Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Relatos de Experiências
16/09/2018 (Nº 65) PERCEPÇÃO: ARTICULAÇÃO DO PEIXE PIRARUCU (ARAIPAIMA GIGAS) À DISCUSSÃO AMBIENTAL E AO ENSINO DE CIÊNCIAS
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PERCEPÇÃO: ARTICULAÇÃO DO PEIXE PIRARUCU (ARAIPAIMA GIGAS) À DISCUSSÃO AMBIENTAL E AO ENSINO DE CIÊNCIAS



Gelciane Brandão1, José Vicente de Souza Aguiar2

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia, Universidade do Estado do Amazonas. E-mail: brandaoanny@hotmail.com.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia da Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior, Av. Djalma Batista s/n. Manaus, AM. E-mail: vicenteaguiar1401@gmail.com.



Resumo: O relato de experiência foi produzido a partir da disciplina: “Tópicos Filosóficos e Didáticos do Ensino de Ciências” do mestrado em Educação em Ciências, da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. O local da atividade foi o Mercado Municipal Adolpho Lisboa na cidade de Manaus/AM. O objetivo geral foi realizar um exercício perceptivo dos diferentes ambientes do mercado, considerando a fenomenologia. Consideramos a descrição histórica do ambiente experenciado e a descrição filosófica sobre a palavra sensações, cujo propósito consistiu em responder a seguinte questão: há no mercado municipal Adolpho Lisboa algum elemento que pode ser articulado ao Ensino de Ciências? Conclui-se através desta experiência que o peixe pirarucu (Araipaima gigas), por ser uma espécie ameaçada de extinção e pela sua estrutura física, suscita nas pessoas um olhar de curiosidade, o que possibilita relacioná-lo às discussões sobre Educação Ambiental e Ensino de Ciências, no ensino fundamental principalmente.

Palavras-chave: Educação ambiental. Ensino de Ciências. Peixe pirarucu (Araipaima gigas).



Abstract: The experience report was produced from "Philosophical and Didactic Topics of Science Teaching" discipline of the Master 's Degree in Science Education, from the State University of Amazonas - UEA. The activity site was the Adolpho Lisboa Municipal Market in the city of Manaus / AM. The general objective was to perform a perceptive exercise of the different market environments, considering the phenomenology. We consider the historical description of the environment experienced and the philosophical description on the word sensations, whose intention was to answer the following question: there is in the municipal market Adolpho Lisbon some element that can be articulated to teaching of sciences? It is concluded trough this experience that the pirarucu fish (Araipaima gigas), because it is an endangered species and its physical structure, arouses in the people a look of curiosity, which makes it possible to relate it to the discussions about environmental education in the teaching of sciences, in elementary education mainly.

Keywords: Environmental education. Science teaching. Pirarucu fish (Araipaima gigas).



Introdução

O relato de experiência surgiu de uma prática de campo da disciplina “Tópicos Filosófico e Didático do Ensino de Ciências”, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências/UEA ao Mercado Municipal Adolpho Lisboa no município de Manaus – AM.

A visita ocorreu no dia 08 de outubro de 2017, tendo como objetivo geral realizar um exercício perceptivo dos diferentes ambientes do mercado, considerando a fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1999). Foram produzidas uma abordagem histórica do ambiente experenciado, simultaneamente a uma descrição filosófica sobre a palavra sensações a partir da obra Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (1999). O problema buscou responder: há no mercado municipal Adolpho Lisboa algum elemento que pode ser articulado ao Ensino de Ciências?

Essa atividade foi desenvolvida de modo a possibilitar uma experiência vivida do ponto de vista fenomênico, cujo propósito foi o de perceber as sonoridades, os cheiros, a visualidade dos produtos expostos sobre as bases de sustentação dos pescados, visto que havíamos discutido a importância de termos um olhar disciplinado (OLIVEIRA, 2000), que pudesse realizar a descrição detalhadas das pessoas, dos pescados e dos diversos produtos expostos a venda.

À medida que nos deslocávamos no mercado, era possível ver a diversidade das cores no artesanato (redes, cestarias, bolsas, pião, pulseiras e outros); ouvir as conversas das pessoas, umas na condição de turistas, outras a escolher os produtos para o consumo; as sonoridades musicais e os feirantes oferecendo os seus produtos aos visitantes e ainda sentir os cheiros que se misturavam, como o aroma do cajú, da pimenta do reino, da goiaba, do camarão e do dos peixes regionais de água doce, com seus cheiros particulares e da diversidade de espécies.

Dentre as diversidades de pescados e de produtos artesanais, fizemos a escolha pelo peixe pirarucu (Araipaima gigas) como possibilidade de articulação ao ensino de ciências, com base na leitura do artigo científico de Oliveira (2000) denominado: O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. A possibilidade de dialogar com o agente social nos fez perceber que através desta espécie de peixe, tínhamos como articulá-lo às discussões sobre Educação Ambiental e ao Ensino de Ciência, visto ser essa espécie ameaçada de extinção em decorrência da pesca predatória. Dessa espécie, podemos destacar seus hábitos alimentares, sua reprodução, sua forma tradicional de conservação, submetendo-o ao processo de desidratação – conhecido como “peixe seco”, o que corresponde a uma tecnologia tradicional.

Ressaltamos que essa atividade proporciona estímulos visuais e cognitivos, e condições fundamentais para o ensino de ciências na educação fundamental, podendo ser desenvolvida como atividade de visita técnica in loco, com orientação para o uso da memória precedida de elaboração de registros escritos e visuais; pois a memória funciona, mas seu registro a sustenta, (OLIVEIRA, 2000).



PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa foi de abordagem qualitativa, seguida de uma análise bibliográfica, refletindo sobre os temas: Ensino de Ciências, (DELIZOICOV; ANGOTTI & PERNAMBUCO, 2011) e o método fenomenológico de (MERLEAU-PONTY, 1999). O artigo está dividido em dois momentos: o primeiro relacionado à atividade perceptiva – de descrever a realidade a partir dos sentidos; o segundo toma como referência o tema do peixe pirarucu (Arapaima gigas) como possibilidade de articulação às discussões sobre Educação Ambiental e ao Ensino de Ciências.



ENSINO DE CIÊNCIAS

O Ensino de Ciências na educação passa por discussões, cujo os autores como Delizoicov; Angotti & Pernambuco (2011) levantam o seguinte questionamento: Para quem ensinar Ciências? Torná-la universal e acessível a todos os níveis de ensino não pode ser um privilégio de poucos. O ensino de Ciências precisa centrar-se em atividades de produção de conhecimento, ainda que ocorra em níveis compreensivos básicos.

Há uma postura no âmbito pedagógico que discute à propagação do ensino de ciência no espaço escolar de maneira simplista, com destaque para a assimilação pelos estudantes de conteúdo do campo da ciência. O que pode estar relacionado a história da democratização da educação fundamental pública, ocorrida somente na década de1970. Delizoicov; Angotti & Pernambuco (2011, p. 33) abordam a questão da Ciência para todos como um desafio a ser imposto, sem distinção de classes:

O desafio de pôr o saber científico ao alcance de um público escolar em escala sem precedentes – público representado, pela primeira vez em nossa história, por todos os segmentos sociais e com maioria expressiva oriunda das classes e culturas que até então não frequentaram a escola, salvo exceções – não pode ser enfrentado com as mesmas práticas docentes das décadas anteriores ou da escola de poucos e para poucos.

Existem características distintas do público escolar, com valores, crenças, costumes e outras formas de ser e de viver que não podem ser ignoradas, pois cada um possui uma contextualização de vida diferente. Essa falta de representatividade no ensino de Ciências revela que há uma necessidade de mudança, (DELIZOICOV; ANGOTTI & PERNAMBUCO, 2011).

Essa mudança não ocorre de forma rápida, ela é uma construção coletiva, que envolve a atuação do professor nos diferentes níveis de ensino, e, sobretudo, uma preocupação quanto à formação de professores de Ciências, em diferentes áreas que “[...] constituem lócus privilegiado para que essa disseminação se intensifique, à medida que, sistemática e criticamente, o novo conhecimento produzido pela área de ensino de Ciências passe a permear as ações docentes”, (DELIZOICOV; ANGOTTI & PERNAMBUCO, 2011, p. 41).



FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO

O retorno aos próprios fenômenos do que trata Merleau-Ponty (1999) significa despertarmos uma sensibilidade para um mundo que é anterior ao conhecimento. A percepção segundo Merleau-Ponty (1999) é o primeiro contato que temos com o mundo, mas por uma série de razões que envolvem o nosso viver em sociedade, acabamos esquecendo essa sensibilidade sobre as coisas.

Esses imperativos de reencontrar, de redespertar e de retornar estão conectados ao fato de Merleau-Ponty (1999) levantar a questão do que é a fenomenologia, uma vez que em sua concepção é um “retorno” aos fenômenos – a experiência primeira.

A percepção é o nosso primeiro contato com o mundo, mas por razões de ordem social, biológica, nós gradativamente nos afastamos dessa primeira relação, em que a ideia de verdade passa a ser institucionalizada em nossa mente. Portanto, Merleau-Ponty (1999) destaca que até o que sabemos sobre o mundo, sobretudo do ponto de vista da ciência, se constrói a partir de experiência individual, cujas capacidades de entendimentos são relativas às individualidades dos sujeitos, pois constroem suas percepções sobre as realidades de maneira distinta. Nesse sentido, a linguagem da ciência é da ordem da produção, que requer a construção de um ambiente de aprendizagem que envolva os alunos em atos de experiências.

Do ponto de vista da ciência positivista utilizamos mais as metodologias que nos auxiliam a entender e nos aproximar das coisas, do que perceber a partir de nossas concepções prévias. Para Merleau-Ponty (1999) se almejamos voltar ao estado de origem do nosso conhecimento, é necessário voltarmos ao exercício da percepção, uma pré-reflexão que seria essa vida a originária.



Sensações

A experiência de olhar pela primeira vez o ambiente do Mercado Municipal Adolpho Lisboa do ponto de vista fenomênico nos causa estranheza e uma inquietação com tantos elementos no mesmo espaço.

[...] deveríamos procurar a sensação aquém de qualquer conteúdo qualificado, já que o vermelho e o verde para se distinguirem um do outro como duas cores, precisam estar diante de mim, mesmo sem localização precisa, e deixam, portanto, de ser eu mesmo. A sensação pura será a experiência de um “choque” indiferenciado, instantâneo e pontual (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 23).

No campo fenomênico um “dado perceptivo isolado é inconcebível, se ao menos fazemos a experiência mental de percebê-lo. Mas no mundo existem objetos isolados ou vazio físico”, (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 25).

Merleau-Ponty (1999, p. 25) renuncia o significado de sensação pela impressão pura, e destaca. “[...] ver é obter cores ou luzes, ouvir é obter sons, sentir é obter qualidades, e, para saber o que é sentir, não basta ter visto o vermelho ou ouvido um lá?” A resposta para essa pergunta na ótica de Merleau-Ponty (1999, p. 25) é de que: “[...] O vermelho e o verde não são sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto”.

Nós acreditamos saber muito bem o que é “ver”, “ouvir”, “sentir”, porque há muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisá-la, transportamos esses objetos para a consciência. Cometemos o que os psicólogos chamam de “experience error”, quer dizer, supomos de um só golpe em nossa consciência das coisas aquilo que sabemos estar nas coisas (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 25).

Para Merleau-Ponty (1999) a construção da percepção se dar a partir do que percebemos. “E, como o próprio percebido só é evidentemente acessível através da percepção, não compreendemos finalmente nem um nem outro”, (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 25).

Mas, por estarmos presos ao mundo, em um modo de vida que existe antes de nós chegarmos nele, não conseguimos nos destacar para alcançar a consciência do mundo. Se conseguíssemos alcançar “[...] veríamos que a qualidade nunca é experimentada imediatamente e que toda consciência é consciência de algo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 26).

Este “algo” aliás não é necessariamente um objeto identificável. Existem duas maneiras de se enganar sobre a qualidade: uma é fazer dela um elemento da consciência, quando ela é objeto para a consciência, tratá-la como uma impressão muda quando ela tem sempre um sentido; a outra é acreditar que este sentido e esse objeto, no plano da qualidade, sejam plenos e eternos (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 26).

Portanto, o sensível para Merleau-Ponty (1999) é aprendido nos sentidos, ou seja, é necessário retornar as experiências primeiras a fim de defini-la. Acreditamos que possibilitar aos alunos experenciar uma visita técnica ao mercado Adolpho Lisboa, representa condição de possibilidade para o desenvolvimento dos seus sentidos e, consequentemente, do processo de ensino-aprendizagem.



RELATO DE EXPERIÊNCIA: MERCADO MUNICIPAL ADOLPHO LISBOA – MANAUS/AM

O mercado fica localizado em frente à cidade de Manaus/AM, e no âmbito da experiência perceptiva configura-se em um espaço de sensações. Ter a possibilidade de praticar o olhar, o ouvir, a olfação e o sentir no local como possibilidade de compreensão das subjetividades implícitas foram uma atividade desafiadora.

Fundado em 1882 na administração do Dr. Alarico José Furtado1, o mercado é um dos símbolos áureos da época (entre 1880 a 1910) em que a economia do Estado do Amazonas era oriunda da extração da borracha, exportada para o mercado europeu.

Figura 1: Fachada do Mercado Adolpho Lisboa em Manaus – AM.

Ao entrarmos no ambiente, o som das falas de quem anunciava os produtos – peixes, carnes, frutas, verduras, produtos naturais e as conversas informais, se misturavam. Ao percorrer os corredores do mercado entre as bancas de pescados, de verduras, de frutas, de ervas, percebíamos mudanças dos aromas, indo do cheiro típico dos pescados de água doce aos oriundos das frutas tropicais que exalam cheiros fortes, como o do mari-mari (Cassia leiandra), de aroma expressivo. Para Silva (2008, p. 19) a sensação de entrar no mercado pela primeira vez tem um caráter pitoresco e exótico:

[...] isso se dá, para o visitante, devido ao “estranhamento” com o Mercado. Pode-se generalizar esta sensação para qualquer Mercado Popular do Mundo. Dentro de tais Mercados são visíveis as diversas práticas representativas da cultura local que despertam tais sensações.

Considerando o método fenomenológico como aporte de observação para descrever a experiência, foi possível compreender a dinâmica do mercado, na forma como os produtos estavam organizados, dispostos em locais diferentes de acordo com a sua natureza, secos ou molhados, o que representa uma política de ocupação e usos dos espaços internos do mercado. Os tipos de produtos também são diferentes, há uma relação cultural expressa nos elementos do artesanato, por exemplo, as aves: arara, papagaio, garça, e outras espécies esculpidas nas madeiras são da fauna amazônica.

Os produtos que trazem a informação da cultura regional são os que apresentam sua origem, quase sempre, no extrativismo: frutas regionais, temperos regionais (incluindo o tucupi), artigos religiosos tais quais os órgãos sexuais dos “botos”, as ervas medicinais, o artesanato, o bastão do guaraná, a língua do pirarucu, dentre outros. Essas mercadorias fazem parte de uma cosmognosia amazônica que o vendedor necessita conhecer (SILVA, 2008, p. 34).

É um lugar heterogêneo e um reencontro com a história; quem vê o mercado pela primeira vez (embora já tenha passado por reformas)2, percebe que no conjunto arquitetônico3 há uma linguagem não-verbal e um simbolismo que remete a uma época histórica, que de forma implícita está adormecida em alguns detalhes do local, como nas colunas, fachadas; há um contraste da arquitetura do passado com o presente. Para outros é um lugar de compra, mas principalmente de venda. “[...] para a maioria dos agentes, que participam de seu cotidiano de mercado, ele é a fonte de renda; é o lugar do sustento e do trabalho, ele é lugar das inter-relações que dão vida a paisagem cultural” (SILVA, 2008, p. 16).

A paisagem do mercado não é a mesma, a mudança é constante, diferentes pessoas frequentam o ambiente para comprar ou visitar, visto ser um ponto de referência para as atividades turísticas; os produtos são renovados, e a dinâmica do tempo tem sua particularidade, a exemplo, o vento no dia da visita ocorria do Norte, possibilitando sentir o cheiro do camarão e da pimenta, que se espalhava para outros espaços do mercado.

Mesmo se chegássemos no mercado com os olhos fechados saberíamos que não estávamos por exemplo, dentro de um shopping center, pois ambos possuem cheiros, sons diferentes e peculiaridades. Nesta atividade em particular, havia no mercado a mistura de cheiros: da pimenta, do camarão, do cajú, que se sobressaiam, além disso, era possível sentir o calor, ouvir os diferentes sons: das vozes anunciando os produtos, das explicando suas qualidades, o tilintar dos instrumentos utilizados para cortar os pescados. No shopping há uma suavidade de cheiros, a temperatura é agradável e as pessoas mais silenciosas se compararmos com a dinâmica de um mercado popular. A originalidade presente nos mercados regionais é destacada por Barcelar (2008, p. 09).

Se me colocarem uma venda nos olhos, me levarem de avião para uma cidade qualquer e me soltarem na frente de um shopping center, eu não saberei dizer de imediato em que cidade estou. Parece que todos os shoppings centers saíram da cabeça do mesmo arquiteto. Agora, se me desembarcarem em frente ao Ver-o-Peso, eu saberei que estou em Belém, no Pará, se me desembarcarem em frente ao Mercado Modelo, eu saberei que estou em Salvador, na Bahia. Porque o Ver-o-Peso e o Mercado Modelo são resultantes da diferenciação, e o shopping center é resultante da homogeneização.

Percebemos que as diferenças nas inter-relações dentro do mercado a partir do olhar fenomenológico reforçam o pensamento de Merleau-Ponty (1999), em que nossas experiências norteiam o que fazemos no dia a dia, e reforça a teoria da percepção fundada na experiência do sujeito encarnado, do sujeito que olha, sente e, nessa experiência do corpo fenomenal reconhece o espaço como expressivo e simbólico.



O peixe pirarucu (Arapaima gigas): possibilidade de articulação às discussões ambientais e ao Ensino de Ciências

Para Merleau-Ponty (1999, p. 20) “Todos os conhecimentos apoiam-se em um “solo” de postulados e, finalmente, em nossa comunicação com o mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade.” Dessa forma, entendemos a partir do campo fenomênico o mundo, e, nele, incluímos o espaço do Mercado Municipal Adolpho Lisboa em Manaus/AM. Precisamos reconhecer esse relato de experiência como um objeto construído pela sensação, por uma relação de corporalidade do sujeito com o meio vivido, uma construção mediada por uma experiência de ser no mundo.

É importante que façamos comunicação/articulação com o mundo vivido, percebendo suas subjetividades, interagindo e procurando compreender os objetos além de nossa percepção, como um retorno as coisas primeiras, (MERLEAU-PONTY, 1999).

No silêncio da consciência originária, vemos aparecer não apenas aquilo que as palavras querem dizer, mas ainda aquilo que as coisas querem dizer, o núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e de expressão (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12).

Nesse sentido, o relato de experiência no Mercado Municipal Adolpho Lisboa, não é uma intuição, mas é como destaca Merleau-Ponty (1999, p. 92) “[...] ela é a explicitação ou o esclarecimento da vida pré-científica da consciência, que é a única a dar seu sentido completo nas operações da ciência, e à qual estas operações sempre reenviam”. Neste caso, é uma análise intencional, a fim de compreendermos se há possibilidade de articularmos algum elemento do mercado ao ensino de ciências, pois concordamos com Merleau-Ponty (1999) quando destaca que é através da fenomenologia que a percepção revela o mundo.

Durante a atividade de observação, nos chamou atenção o local onde era vendido o peixe pirarucu (Arapaima gigas). Segundo Fontenele (1948) a palavra pirarucu tem origem indígena; sendo que “pira” significa peixe e “urucu” se refere a pele vermelha. “O pirarucu é um verdadeiro documento na evolução da vida, sendo o único representante vivo da remota família Arapaimidae” (RUFFINO, 2005, p. 114). O que o torna um pescado uma simbologia representativa de uma espécie rara, ao mesmo tempo em que chama atenção pelo seu tamanho, se comparamos com a maioria dos peixes da região amazônica.

Vale ressaltar que o peixe pirarucu vem sendo objeto de manejo nas reservas de Amanã e Mamirauá no Amazonas, o que repercute positivamente na geração de renda para os pescadores envolvidos no projeto, ao mesmo tempo em que colabora para a manutenção dessa espécie ameaçada de extinção, (AMARAL, 2009).

A comercialização do peixe é feita de forma congelada ou desidratada. De acordo com a informação do vendedor, o peixe é uma espécie reproduzida em cativeiro, e a melhor forma de venda é na forma de peixe “seco-salgado4” “Aproveitamos para venda a parte chamada de filé (sem espinha) e a ventrecha (com espinha). A gente reproduz em cativeiro o pirarucu para venda por conta da ausência nos rios e a fiscalização; exerço somente a atividade de venda desse produto”, (Vendedor, 2017).

Segundo Imbira (2001, p. 02): “A criação do pirarucu é viável, uma vez que esse peixe apresenta extraordinário desenvolvimento, chegando a alcançar em torno de 10 kg com apenas um ano de criação em cativeiro, e superior rusticidade em ambientes tropicais”.

Figura 02: Pirarucu seco no Mercado Adolpho Lisboa em Manaus – AM.

Através da fala do vendedor há no argumento o princípio da intencionalidade, o que corresponder a ideia de reproduzir o pescado com objetivo de venda. Por ser um peixe de carne saborosa, o pirarucu tem valor comercial positivo, um quilo do filé custa em média R$ 20,00 (vinte reais) no mercado Adolpho Lisboa. “É um peixe que não temos prejuízo, a quantidade que colocamos no dia é vendida. Neste caso esse peixe é reproduzido em cativeiro devido constar na lista de espécie em extinção”, (Vendedor, 2017).

Através dessa experiência foi possível perceber que há possibilidade de articularmos, considerando o que foi visto no mercado, o tema da Educação Ambiental ao ensino de ciências, principalmente tomando como referência à ameaça de extinção de espécies e o procedimento de desidratação do pescado, além da necessidade que os pescadores possuem em manter as espécies de pescados que faz parte da renda para o sustento familiar.

O olhar fenomenológico nos dá possibilidade de perceber além das aparências e explorar os temas, pois a “fenomenologia está completamente envolvida com retornar, redespertar e redescobrir, e, assim, a questão de abertura de Merleau-Ponty pode ser lida como uma aplicação reflexiva sobre esse envolvimento” (CERBONE, 2014, p. 159).



Articulando o tema do peixe pirarucu às discussões ambientais e ao ensino de ciências: alguns procedimentos

A realização desta atividade requer planejamento em que possa ser destacada as potencialidades do local articuladas as discussões ambientais e ao ensino de ciência. Após a apresentação da finalidade da visita técnica aos alunos, é importante esclarecer teórica e metodologicamente o que será feito no local e como prosseguir durante a visita de observação, com destaque para os usos dos sentidos: o ver, o ouvir, o sentir os cheiros e o sentir as sensações. Nesta fase, é necessário realizar os registros escritos e visuais, que darão subsídios imprescindíveis para a fase posterior, relativa a análise e construção do conhecimento sobre a experiência vivenciada.

A descrição fenomenológica consiste em filtrar as imagens, os sons, às falas, os cheiros e o sentir. Nesta atividade as possibilidades no mercado eram inúmeras, poderíamos ter escolhido trabalhar, por exemplo, com as ervas medicinais, as frutas e artesanatos regionais, as especiarias usadas na culinária amazônica, enfim, mas optamos por delimitar no caso do peixe pirarucu (Arapaima gigas) por ser o de maior porte encontrado em água doce, originário da Amazônia, com estimativa de 2 a 3 metros e podendo alcançar até 200kg (OLIVEIRA, 2007).

No âmbito da educação ambiental no ensino de Ciências poderíamos tratar em sala de aula dos seguintes assuntos: a extinção de uma espécie e suas consequências para a sociedade tanto no âmbito geral quanto no particular; os hábitos alimentares do pirarucu e sua reprodução; e o peixe seco, demonstrando que é uma tecnologia tradicional.

Figura 3: Mapa mental da atividade no Mercado Adolpho Lisboa em Manaus/AM.

A extinção de uma espécie e suas consequências – na escola os alunos entram em contato com assuntos de base científica sobre o ciclo de vida de diferentes espécies. No processo de escolarização da criança, é possível estimular o processo de expansão da percepção dos alunos sobre a interdependência das espécies com o meio ambiente.

O conceito de cadeira alimentar e os impactos de sua alteração pode ser apresentado através do exemplo de extinção de uma espécie. Dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA) contabilizam que há no Brasil cerca de 627 animais em ameaça de extinção, consequência da ação do homem. Quando acontece a extinção ou diminuição de uma espécie, há diminuição de espécies que se alimentam e aumento das que serviam de alimento para espécie extinta, o que resulta no desiquilíbrio ambiental (BRASIL, 2000).

O conhecimento dessa relação de interdependência entre as espécies são informações científicas importantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que posteriormente pode ajudar na aprendizagem sobre biomas, assuntos abordados do 6º ao 9º ano.

O peixe pirarucu, segundo pesquisas, já existiu em abundância na bacia amazônica na década de 1960. “Até a década de 60, existiam em Belém/PA, algumas empresas de porte médio e em vários estabelecimentos menores, que comercializavam o pirarucu seco-salgado”, (IMBIRA, 2001, p. 02):

Considerada por muitos pesquisadores como a matéria-prima para a evolução a diversidade genética de uma população sofre mudanças ao longo do tempo. Entretanto, mudanças drásticas como uma diminuição do tamanho populacional, comprometem diretamente o êxito evolutivo e tendem a reduzir a diversidade genética devido a elevadas taxas de homozigose e endogamia, isto é a diversidade genética é reduzida devido ao acasalamento entre os peixes ser consanguíneos, ou aparentados. O perigo disto é igual ao caso de seres humanos parentes que se casam, tem risco aumentado de doenças consanguíneas ou herdadas, e a redução da diversidade genética, aumentando o risco de extinção (IMBIRA, 2001, p. 02).

Sobre a preservação do peixe pirarucu, embora existam medidas de proteção, a pesca predatória desta espécie tem colocando em risco sua sobrevivência. “A intensidade da pesca, determinada pelo alto valor comercial, tem estimulado a captura de exemplares jovens, chamados de "bodecos", prejudicando de maneira sensível os estoques naturais”, (IMBIRA, 2001, p. 02).

Os hábitos alimentares do pirarucu e sua reprodução – De acordo com Queiroz (2000) e Watson (2013) apud Rodrigues (2015) à alimentação do pirarucu de até 50 cm de comprimento, inclui invertebrados aquáticos, dentre os quais insetos, moluscos e crustáceos. Ultrapassando esse tamanho a base de sua alimentação é composta especialmente de peixes. Quanto à reprodução, “[...] existe pouco conhecimento sobre as exigências nutricionais de peixes adultos ou sexualmente maduros, sendo essa realidade especialmente crítica para as nossas espécies nativas, como é o caso do pirarucu (RODRIGUES et al., 2013, p. 03).

O que se sabe sobre a reprodução do peixe pirarucu, é que, tanto a nutrição quanto a sua alimentação são fatores determinantes para o sucesso reprodutivo, como já demostrado nos estudos de peixes confinados (RODRIGUES et al, 2013, p. 03).

Tecnologia tradicional – o pirarucu seco é a forma mais encontrada nos mercados, o peixe passa por um processo de desidratação (CHICRALA, 2017). Mas o que gera esse processo não é o sal, e sim o calor, a circulação de ar ou os dois eventos combinados.

O segundo momento é a salga. “[...] Para o pirarucu, normalmente, utiliza-se o processo de salga seca, no qual, o sal (cloreto de sódio) é distribuído de forma uniforme por todo o pescado, não podendo haver uma área sequer descoberta” (CHICRALA, 2017, p. 13). Segundo Oliveira (2007) artesanalmente utiliza-se para cada 1 quilo de pirarucu cerca de 3 quilos de sal – o tempo que fica nesse processo é de 6 a 8 dias em média, em temperatura apropriada, mas isso não garante o sucesso da salga.

O terceiro momento é associado ao método de refrigeração, defumação ou secagem. “O método combinado mais indicado para que o pirarucu possa ser mantido à temperatura ambiente é a salga somada à secagem. A secagem pode ser realizada por métodos naturais (sol) ou artificiais (secadores)” (CHICRALA, 2017, p. 14).

Contudo, percebemos através da atividade de percepção ao Mercado Municipal Adolpho Lisboa em Manaus/AM que há no peixe pirarucu, possibilidade de articularmos através da educação ambiental ao ensino de ciências.



Considerações

O artigo é um relato de experiência no Mercado Municipal Adolpho Lisboa em Manaus/AM. Na educação escolar, a ciência precisa ser vista como uma alternativa de compreensão da relação de dependência entre homem/natureza. Com o desafio de criar condições de aprendizagem que possam ajudar o aluno a se perceber como corresponsável pela preservação da vida, seja da sociedade, seja dos seres vivos relacionados à natureza.

O relato de experiência serviu como parâmetro para conhecer e demonstrar que os ambientes de aprendizagens transcendem o espaço escolar, pois pode ser realizado em feiras, em parques, em praias, dentre outros. O ensino de Ciências apresenta-se como possibilidades de articulação da ciência formal com os elementos dos espaços não-formais.

Contudo, os saberes da ciência formal são essências para o processo de ensino, mas a proposta é buscar perceber outros espaços como fonte de conhecimento, possibilitando uma articulação além dos livros didáticos. Na prática, buscar perceber a potencialidade dos espaços não formais consiste num desafio para todos os educadores e para o sistema educacional, mas ao mesmo tempo estimula as crianças a desenvolverem uma atitude científica de observação dos espaços cotidianos por onde circulam e vivem, visto o desenvolvimento de suas habilidades de usos dos sentidos para captar e analisar a natureza.



Referências

AMARAL, Ellen Sílvia Ramos. O manejo comunitário de pirarucu (arapaima gigas) como alternativa econômica para os pescadores das reservas Amanã e Mamirauá. [Dissertação]. Programa de Pós-Graduação em Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local. Belém: Universidade Federal do Pará, 2009.

BARCELAR, Tânia. Globalização e Território. In: Le Monde diplomatique. Junho. ano 1, n. 11, p. 8-10, jun. Brasil: São Paulo, 2008.

BRASIL. Espécies ameaçadas de extinção. Brasília: Ministério do Meio Ambiente (MMA), 2000.

CERBONE, David. Fenomenologia. (Tradução de Caesar Souza). Petrópolis: Vozes, 2014.

CHICRALA, Patrícia Costa Mochiaro. [Org.]. Pirarucu Salgado Seco. Palmas, Tocantins: Embrapa e Aquicultura, 2017.

DELIZOICOV, Demétrio; ANGOTTI, José A.; PERNAMBUCO, Marta Maria. Ensino de Ciências: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.

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Notas

1 “Em 1881, na gestão do presidente Satyro de Oliveira Dias, foi desapropriado um terreno de 5.400 metros quadrados, próximo ao porto, situado na Rua dos Barés, antigo bairro dos Remédios, dando-se assim o primeiro passo para a edificação de um mercado público coberto, com adequados padrões sanitários e comerciais, iniciada em agosto de 1882, na gestão do então presidente Alarico José Furtado” (GASPAR, 2012, p. 01).

2 Com recursos da Prefeitura de Manaus, o Mercado fez uma pequena reforma em 1977 e, em dezembro de 2006, iniciou outra reformulação bem maior, por meio de um convênio entre a Prefeitura e a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa). (GASPAR, 2012, p. 01).

3 Situado no centro histórico de Manaus, com 3.500 metros quadrados de área construída, o conjunto arquitetônico do Mercado Adolpho Lisboa é composto por quatro pavilhões de ferro importados da Europa: o Central, o da Carne, o do Peixe e o das Tartarugas. (GASPAR, 2012, p. 01).

4 O peixe é desidratado: empalhado como o bacalhau comercializado. O processo de salga baseia-se no princípio de desidratação por osmose. Isto significa dizer que ao se adicionar sal, o ambiente externo às células fica supersaturado, ou seja, “puxa a água” que está livre no tecido muscular do peixe. (CHICRALA, 2017, p. 11).

Ilustrações: Silvana Santos