da Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior, Av. Djalma Batista s/n. Manaus, AM. vicenteaguiar1401@gmail.com.



Resumo: Este artigo foi realizado na Escola Municipal São Pedro do Parananema no município de Parintins/AM, que desenvolve práticas educacionais de educação ambiental utilizando a temática dos quelônios amazônicos. O objetivo geral foi realizar um exercício fenomenológico do mundo da criança relacionado ao projeto ambiental “Pé-de-Pincha”. O problema de pesquisa visou responder: como o projeto “Pé-de-Pincha” é representado pela criança, como ser-no-mundo? A pesquisa qualitativa nos possibilitou a descrição interpretativa dos dados, tendo como base o método fenomenológico de (MERLEAU-PONTY, 1999). No referencial teórico destacamos um breve histórico sobre a Educação Ambiental consagrada em diversos encontros nacionais e internacionais. Conclui-se através dos desenhos que as ações práticas do projeto suscitam nas crianças uma percepção não-representacional, possível pela facticidade (no contato com o mundo vivido).

Palavras-chave: Percepção. Criança. Pé-de-Pincha.

Abstract: This article was carried out at the São Pedro do Parananema Municipal School in the municipality of Parintins / AM, which develops environmental education educational practices using the theme of Amazonian chelonians. The general objective was to carry out a phenomenological exercise of the child's world related to the environmental project "Pé-de-Pincha". The research problem was aimed at answering: how is the "Pé-de-Pincha" project represented by the child, as being-in-the-world? Qualitative research enabled us to interpret the data, based on the phenomenological method of (MERLEAU-PONTY, 1999). In the theoretical framework, we highlight a brief history on Environmental Education enshrined in several national and international meetings. It is concluded from the drawings that the practical actions of the project give children a non-representational perception, possible by facticity (in contact with the lived world)

Keywords: Perception. Kid. Pé-de-Pincha.



Introdução

Este artigo foi desenvolvido na Escola Municipal São Pedro do Parananema no município de Parintins/AM, que a mais de quinze anos desenvolve atividades de educação ambiental no Ensino Infantil utilizando a temática dos quelônios amazônicos por meio do projeto denominado “Pé-de-Pincha”.

O objetivo geral foi realizar um exercício fenomenológico do mundo da criança relacionado a proteção dos quelônios. O problema de pesquisa visou responder: como o projeto “Pé-de-Pincha” é representado pela criança como ser-no-mundo?

Optamos por descrever a experiência primeiro utilizando a técnica de desenho e posteriormente por meio do diálogo, pois somente o desenho na pesquisa tem um alcance limitado, por isso, desenvolvemos ações visando fazer a experiência falar. A tese da percepção da qual trata Merleau-Ponty (1999) é de que a experiência, a cada momento, pode ser reinventada considerando à do momento que a antecede e a do momento posterior, ou seja, uma psicologia descritiva em uma perspectiva que a nossa visão não alcança.

Como ser-no-mundo, a criança percebe o mundo a partir das influências do meio em que vive. Assim, a representação dos desenhos em relação ao projeto ambiental “Pé-de-Pincha” é de cunho não-representacional por parte das crianças, ou seja, não há intenção de desenhar de maneira fiel ao que vive, mas a partir de sua facticidade, de seu contato com o mundo vivido, como parte de uma unidade percebida.

Da preservação dos quelônios da espécie tracajá (Podocnemis unifilis) destacamos as análises a partir do desenho das crianças: 1º a coleta dos ovos pelos agentes ambientais voluntários (grupo voluntário constituído por professores e comunitários); 2º o transplante em covas no quintal da escola; 3º a eclosão (nesta fase ocorre a alimentação) e 4º a soltura dos quelônios.

Concluímos que as atividades proporcionam estímulos visuais e cognitivos, de maneira não-representacional sobre educação ambiental a partir do projeto “Pé-de-Pincha”, percepção que é influenciada pelas ações de educação ambiental no Ensino de Ciências através de atividades organizadas por docentes da escola.



Metodologia

O local da pesquisa foi a Escola Municipal São Pedro do Parananema no município de Parintins/AM, localizada em uma área semiurbana. Na escola funcionam séries de educação infantil e ensino fundamental.

Figura 1: Escola Municipal São Pedro

A escola foi fundada em 2007 conforme o decreto municipal de 4 de setembro de 1979. Mas em 2007 o decreto de nº 030/2003, de 11 de fevereiro de 2003, classificou o educandário como integrante da zona rural do município de Parintins/AM.

A pesquisa foi de cunho qualitativa, pois entendemos que o fenômeno em estudo possui sua complexidade, visto tratar do entendimento de um fato de natureza humana e difícil quantificação. A relação qualitativa da pesquisa se baseia na descrição e análises profunda/densa dos fatos. Segundo Creswell (2010, p. 209) a pesquisa qualitativa segue algumas características dentre estas de cunho interpretativo:

A pesquisa qualitativa é uma forma de investigação interpretativa em que os pesquisadores fazem uma interpretação do que enxergam, ouvem e entendem. Suas interpretações não podem ser separadas de suas origens, história, contextos e entendimentos anteriores. Depois de liberado um relato de pesquisa, os leitores, assim como os participantes, fazem uma interpretação, oferecendo, ainda, outras interpretações do estudo. Com os leitores, os participantes e os pesquisadores realizando interpretações, ficam claras as múltiplas visões que podem emergir do problema.

Procedemos primeiramente com um exercício de desconhecimento do fato, considerado fundamental para a construção interpretativa da pesquisa qualitativa, pois a intenção é olhar os acontecimentos, os agentes, a partir de um olhar investigativo; mesmo reconhecendo que o investigador, a partir de um dado momento, fica “tipicamente envolvido em uma experiência sustentada e intensiva com os participantes” (CRESWELL, 2010, p. 211).

A fenomenologia é o método que norteou a pesquisa, com a intenção de nos fazer refletir primeiro sobre a percepção das crianças e segundo pela nossa percepção. Segundo Silva (2017) a fenomenologia já foi considerada um assistente precário para a pesquisa:

Do ponto de vista tradicional, tanto a filosofia antiga, quanto a filosofia moderna no seu sentido mais clássico, consideravam a percepção ou um auxiliar muito precário do conhecimento ou um elo que só vinha atrapalhar o processo cognitivo, e principalmente porque nós fazemos uma experiência às vezes até intensa e dramática de que muitas vezes a nossa percepção nos engana. A nossa visão, a nossa audição, a maneira pela qual percebemos as coisas, principalmente aquelas que estão mais longe de nós, tudo isso passa por uma série de circunstâncias que depois nós percebemos que é preciso corrigir (SILVA, entrevista 2017)

Essa compreensão de que a fenomenologia era um método frágil passou a ser questionada no século XX por Maurice Merleau-Ponty que levantou o seguinte questionamento. “Quando estamos no mundo, ainda sem a ideia a ser concebida, o que nos influi mais é a percepção que temos das coisas, a maneira como elas chegam até nós via nossa sensibilidade ou é o nosso pensamento já elaborado acerca das coisas?” (SILVA, 2017). A conclusão que apresenta Merleau-Ponty (1999) é de que a percepção é a primária relação que temos com as coisas (psicologia infantil), onde não somos o resultado de causalidades que definem o nosso corpo, “[...] eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 03). Nesse sentido, a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty destaca as condições de experiências no mundo como elementos fundantes dos nossos modos de ser, de pensar e de viver.

As técnicas da pesquisa foram desenhos e diálogo, precedidos de uma análise descritiva a partir do desenho de quatro crianças do 3º ano do ensino fundamental da Escola Municipal São Pedro do Parananema no município de Parintins/AM. A compreensão das manifestações das crianças não representa uma verdade absoluta, mas corresponde a dados relativos a um momento histórico, social e local, visto que o corpo se expressa dentro de um ambiente, e como filosofia a fenomenologia repõe as essências na existência MERLEAU-PONTY (1999). Ou melhor, as essências são substanciadas nas experiências de existências no mundo.



Conceitos da Educação Ambiental

Em 1975 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/UNESCO definiram a Educação Ambiental como sendo um processo que visa:

[...] formar uma população mundial consciente e preocupada com o ambiente e com os problemas que lhe dizem respeito, uma população que tenha os conhecimentos, as competências, o estado de espírito, as motivações e o sentido de participação e engajamento que lhe permita trabalhar individualmente e coletivamente para resolver os problemas atuais, além de impedir que se repitam (SEARA FILHO, G. 1987, p. 43).

Na Conferência de Estocolmo, em 1972 a definição adotada para educação ambiental foi a seguinte:

A finalidade da educação ambiental é formar uma população mundial consciente e preocupada com o ambiente e problemas com ele relacionados, e que possua os conhecimentos, as capacidades, as atitudes, a motivação e o compromisso para colaborar individual e coletivamente na resolução de problemas atuais e na prevenção de problemas futuros (UNESCO, 1976, p.2).

Neste mesmo entendimento seguiram as definições de Educação Ambiental, a I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental/TBILISI, ocorrida na Georgia (ex-URSS) que definiu a Educação Ambiental como uma dimensão dada ao conteúdo e à prática da educação, orientada para a solução dos problemas concretos do meio ambiente, através de enfoques interdisciplinares e de uma participação ativa e responsável de cada indivíduo e da coletividade no sentido de assumir o compromisso com a preservação da natureza e da sociedade.

O conceito de educação ambiental definido pela comissão interministerial na preparação da ECO-92 englobou outras dimensões, conforme destacam Leão e Silva (1995, p. 28:

A educação ambiental se caracteriza por incorporar as dimensões socioeconômica, política, cultural e histórica, não podendo se basear em pautas rígidas e de aplicação universal, devendo considerar as condições e estágios de cada país, região e comunidade, sob uma perspectiva histórica. Assim sendo, a Educação Ambiental deve permitir a compreensão da natureza complexa do meio ambiente e interpretar a interdependência entre os diversos elementos que conformam o ambiente, com vistas a utilizar racionalmente os recursos do meio na satisfação material e espiritual da sociedade, no presente e no futuro.

A Lei nº 9.795/99 dispôs sobre a Educação Ambiental e instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, em seu artigo 1º aponta o entendimento da educação ambiental como:

Os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade (BRASIL, 1999, p. 02).

É importante registrar que o artigo 1º descreve o Meio Ambiente como uso de bem comum do povo em consonância com o disposto na Constituição Federal (1988) e como base nas condições de reprodução da vida de forma saudável. Já o artigo 2º impõe ser a Educação Ambiental “um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal” (BRASIL, 2013, p. 02).

O artigo 3º da Política Nacional de Educação Ambiental, Lei nº 9.795/99, descreve as atribuições de cada setor da sociedade e desta como um todo na condução dos processos educativos voltados ao meio ambiente, definindo, no capítulo II destaca que é dever das instituições educativas “promover a educação ambiental de maneira integrada aos programas educacionais que desenvolvem” (BRASIL, 1999, p. 03).

A Política Nacional de Educação Ambiental; em seu artigo 5º, IV preconiza o incentivo a participação, seja esta individual ou coletiva, e entende que esta defesa ao meio ambiente é um ato que não pode ser separado do dia a dia do cidadão; defende a “construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundamentada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade” (BRASIL, 1999, p. 04).

Como observamos, os textos definidores das preocupações e cuidados ambientais reconhecem a urgência de medidas tanto do ponto de vista das ações, quanto no que diz respeito a uma formação de conduta voltada para o cuidado com a natureza e a sociedade, pois ambas estão interligadas. O que pode ser visto pelas diversas Conferências internacionais, que conferiram à educação ambiental um caráter socioambiental. Sobre o objetivo geral da Educação Ambiental, Dias (1993, p. 203) conceitua da seguinte forma:

O objetivo geral da educação ambiental é formar cidadãos ativos que saibam identificar os problemas e participar efetivamente de sua solução e prevenção. Que ajudem a conservar o nosso patrimônio comum, natural e cultural; que ajam, organizem-se e lutem por melhorias que favoreçam a sobrevivência das gerações presentes e futuras da espécie humana e de todas as espécies do planeta, em um mundo mais justo, saudável e agradável que o atual.

A educação ambiental se constitui como elemento edificante, portanto um princípio que não pode ser dispensado para cidadania. Fiorillo (2002, p. 41), compreende que como processo, deve resultar em atitudes, conforme apontamos, a seguir:

a) reduzir os custos ambientais, à medida que a população atuará como guardiã do meio ambiente; b) efetivar o princípio da prevenção; c) fixar a ideia de consciência ecológica, que buscará sempre a utilização de tecnologias limpas; d) incentivar a realização do princípio da solidariedade, no exato sentido que perceberá que o meio ambiente é único, indivisível e de titulares indetermináveis, devendo ser justa e distributivamente acessível a todos; e) efetivar o princípio da participação, entre outras finalidades.

Considerando a perspectiva de Educação Ambiental apontada por Fiorillo (2002, p. 41), destacamos que ela precisa ocorrer com estímulo para a efetivação do princípio da participação, de modo a envolver a sociedade como partícipe tanto das preocupações, quanto das soluções. É preciso estimular a formação de consciência ecológica e de uma atitude de solidariedade. Tais fundamentos devem ser decorrentes do ato de educar ambientalmente.

A percepção da criança sobre o projeto Pé-de-Pincha11

Neste primeiro contato com as crianças, realizamos um diálogo informal. Primeiro perguntamos: vocês já ouviram falar sobre Educação Ambiental? A maioria manifestou que sim. Em seguida perguntamos: como foi esse contato com o tema? As respostas das crianças relataram dois projetos: o primeiro sobre o dia da árvore com plantio de mudas ao redor da escola e o segundo sobre o projeto “Pé-de-Pincha”. Por fim, perguntamos sobre qual projeto eles gostariam de desenhar; a maioria escolheu o projeto “Pé-de-Pincha”, mais ainda havia restado uma dúvida e resolvemos indagar: porque a escolha por esse projeto? Eles relataram que é neste projeto que ocorre uma participação mais expressiva das crianças, como destacam:

A escola faz muitas coisas nesse projeto e deixa a gente participar”;

Tem um monte de atividade que a gente faz, pintura, desenho, brincadeira, teatro, dança [...]”;

Tem música também, a gente ajuda a colocar o ovo na cova do tracajá”;

Podemos alimentar os tracajás depois que nascem”;

A escola faz festa quando vai soltar os tracajás para eles voltarem para a casa deles no meio ambiente” (RELATOS DAS CRIANÇAS DO 3º ANO, 2017).

Assim, pedimos aos alunos que desenhassem sobre o projeto “Pé-de-Pincha” de forma livre. Neste primeiro momento disponibilizamos recursos como lápis de cor e papel A3. Os desenhos tiveram diferentes enfoques, alguns apenas desenharam o tracajá (Podocnemis unifilis), outros detalharam mais as atividades do projeto.

De acordo com Merleau-Ponty (1999) o mundo percebido é realizado concomitante ao mundo vivido, por meio dos nossos sentidos, o que parece, num primeiro momento, que o conhecemos “[...], já que não são necessários instrumentos nem cálculos para ter acesso a ele e, aparentemente, basta abrir os olhos e nos deixarmos viver para nele penetrar. Contudo, isso não passa de uma de uma falsa aparência” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 01).

Por isso, foram descritas as percepções das crianças, a partir de suas experiências no projeto ambiental “Pé-de-Pincha”. Assim buscamos analisar os desenhos a partir da concepção de corpo como expressão e a fala das crianças, pois é o corpo que experiência as ocorrências do mundo (MERLEAU-PONTY, 1999).

O foco da discussão ateve-se em compreender como se dá a construção do mundo da criança em relação ao projeto ambiental “Pé-de-Pincha”, tendo esta como ser-no-mundo? Para Merleau-Ponty (1999) a subjetividade torna intersubjetividade, pois o eu relaciona-se com os outros e vice-versa.

Através desta atividade pudemos observar que as crianças desenharam diferentes fases do projeto. Assim, destacamos quatro desenhos que representam como as crianças percebem as ações do projeto: 1º – a coleta dos ovos pelos agentes ambientais voluntários (grupo de voluntários constituído por professores e comunitários); 2º – o transplante em covas no quintal da escola; 3º – a eclosão (nesta fase ocorre a alimentação) e 4º – a soltura dos quelônios e posteriormente realizamos uma conversa informal, para que a criança explicasse sobre os elementos presentes no desenho. “Procurando descrever o fenômeno da fala e o ato expresso de significação, poderemos ultrapassar definitivamente a dicotomia clássica entre o sujeito e o objeto” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 237).

Na Figura 2 – a criança desenhou a primeira fase do projeto ambiental “Pé-de-Pincha”, o cenário contém elementos da natureza (árvores, o quelônio, a água, as nuvens) e de intervenção humana (escola e canoa); sem diálogo a descrição de nossa percepção sob a percepção da criança seria ausente de subsídios. Merleau-Ponty (1999, p. 239) lembra que: “[...]A palavra não é desprovida de sentido, já que atrás dela existe uma operação categorial, mas ela não tem esse sentido, não o possui: é o pensamento que tem um sentido, e a palavra continua a ser um invólucro vazio”.

Assim, optamos pela explicação da criança sobre o seu desenho, e esta relatou o seguinte:

Eu desenhei o dia que o homem vai pegar os ovos do tracajá para trazer para o quintal da escola. Ele pega os ovos bem cedo, quando o sol está nascendo. Eu desenhei esse tracajá colocando o ovo no sol porque eu aprendi com minha professora que assim vai nascer mais fêmeas, e são muitos ovos! As pessoas vão de canoa e tem um rabeta22 é assim que eles vão, depois eles trazem esses ovos para a escola (CRIANÇA 01, diálogo, 2017).

Figura 2: Criança 01 – A coleta dos ovos de quelônios

A fala da criança sobre o desenho na figura 2, nos revela que a experiência originária no mundo, é percebido pela criança como uma consciência perceptiva, ou seja, encontra-se imbricada na relação com o vivido, do pré-reflexivo, é originária não por ser anterior as outras experiências, mas porque as torna possíveis (MERLEAU-PONTY, 1999).

Perguntamos para a criança ainda em relação a Figura 2 – por que você escolheu desenhar esta fase do projeto? E esta destacou:

Para mim essa fase é muito bonita. A professora mostra no vídeo como é o local onde eles pegam os ovos. Eu acho legal porque nós não podemos ir lá, é perigoso para criança, mas é bom porque eles tiram foto, filmam tudo e ensinam depois para a gente como é (CRIANÇA 01, diálogo, 2017).

A criança percebe que esta fase do projeto é importante porque desperta seu interesse, mas é ao mesmo tempo não-representacional, ela consegue assimilar informações através de experiências que o livro didático não consegue alcançar, embora sua intenção não seja de firmar uma realidade fidedigna. Dessa forma, deixamos que as crianças realizassem “[...] uma primeira maneira de estruturar as coisas” – essa é a maneira que (MERLEAU-PONTY, 1990b, p. 268) descreve um desenho não-representacional.

Na Figura 3 – a criança desenhou a segunda fase do projeto, ao explicar os elementos a criança destacou:

Eu desenhei uma árvore que é a castanheira que fica no quintal da escola. Desenhei o sol porque é melhor para colocar os ovos nas covas. Eu fiz a professora levando os ovos para o berçário e também fiz os alunos que ficam esperando do lado de fora, para não pisar das covas. A professora colocar uns paus pequenos em cada cova para marcar o dia que chegou aqueles ovos. A gente pode ajudar a colocar os ovos na cova, mas tem que ser com cuidado (CRIANÇA 02, diálogo, 2017).

Figura 3: Criança 2 – O transplante dos ovos de quelônios

A fala da criança na Figura 3 demonstra sua participação, no contato com o mundo percebido e possível por meio do projeto. Essa percepção da criança é factível, ela se percebe em contato com a natureza, nas ações desenvolvidas pela escola, criando suas significações. Para Merleau-Ponty (1999, p. 250) “[...]O mundo linguístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de um mundo já falado e falante que refletimos”.

Sobre a Figura 3 – perguntamos: por que você escolheu desenhar esta fase do projeto? E a criança 2 destacou:

Eu gosto de ir ajudar a professora a colocar os ovos na cova, ela fala que é a casinha do tracajá, que ele vai ficar lá por um tempo até nascer, daí todo o dia a gente vai olhar lá no berçário pra ver se tem formiga ou se algum animal foi lá querer pegar os ovos. A gente vigia também assim para ter mais na natureza (CRIANÇA 02, diálogo, 2017).

A forma como a criança se expressava passava um sentimento de pertencimento, de cuidado, de certo orgulho de pode fazer parte deste momento, o olhar da criança para o local onde são transplantados os ovos é marcado por um silêncio que fala. Seu olhar se voltava para o berçário dos tracajás (Podocnemis unifilis) que fica a menos de 4m da escola, faz parte do cotidiano das crianças, mas Merleau-Ponty (1999, p. 250) destaca que “[...]Nossa visão sobre o homem continuará a ser superficial enquanto não remontarmos a essa origem, enquanto não reencontramos, sob o ruído das falas, o silêncio primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe esse silêncio”.

Na Figura 4 – uma das crianças desenhou a fase que os quelônios nascem, dando destaque para a natureza (tracajás, água, árvore, sol) e para o homem. “A identidade da coisa através da experiência perceptiva é um outro aspecto da identidade do corpo próprio no decorrer dos movimentos de exploração” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 252). Portanto não podemos ignorar a percepção que a criança faz daquilo que desenhou. A criança 3 destacou o seguinte sobre seu desenho:

Eu desenhei os tracajás no tanque, tem a professora e os alunos colocando no tanque. Quando eles saem do buraco onde eles ficaram já pode colocar na água, eles sabem nadar, eu já vi. Depois a gente pode alimentar com frutas, capim. Quando tem a troca da água a gente pode olhar também. Eu não tenho medo de pegar neles não, eles são pequenos (CRIANÇA 03, diálogo, 2017).

Figura 4: Criança 3. A eclosão dos quelônios

A participação da criança forma a sua experiência em relação ao projeto, convivendo diretamente como ser-no-mundo. Esse olhar é de uma criança, certamente na ótica de um adulto as explicações seriam diferentes, pois a criança vive o momento. Segundo Machado (2010, p. 119) para Merleau-Ponty a percepção da criança sempre será não-representacional, onírico (na descrição do adulto) e polimorfo – assim, diferente de qualquer pessoa. “[...]Isso nos leva ao encontro de uma criança que se mostra plástica, maleável, imaginativa; que convive conosco, mas transita por outra lógica, outros modos de pensar, sentir e agir” (MACHADO, 2010, p. 119).

Na Figura 5 – a criança desenhou a última fase do projeto, que é a soltura dos quelônios na natureza, este é momento que a escola programa diversas apresentações (dança, música, paródia, jogral, teatro, dança). A criança 4 fez o seguinte comentário sobre o desenho:

Eu desenhei a soltura porque é nesse momento que vamos devolver os animais para o meio ambiente, no rio. Toda a escola participa, é um dia de festa. Eu fiz o sol, os enfeites de bandeira, as pessoas, os foguetes, e os quelônios no rio, eles vão embora (CRIANÇA 04, diálogo, 2017).

Figura 5: Criança 4 – A soltura dos quelônios

No processo de ensino das crianças encontram-se dependentes dos professores nas diferentes fases do projeto, assim estabelecem suas significações, conhecendo o mundo. Para Machado (2010, p. 123 ) “[...]a criança é performer de sua vida cotidiana, suas ações presentificam algo de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir – e, se olhada nesta chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção de sua responsabilidade e independência, no decorrer dos primeiros anos de sua presença como ser-no-mundo”.



Figura 6: Atividade de desenho

Para a fenomenologia merleau-pontyana, a criança é um ser-no-mundo, com suas limitações, em função da falta de maturidade de seu corpo e pelas influências do seu cotidiano, sobre o que é acessível a si. A criança aprende diferente de um adulto, isso é fato. A partir dos desenhos sobre o projeto “Pé-de-Pincha” o pensamento da criança é evidenciado como não-representacional. A criança vive o mundo, no desenho seu propósito não é realista muito menos figurativa (MERLEAU-PONTY, 1990a).

Contudo, “[...] o intuito do desenho infantil é, pois, nos dar a unidade da coisa, enquanto que o do adulto é nos explicar uma só das perspectivas do objeto” (MERLEAU-PONTY, 1990b, p. 264). E a partir dessas perspectivas é que um docente pode evidenciar possíveis articulações ao Ensino de Ciências considerando a temática ambiental.

Conclusão

A temática ambiental a partir de atividades do projeto “Pé-de-Pincha” é recorrente na escola Municipal São Pedro do Parananema, no município de Parintins. Na educação escolar é necessário buscarmos compreender as relações da criança também a partir de sua facticidade, ou seja, do contato com o mundo vivido , dando ênfase para as suas experiências e como elas percebem o meio em que vivem.

O objetivo geral foi realizar um exercício fenomenológico do mundo da criança relacionado a educação ambiental a partir do projeto “Pé-de-Pincha”, buscando perceber suas subjetividades, para além de suas expressões do desenho enquanto linguagem não-verbal.

Nesse sentido o problema de pesquisa visou responder: como o projeto “Pé-de-Pincha” é representado pela criança, como ser-no-mundo? Ao descrever a percepção das crianças sobre os desenhos, por meio de uma psicologia descritiva em uma perspectiva que a nossa visão não alcança concluímos que a criança é influenciada pelo meio que vive, sua atuação é relacional.

Nesse entendimento, a criança enquanto ser-no-mundo, percebe as ações educativas sobre o meio ambiente através do projeto “Pé-de-Pincha” como algo não-representacional, o que desenha e fala reflete o seu contato com o mundo, logo o resultado é uma pequena parte de uma unidade maior.

Para explicar como ocorre as situações não-relacional, foi possível reunir quatro importantes momentos que são fases desenvolvidas com as crianças por meio do projeto: a coleta dos ovos pelos agentes ambientais voluntários (grupo voluntário constituído por professores e comunitários); o transplante em covas no quintal da escola; a eclosão (nesta fase ocorre a alimentação) e a soltura dos quelônios.

Concluímos que as atividades organizadas pelos docentes influenciam na percepção da criança sobre o projeto como ações que promove a educação ambiental no ambiente escolar, através de desenhos de cunho não-representacional as crianças manifestam essas influências por meio de recortes das experiências vividas. Além do mais, valoriza a efetivação do princípio da participação das crianças nas ações e compreensões da problemática ambiental.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 2013.

BRASIL. Lei 9.795/99. Política Nacional de Educação Ambiental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>Acesso em 15 de julho 2018.

CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. [tradução Mágda Lopes; consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição Dirceu da Silva]. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

DIAS, Genebaldo Freire. Educação ambiental: princípios e práticas. 2ª. ed. São Paulo, Gaia, 1993.

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

LEÃO, Ana Lúcia Carneiro, SILVA, Lúcia Maria Alves. Fazendo educação ambiental. Recife: CPRH, 1995.

MACHADO, Marina Marcondes. Infância em cena: Fenomenologia de Merleau-Ponty, descrição, análise e criação teatral. In: http://www.portalabrace.org/vreuniao/textos/pedagogia/Marina_Marcondes_Machado_-_Fenomenologia_de_Merleau-Ponty_descricao.pdf. Acesso em 07 de junho de 2017.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Maurice Merleau-Ponty; [tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura]. – 2ª ed. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas. [tradução Fábio Landa, Eva Landa]. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Filosofia e Linguagem. Campinas: Papirus, 1990a.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Psicossociologia e Filosofia. Campinas: Papirus, 1990b.

SEARA FILHO, Germano. Apontamentos de introdução à educação ambiental. Revista Ambiental,1987.

SILVA, Franklin Leopoldo. Filosofia e Percepção. Casa do Saber. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eZs-4fLUJ9c> Acesso em: 17 de mar. 2017.

UNESCO. Vamos Cuidar do Brasil, conceitos e práticas em educação ambiental na escola. Brasília: Ministério da Educação, Coordenação Geral de Educação Ambiental: Ministério do Meio Ambiente, Departamento de Educação Ambiental, 1976.



Notas

1 Nome dado ao projeto por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) na década de 90, os quelônios deixam marcas na areia muito parecidas com as tampas de metal de refrigerante, conhecida popularmente como “pincha”.

2 Transporte de pequeno porte usado para se deslocar pelos igarapés e rios na região amazônica.



1Nome dado ao projeto por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) na década de 90, os quelônios deixam marcas na areia muito parecidas com as tampas de metal de refrigerante, conhecida popularmente como “pincha”.

2Transporte de pequeno porte usado para se deslocar pelos igarapés e rios na região amazônica.

Ilustrações: Silvana Santos