Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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14/06/2018 (Nº 64) VIDA E ÁGUA: UM FILME DE ANIMAÇÃO PARA REFLETIR CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE (CTS) COM ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL
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Revista Educação ambiental em Ação 33

VIDA E ÁGUA: UM FILME DE ANIMAÇÃO PARA REFLETIR CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE (CTS) COM ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL

Virgínia Ostroski Salles1, Eloiza Ap Silva Avila de Matos2, Antonio Carlos Frasson3

1 Doutoranda, Bolsista Capes, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa. virginia.utfpr@gmail.com

2 Doutor, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa. acfrasson@utfpr.edu.br

3 Doutora, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Ponta Grossa. elomatos@utfpr@utfpr.edu.br

Resumo: O presente artigo tem como finalidade apresentar uma proposta de discussão sobre ciência, tecnologia e sociedade (CTS) articuladas ao meio ambiente, com uso de filme de animação. O filme escolhido foi “Rango”, uma produção norte-americana do ano de 2011, que subsidiará as discussões. Basicamente o filme conta uma história relacionada à escassez de água numa comunidade e todos os desdobramentos decorrentes desta. A organização pedagógica do roteiro, aproximando o filme com a discussão proposta em CTS foi aplicada para uma turma de 23 alunos, do 5º ano do Ensino Fundamental dos anos iniciais, no segundo semestre do 2016, em uma escola pública municipal da cidade de Ponta Grossa, no estado do Paraná. O objetivo central foi trazer uma discussão articulada do papel da ciência e da tecnologia como dimensões essencialmente relacionadas à sociedade, tanto em processos positivos quanto negativos. Como metodologia, apresentamos o filme para os alunos e, na sequência, realizamos discussões coletivas a respeito do mesmo, sempre procurando direcionar ao objetivo central. Como conclusões, podemos estabelecer o avanço na discussão e no discurso dos alunos em relação a pensamentos mais abrangentes sobre as temáticas focadas no filme, em especial às questões ambientais envolvendo a água, refletindo-as em nosso tempo e mundo atuais. Este trabalho se enquadra em uma pesquisa qualitativa, pois, busca a melhoria da qualidade nas relações humano-natureza.

Abstract: The purpose of this article is to present a proposal of discussion about science, technology and society (STS) articulated to the environment, with use of animation film. The film chosen was "Rango", a North American production of the year 2011, that will subsidize the discussions. Basically the film tells a story related to the scarcity of water in a community and all the consequences resulting from it. The pedagogical organization of the script, approaching the film with the discussion proposed in STS was applied to a class of 23 students, from the 5.th year of elementary school in the early years, in the second half of 2016, of a municipal public school in the city of Ponta Grossa, Paraná state. The central objective was to bring about an articulated discussion of the role of science and technology as dimensions essentially related to society, both in positive and negative processes. As a methodology, we present the film to the students and, in the sequence, we hold collective discussions about it, always seeking to direct the central objective. As a conclusion, we can establish the breakthrough in students' discourse and discourse in relation to broader thoughts on the themes focused on the film, especially the environmental issues surrounding water, reflecting them in our present time and world. This work is part of a qualitative research, therefore, seeks to improve quality in human-nature relations.

Introdução

O uso de filmes em sala de aula como recurso pedagógico é uma prática usual nas escolas. Sabe-se que os estímulos possibilitados pela tecnologia atual permitem à boa parte dos filmes converter-se em instrumento pedagógico relevante na educação. Porém, há algo que precisa ser questionado, a organização do trabalho pedagógico com os filmes. Ou seja, como um filme poderá ser explorado pedagogicamente? Quais as questões importantes que precisam emergir para os diferentes grupos de estudantes? Como encaminhá-las? Como adequar o roteiro original de um filme para um formato pedagógico que sirva para os estudantes ampliarem seus conhecimentos?

Com estas questões em mente optou-se abordar a temática do meio ambiente, mais especificamente a questão da água em sua interface com a ciência, tecnologia e sociedade (CTS), apontando suas possibilidades positivas e seus pontos negativos, ou seja, como a abordagem em CTS pode contribuir na produção de realidades melhores para a sociedade e em quais aspectos tais dimensões podem prejudicar aquilo que, em tese, foi criado para o bem. A aproximação destas discussões foram aplicadas em uma turma de 23 alunos, do 5º ano do Ensino Fundamental dos anos iniciais, no segundo semestre do 2016, em uma escola pública municipal da cidade de Ponta Grossa, no estado do Paraná.

Basicamente, o filme “Rango”, alvo desta análise, traz diversas questões que merecem ser analisadas sob diferentes abordagens, sejam relativas ao ser humano, às relações humanas, às violências, à política, ao meio ambiente e a água entre outros. Neste artigo, optamos em utilizar a “água” como um metatema, ou seja, uma temática que necessita da articulação de vários temas e que transcenda a análise fragmentada de situações, proporcionando um debate mais complexo sobre CTS e seus impactos na vida cotidiana.

Sabe-se que a partir dos anos 1980, há um movimento internacional, inclusive acompanhado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que está baseado na mudança de foco da água como “bem comum” para “bem econômico”. Esta perspectiva é sustentada pelo argumento de que a água deixa de ser um bem comum quando é captada, extraída, armazenada e distribuída. Para tais tarefas são necessários investimentos e então, a água passa a ter um “preço”. A própria ONU, em 1992, já preocupada com tais desdobramentos, fazia ressalvas a este modelo, reconhecendo que “o acesso à água deve ser considerado um direito humano. O objetivo do direito à água não está financeira e tecnologicamente fora do alcance; também deveria ser incluído no plano político” (MORIN, 2013, p. 123-124).

Mesmo que tal modelo da água como bem econômico tenha gerado diferentes arranjos pelo mundo, desde os países que privatizam a água até modelos estatais, passando por parcerias público-privadas, é necessário evidenciar que a água, especialmente a água potável e tratada para utilização humana constituiu-se em elemento estratégico para pessoas, grupos e países nas últimas décadas. Portanto, a partir da diminuição da água potável pelo aumento populacional, pelas mudanças climáticas, na necessidade da agricultura, entre tantas outras atividades humanas, o custo da produção desta “boa água” é cada vez maior, envolvendo até mesmo o custo do investimento tecnológico (como na dessalinização da água do mar, por exemplo), além da engenharia cada vez mais complexa para a captação, tratamento (especialmente pela poluição) e distribuição desta.

Neste cenário, concordamos com Morin (2013) quando reflete que a água ao ocupar uma posição cada vez mais estratégica no sentido econômico, inevitavelmente estará sujeito às influências políticas. Quando esta conjunção se opera, lucro dos que produzem e a necessidade dos governos em garantir o abastecimento, fica claro sairá mais prejudicado; as populações com menos condições de existência, notadamente em países pobres ou em desenvolvimento. Portanto a relação da CTS fica cada vez mais explícita, procurando reflexões que não prejudiquem a vida humana e não sejam tão destrutivas para o planeta.

RELAÇÕES ENTRE CTS e FILMES na EDUCAÇÃO

Os estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) vem se consolidado nas últimas décadas e com isso, tem estado em parcerias de propostas no âmbito educacional nos suas diversas abordagens. Para Bazzo, Linsingen e Pereira:

A expressão “ciência, tecnologia e sociedade” (CTS) procura definir um campo de trabalho acadêmico cujo objetivo de estudo está constituído pelos aspectos sociais da ciência e da tecnologia, tanto no que concerne aos fatores sociais que influem na mudança científico-tecnológica, como no que diz respeito às consequências sociais e ambientais. (BAZZO, LINSINGEN & PEREIRA, 2003, P. 119).

Cada vez mais, na caminhada do século XXI e frente aos muitos problemas do mundo e da sociedade, se faz necessário que as pessoas possam, além de ter acesso às tecnologias da informação também adquiram possibilidades e condições de avaliar e participar das decisões do meio onde vivem. Tal questão permite argumentar que uma abordagem em CTS constitui-se em paradigma de inovação para entender a vida de forma mais ampla. Assim, percebendo a importância destas questões para a educação escolar, que é um dos espaços estratégicos de desenvolvimento humano e social, concordamos que:

É inegável a contribuição que a ciência e a tecnologia trouxeram nos últimos anos. Porém, apesar desta constatação, não podemos confiar excessivamente nelas, tornando-nos cegos pelo conforto que nos proporcionam cotidianamente seus aparatos e dispositivos técnicos. Isso pode resultar perigoso porque, nesta anestesia que o deslumbramento da modernidade tecnológica nos oferece, podemos nos esquecer que a ciência e a tecnologia incorporam questões sociais, éticas e políticas. (BAZZO, 2014, p. 129).

Conforme argumenta Bazzo, não podemos ficar “anestesiados” perante o deslumbramento com as possíveis facilidades da ciência e tecnologia. Esta postura pode ser entendida como as “cegueiras do conhecimento” tratada por Morin (2011) que a ciência, ao não ser questionada em todos os seus aspectos, pode gerar certezas altamente destrutivas para a vida e para o planeta. O desenvolvimento, de maneira geral, às custas do meio ambiente, e, a tecnologia como diferenciação de classes são exemplos destas distorções, além das questões internacionais como o poderio bélico de alguns países, onde a tecnologia é utilizada para matar e para dominar o jogo político.

Mas como pensar em educar para tantas questões complexas? Como iniciar crianças neste olhar ampliado para a vida, o planeta e sua comunidade? Acreditamos que é um esforço coletivo das escolas e que conta com inúmeras práticas pedagógicas que induzam/conduzam para tais objetivos. Dentre elas, podemos dizer que o enredo de um filme, tal como propusemos neste estudo, pode auxiliar em discussões pertinentes a realidade cotidiana. Obviamente não será qualquer filme e muito menos uma análise superficial deste. Por isso, considerar a história deste fenômeno é fundamental. Esta constatação é apresentada por Miranda (2005, p.1):

A relação entre cinema e educação, inclusive a educação escolar, faz parte da própria história do cinema. Desde os primórdios da produção cinematográfica a indústria do cinema sempre foi considerada, inclusive pelos próprios produtores e diretores, um poderoso instrumento de educação e instrução. A relação entre cinema e conhecimento, no entanto, extrapola o campo da educação formal (MIRANDA, 2005, p.1).

É fundamental resgatar a noção que o cinema, não obstante seu papel de lazer e entretenimento é baseado num movimento de despertar emoções, reflexões, conflitos e conhecimento. Seja em maior ou menor escala, todos os filmes contam histórias e mostram diversos ângulos da humanidade. Há, ainda, outro aspecto relevante para entender os filmes como elementos pedagógicos privilegiados, pois, quando um escritor/roteirista propõe um tipo de reflexão a ser produzida, ele possui uma intenção específica que por sua vez não será a única.

Neste sentido é que cada filme pode ter interpretações diversas, ser vista por inúmeras perspectivas. Temas que apontem para questões pontuais em espaços específicos, com problemas localizados e com pensamentos que podem divergir aos propostos pelo próprio filme. Ao mesmo tempo em que podem ser redimensionadas por temas e abordagens diferentes, destacamos que é preciso entender que o conjunto de temáticas deve servir para entender melhor o todo, ou a complexidade dos fenômenos. Um filme de guerra por exemplo, pode analisar o contexto das questões políticas da guerra ou a história isolada de um soldado vista pelos seus dramas pessoais. Porém, articular as duas dimensões é ampliar a leitura do mundo. No caso do filme que analisamos, “Rango” são inúmeros pontos a destacar, desde a questão individual do protagonista, passando pelas novas relações que estabelece, em um novo lugar, marcado por problemas socioambientais e políticos, que envolvem o desenvolvimento humano e as questões de sustentabilidade.

Assim, neste contexto ganha força e forma, a análise de filmes com a reflexão sobre CTS, pois transformam os contextos também em “atores”, pois não são somente os atores que contam a história, mas a relação de inúmeras questões subjacentes à ela própria, ou sejam o meio ambiente e o espaço geográfico também são protagonistas da trama. Portanto, concordamos com Loureiro (2003) que afirma:

Mais do que um mero suporte para a educação, o filme pode ser tratado como fonte de formação humana. (...) No entanto, com base em fundamentos teóricos que permitam compreender essa dinâmica, a educação escolar pode contribuir para a decodificação dos interesses sociais presentes na construção das imagens fílmicas, abrindo horizontes para a sua ressignificação (LOUREIRO, 2003, p. 95)”.

Caminha-se no presente artigo, em direção da construção de argumentos importantes e adequados para um grupo de alunos dos anos iniciais da Educação Básica, tendo no foco central a relação CTS como algo a ser entendido em sua articulação básica, que é ciência criando novos conhecimento e práticas, mas que, ao mesmo tempo precisa torná-las viáveis em termos tecnológicos e que, ainda consiga minimizar impactos sobre a vida humana e do planeta e maximizar seus benefícios para toda a população.

CTS: DISCUSSÕES NECESSÁRIAS NA EDUCAÇÃO

A abordagem CTS na escola é bem mais que uma alternativa de ensino, já a vemos como urgência diante do esgotamento de modelos que aliem o desenvolvimento da ciência e tecnologia com realidades sociais na busca de melhoria das condições de vida e do planeta. A educação CTS centrada nos propósitos de contribuir para a construção de cidadãos críticos e atuantes na sociedade, vai ser evidenciada quando percebemos suas particularidades que a distinguem do ensino clássico de ciências como é confirmado no quadro 1.

Quadro 1 - Diferença entre Ensino Clássico e Educação CTS

Ensino Clássico

Educação CTS

1. Organização conceitual da matéria a ser estudada.

Organização em temas tecnológicos e sociais.

2. Método científico (Investigação, observação, experimentação, coleta de dados e descoberta.).

2. Potencialidades e limitações da tecnologia.

3. Ciência como modo de explicar o universo, com esquemas conceituais interligados.

3. Exploração, uso e decisões são submetidos a julgamento de valor.

4. Busca da verdade científica.

4. Prevenção de consequências.

5. Ciência como processo, atividade universal, corpo de conhecimento.

5. Desenvolvimento tecnológico depende das decisões humanas.

6. Ênfase à teoria para articulá-la com a prática.

6. Ênfase à prática para chegar à teoria.

7. Lida com fenômenos isolados do ponto de vista disciplinar (análise de fatos, exata e imparcial).

7. Lida com problemas no seu contexto real (abordagem interdisciplinar).

8. Busca novos conhecimentos para compreensão do mundo natural (ânsia de conhecer).

8. Busca implicações sociais dos problemas tecnológicos; tecnologia para a ação social

Fonte: SANTOS e SCHNETZLER (2003).

Ao analisar o enfoque do ensino clássico e suas diferenças diante da educação em CTS, percebe-se que os conhecimentos tecnológicos correlacionados levam a conceitos científicos e permitem o entendimento da tecnologia que, posteriormente, auxilia na compreensão mais ampla de problemas sociais que vivenciamos cotidianamente.

Pensando nesta concepção ampla, propusemos com o filme “Rango” um metatema, que se propõe a transcender questões fragmentadas do filme em um olhar mais integrador e útil para identificar a relação CTS. Partimos da questão da “falta de água”, que é a questão mais clara do filme para entender o contexto. Aqui já é possível apresentar uma definição a priori que optamos para o desenvolvimento do trabalho:

Mãe da vida”, a água é parte constitutiva de todas as células de todos os organismos vivos; trata-se de uma necessidade cotidiana para cada um de nós, um bem comum a todos os seres humanos, mas transformou-se em mercadoria, servindo cada vez mais ao jogo geopolítico e geoestratégico entre os Estados (MORIN, 2013, p.117).

Ao apresentar esta questão proposta por Morin (2013), já optamos por um conjunto de valores e perspectivas que serão pensadas na prática pedagógica alvo deste artigo: água como fonte básica da vida em todas as suas formas; água como um bem comum; água transformada em mercadoria; tecnologia para captação e limpeza da água, desvios éticos e políticos em utilizar a água como fonte de manipulação, subserviência e conflitos.

Nesse caso, CTS estão conectadas por um elemento fundamental à vida e que constitui-se, ainda num dos grandes dilemas da humanidade, a água. Cada vez mais, ao longo dos últimos anos, a escassez de água potável, a poluição dos rios, os problemas de abastecimento estão cada vez mais próximos das pessoas. As crianças, no contexto de nosso país, já tem acesso à informação sobre tais problemas, mas ainda sem desenvolver uma compreensão maior e integrada sobre eles. Tal questão é urgente na escola e para as crianças, uma vez que crescerão junto com a intensificação destas problemas e esgotamentos de modelo, como observa Morin:

Em 2030, na ausência de medidas eficazes para preservar os recursos de água potável, 3,9 bilhões de pessoas poderão ser atingidas por esse estresse hídrico, entre as quais 80% da população dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China). Essa escassez será agravada pelo aumento da população, que gerará crescente necessidade de água potável e de água destinada à agricultura (MORIN, p.121).

Como vemos, as questões sobre a água, que são evidenciadas na análise do filme “Rango” são determinantes para o mundo do século XXI. Especialmente nos países pobres e em desenvolvimento, tais questões serão alvo de muitas, polêmicas e preocupantes discussões nos próximos anos. Por isso optamos por esta obra fílmica.

A APRESENTAÇÃO DO FILME

Antes de discutirmos o filme especificamente, apontamos para os fundamentos da obra fílmica a partir da sistematização propostas por Santos; Schnetzler (2003). Os referidos autores estruturaram um quadro explicativo e sobre as relações da CTS. Este quadro apresenta uma visão integrativa de diversos aspectos que podem convergir nas relações entre ciência, tecnologia e seus desdobramentos na sociedade.

Destacamos que o conhecimento é um caminho em construção permanente, passível de novos elementos e novas análises. Portanto, acreditamos que o referido quadro, tanto aponta para as questões atuais referentes aos olhares ampliados sobre a CTS, como servem de referência para sua própria ampliação, na medida em que estas áreas vão avançando. O quadro aponta desde a natureza da perspectiva de CTS até seus efeitos entre elas. Vejamos:

Quadro 2 - Os nove aspectos da abordagem CTS

1- Natureza da ciência

1- Ciência é uma busca de conhecimentos dentro de uma perspectiva social.

2- Natureza da Tecnologia

2- Tecnologia envolve o uso do conhecimento científico e de outros conhecimentos para resolver problemas práticos. A humanidade sempre teve tecnologia.

3- Natureza da Sociedade

3- A sociedade é uma instituição humana na qual ocorrem mudanças científicas e tecnológicas.

4- Efeito da Ciência sobre a Tecnologia

4- A produção de novos conhecimentos tem estimulado mudanças tecnológicas.

5- Efeito da Tecnologia sobre a Sociedade

5- A tecnologia disponível a um grupo humano influencia grandemente o estilo de vida do grupo.

6- Efeito da Sociedade sobre a Ciência

6- Por meio de investimentos e outras pressões, a sociedade influencia a direção da pesquisa científica.

7- Efeito da Ciência sobre a Sociedade

7- O desenvolvimento de teorias científicas pode influenciar o pensamento das pessoas e as soluções de problemas.

8- Efeito da Sociedade sobre a Tecnologia

8- Pressões dos órgãos públicos e de empresas privadas podem influenciar a direção da solução do problema e, em consequência, promover mudanças tecnológicas.

9- Efeito da Tecnologia sobre a Ciência

9- A disponibilidade dos recursos tecnológicos limitará ou ampliará os progressos científicos.

Fonte: Santos e Schnetzler (2003).

Da reflexão sobre o quadro, com suas dimensões explicitas sobre a relação CTS, concordamos com a análise de Osório (2002) quando aponta:

O enfoque educativo em CTS, tanto recupera os espaços críticos dessa relação conjunta ao desenvolver as implicações e os fins do desenvolvimento científico-tecnológico em um emaranhado social, político e ambiental, como se nos apresenta como um campo de análises propício para entender e educar o fenômeno tecnocientífico moderno (OSÓRIO, 2002, p.64).

Desta forma, considerando os aspectos discutidos ao longo deste artigo, optamos pelo filme “Rango” porque pode ser trabalhado com diversas idades, onde podemos, a partir do roteiro, levantar reflexões de maneira interessante e lúdica sobre os interesses econômicos da humanidade, que podem superar a humanização das pessoas. Em nosso, caso, visando a apresentação e reflexão com as crianças pequenas, optamos em pensar no aspecto básico da noção de meio ambiente e sua degradação, para que a relação entre “desenvolvimento” e “destruição” pudesse ser aprofundada em relação ao filme.

Fundamentalmente, a relação crítica que é estabelecida em relação ao meio ambiente, aponta para o que chamamos ao longo do texto de “esgotamento de modelo”, que pressupõe que outras dimensões sejam construídas, sob o risco de uma destruição irremediável do meio ambiente em nossa época. Tais questões são evidenciadas por Candéo (2013):

O ser humano adaptou o ambiente para que através dele conseguisse conforto e bem estar, porém o excesso de maquinários e de produtos químicos utilizados - por exemplo, para a construção, a produção de alimentos e a fabricação de objetos - têm causado grandes problemas socioambientais. O meio ambiente está se degradando, pois não consegue se adaptar ao novo estilo de vida do ser humano. (CANDÉO, 2013, p. 36)

Desta forma, partimos da articulação inicial sobre o esgotamento de um modelo para a busca de sustentabilidade, tanto em relação ao meio ambiente, como nas relações humanas e sociais. Assim, visualizamos no quadro 3, que foi elaborado pela autora, considerando os nove aspectos CTS, com base em Santos; Schnetzler (2003) acerca do enfoque CTS e Candéo (2013) sobre o quadro CTS adaptado ao uso de filmes, pressupondo um roteiro para que questões possam ser discutidas e melhor conduzidas com enfoque CTS.

Quadro 3- Roteiro do filme “Rango” elaborado a partir dos 9 aspectos CTS

Aspectos CTS

Cenas

Envolvimentos CTS



1- Natureza da ciência

O filme inicia com a cena do camaleão Rango, que até o momento era um animal de estimação dentro de um aquário, que após um acidente com o carro onde era transportado, acaba em sozinho em uma estrada que corta um deserto.

(Ambienta-se do deserto de Mojave, nos Estados Unidos).

A ciência busca o conhecimento pertinente à realidade em que vivemos. Porém, nem sempre preocupa-se com questões amplas da sociedade.



Sugestões para a reflexão:

- Abordar tipos de solos, habitat dos animais.

- Pensar nas questões da construção de estradas que cortam ambientes naturais.

- Como nós, seres humanos, estamos interagindo com a natureza modificada?



2-Natureza da Tecnologia

O filme faz pensar que a tecnologia tem o objetivo de resolver problemas práticos, porém algumas questões podem ser bem mais complexas, ainda mais quando questões políticas e éticas estão envolvidas. Evidenciando que a evolução tecnológica não é para todos.

O desenvolvimento tecnológico possibilita o avanço da ciência.



Sugestões para a reflexão:

- Quais os interesses envolvidos, quando problemas ambientais são cada vez mais afetados por falta de políticas adequadas?

- Os avanços tecnológicos estão sendo pensados a favor dos problemas ambientais?



3-Natureza da Sociedade

Do ambiente de onde Rango veio, (como animal de estimação) ele não havia se deparado com questões de um “mundo hostil” e com carências. Já no início de sua jornada no deserto, a falta de água denuncia como este líquido é fundamental para a vida. Assim, tem que lidar com situações radicalmente novas para sobreviver em um novo ambiente.

A constante busca da sociedade pelo desenvolvimento a qualquer custo.



Sugestão para reflexão:

- O que podemos pensar sobre as mudanças climáticas?

- Como vivem as pessoas que não tem as mesmas condições de obter o consumo básico para o cotidiano?

- Como seria a vida, a existência sem água? Existiríamos? E a escassez de água, o que pode provocar?



4-Efeito da Ciência sobre a Tecnologia

A personagem Feijão é impedida de conseguir alimentos por falta da “moeda de troca”, neste caso a água, sendo que as cidades vizinhas possuem tecnologia para a captação e distribuição de água para todos. Mas quem são esses “todos”?


O filme tenta expor questões ambientais e sociais que vivemos. Primeiro, sobre a água como mercadoria, sendo controlada por poucos. Depois, a forma de oprimir a população local falando que existe escassez de água, quando na verdade á um controle que induz à dependência de poucos.



Sugestões para a reflexão:

- A tecnologia pode influenciar positivamente para captação e distribuição justa de água para a sociedade? Como você vê isso? Como você acha que acontece isso em sua cidade?



5- Efeito da Tecnologia sobre a Sociedade

O filme mostra o grande desenvolvimento da tecnologia em uma cidade vizinha e a dificuldade da cidade “Poeira”, que passa por dificuldades inúmeras, mas a que mais se agrava é a falta de água. A contradição posta é que a falta de água não é apenas ao “acaso”. Algumas pessoas aproveitaram a situação para enriquecer explorando a situação.

Aqui fica demonstrada a falta de pensamento do mundo e das regiões sobre o aspecto da solidariedade e desenvolvimento conjunto. Muitas regiões são prósperas enquanto outras padecem. Isso muitas vezes bem próximas uma das outras.



Sugestões para a reflexão:

- Como você vê a questão do último estoque de água que resta em “Poeira” estar guardado no banco da cidade?

- E a cidade vizinha, está preocupada com o desenvolvimento da cidade que passa por dificuldades?



6- Efeito da Sociedade sobre a Ciência

Os moradores de “Poeira” são carentes de um herói para sua salvação, após inventar uma série de histórias bem sucedidas a seu respeito para conquistar a comunidade, Rango é promovido ao cargo de xerife da cidade. As pessoas depositam toda a esperança nele.

A necessidade humana de ter líderes para resolver os problemas em contraste com a necessidade de construir autonomia individual e coletiva para melhorar a coletividade.



Sugestões para a reflexão:

- O desenvolvimento científico e tecnológico é neutro? Ou está a serviço de alguns apenas? Ou pensa na sociedade como todo?

- Precisamos de um líder ou podemos aprender a pensar colaborativamente para a resolução de problemas locais.



7- Efeito da Ciência sobre a Sociedade

Na cena que Rango, já como xerife da cidade e após o banco da cidade ter sido assaltado e o reservatório de água esvaziado: 

seu objetivo, juntamente com um grupo de moradores, é o de buscar recursos para a cidade. Mas, se depara com problemas bem maiores do que pensava, como corrupção, desperdício de água, e até mesmo o entendimento sobre o desequilíbrio ambiental.


Trata-se de um momento especial do filme, quando toda a trama começa a ser desvelada. O senso comum ou, o olhar simplório sobre os problemas começa a ser alterado para uma visão de conjunto, uma visão complexa de que a falta de água não é apenas um “acaso”, mas uma situação planejada.

O desenvolvimento da ciência pode influenciar o pensamento das pessoas e assim, motivá-las a buscar soluções de problemas, entendendo as conexões e as motivações de pessoas ou grupos sociais.

 

Sugestões para reflexão:

- Você acredita que a ciência e a tecnologia podem modificar o pensamento das pessoas e seus papéis na sociedade?

- Como você percebe a realidade da água no país, no estado e na sua cidade?



8- Efeito da Sociedade sobre a Tecnologia

No filme a população da cidade de “Poeira”, motivada por Rango, busca mudanças e melhorias a qualquer custo. E isto é possível pelo fortalecimento da visão coletiva.

O papel de Rango não é mais de um herói, mas de um esclarecedor sobre a situação que está acontecendo com a escassez de água provocada intencionalmente para privilegiar poucas pessoas e causando sofrimento para todos.

Muitas vezes o desenvolvimento científico e tecnológico gera benefícios para poucos em detrimento de grande parte da população.

O esclarecimento é a melhor forma de pressionar e questionar pessoas e estruturas que podem promover mudanças.



Sugestões para a reflexão:

- Como vê a exploração dos recursos hídricos, como aconteceu no filme?

- Como os serviços públicos podem ser melhorados para auxiliar as pessoas?

- O que você pode fazer individualmente para preservar a água?



9- Efeito da Tecnologia sobre a Ciência

O filme mostra o tempo todo a falta da tecnologia para auxiliar em problemas ambientais, que muitas vezes são caudados pelo próprio desenvolvimento da tecnologia. Esta é uma contradição perene, a tecnologia gerando problemas que precisam de novas tecnologias para serem resolvidos.

A evolução tecnológica pode limitar ou auxiliar os recursos hídricos? O que é bom e ruim do excesso da tecnologia?



Sugestões para reflexão:

- Você percebe a evolução da tecnologia nos dias de hoje? Somos reféns das tecnologias?

- A água é um bem tão simples e precioso para a vida, mas porque chegamos a este ponto tão grave?

Fonte: A autora, com base em Santos; Schnetzler (2003) e Candéo (2013).

O trabalho com filme de animação, quando pensado no enfoque CTS, como notamos, tem inúmeras discussões a serem levantadas e grandes contribuições para a construção de boas atitudes para enfrentar os problemas. Como aponta Morin (2013):

Politicas de água já podem ser postas em prática em escalas locais, regionais e nacionais. Uma política em escala planetária necessitaria de um consenso entre os Estados e uma Agência Mundial da Água dotada de poderes, algo que ainda não pode ser visualizado. Será que a agravação dos problemas acelerará as conscientizações e as decisões? (MORIN, 2013, p.126).

Em âmbito local e regional, como o próprio filme conta, existem alternativas para contornar os problemas que enfrentamos e que são crescentes em relação à água como direito básico dos seres humanos. No caso do filme, com os animais em situação parecida com a de muitos locais no planeta, isso foi construído graças ao envolvimento das pessoas pelo esgotamento do modelo que estava posto. Esta mesma questão é colocada por Morin, que para ele o próprio agravamento das questões contribui para seu enfrentamento. A mensagem é interessante e positiva ao final com a ideia do trabalho conjunto, da solidariedade e do protagonismo coletivo.

METODOLOGIA

A pesquisa se caracteriza como uma pesquisa qualitativa, com o objetivo de permitir o uso de um filme para iniciar discussões de educação com enfoque CTS, visando gerar conhecimentos para aplicação prática em situações de vida comunitária na qual podemos aperfeiçoar as realidades em que vivemos. Considerando as questões levantadas como reflexão, percebemos que ao abordar um filme com enfoque CTS, podemos abranger todas as etapas da educação básica e de maneira interdisciplinar, cabe a preparação e as discussões norteadores que faremos. No caso específico do filme “Rango”, as questões levantadas para reflexão puderam ser significativas a ponto de auxiliar na construção de cidadãos mais atuantes na sociedade, que é um dos papéis da escola.

Após assistir e discutir o filme, foi proposta atividades como: confecção de cartazes e frases, que pudessem trazer um feedback das questões debatidas. Na sequência citamos algumas dessas frases, produzidas por pequenos grupos de alunos. “A água é o recurso mais precioso, pois dá vida a tudo”, “Natureza precisa de cuidado para ter beleza”, “Vamos preservar o que temos de mais valioso: a água”, “Todos juntos fazemos um mundo mais sustentável: Vamos pensar?”, “Água: Nossa vida”, “Proteja sua vida, cuide da natureza”, “Precisamos nos unir para um mundo melhor”, “Destruindo a natureza não teremos vida”, “Precisamos pensar na nossa comunidade e em nosso planeta”, “Sem natureza não adianta tecnologia”, “Não deixe o clima piorar, vamos cuidar do meio ambiente”.

Desta forma, notamos que filmes, quando trabalhado com objetivos bem traçados, os quais busquem discussões fundamentadas e com a intenção de criar mecanismos de aprendizagem, são formas de inovar aulas e renovar pensamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar mecanismos que possam auxiliar na formação de estudantes capazes de refletir sobre questões ambientais, sociais e estruturais, é uma necessidade da educação brasileira. Desta forma, estamos cooperando para sejam cidadãos capazes de pensar criticamente demandas que envolvam a ciência e a tecnologia, na busca de melhores pessoas, cidades e sociedades.

Quando objetivamos a água como metatema, gerador de inúmeras dimensões humanas, possibilitamos um aprendizado mais ampliado e crítico, pois, além disso, as discussões puderam trabalhar questões complexas sobre o desequilíbrio ambiental, o consumo e a escassez da água. Tais reflexões, trazem implicações sociais da ciência e da tecnologia e fazem parte da vivencia de basicamente todos os envolvidos. Assim, possibilitamos que o grupo de alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, pudessem repensar suas atitudes perante o mundo à sua volta.

As reflexões tratadas no texto, remete-nos as problemáticas atuais, perpassando questões do contexto social onde os estudantes que participaram da pesquisa estão inseridos, para assim, as temáticas se tornem pertinentes ao cotidiano.



REFERENCIAS

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RANGO. Direção: Gore Verbinski; Graham King; John B. Carls. Paramount Pictures. Los Angeles, EUA. 2011. 107 min.

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Ilustrações: Silvana Santos