Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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27/11/2016 (Nº 58) O HUMANO EM PELE DE BALEIA: REFLEXÕES SOBRE A SECA E O ANTROPOMORFISMO EM VIDAS SECAS
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O HUMANO EM PELE DE BALEIA: REFLEXÕES SOBRE A SECA E O ANTROPOMORFISMO EM VIDAS SECAS

 

Cristian José Simões Costa- IFAL

Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente- PRODEMA- UFPB. Professor Efetivo do Instituto Federal de Alagoas- IFAL

cristiancost@gmail.com

 

Rozeane Albuquerque Lima – PPGH-UFPE

Doutoranda em História pelo PPGH- UFPE

rozeanelima@gmail.com

 

André Vasconcelos

  Mestrando em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Andrevasconcelos.triunfo@gmail.com

 

Resumo

As análises deste texto se inserem no âmbito da educação formal ou não. Utilizamos como fonte o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, cruzando estes dados com a visão de Peter Singer sobre a relação ser humano-animais. Concluímos que há uma naturalização que é construída cultural e socialmente.

Palavras-chave: Meio ambiente, especismo, literatura.

 

‘O cão é o melhor amigo do homem’, mas será que o homem é o melhor amigo do cão? Com esta provocação gostaríamos de iniciar uma reflexão sobre como é construída a relação do ser humano com as outras espécies na narrativa literária.

De início cumpre-nos o dever de informar que compreendemos que não há ‘o ser humano e a natureza’; entendemos que este é parte da natureza e que, por esta razão, não há que se pensar em uma relação de superioridade deste para com as demais espécies.

Para compreender como esta superioridade humana para com a natureza foi fabricada, um dos caminhos possíveis é observar as influencias da história bíblica da criação do homem no pensamento europeu e, consequentemente, no brasileiro. O homem do Jardim do Éden foi criado por Deus depois de toda a terra, a natureza e os animais e, segundo a própria bíblia, Deus o encarregou de dominar sobre tudo o que havia. O homem seria o rei. Vejamos:

Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. Deus disse: “Eis que vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento.” “E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus, a tudo o que se arrasta sobre a terra, e em que haja sopro de vida, eu dou toda a erva verde por alimento” (...) (GÊNESE , 26;31) (grifos nossos).

 

            Considerando a passagem bíblica acima e a grande influencia do pensamento judaico-cristão na educação (formal ou não) da sociedade brasileira, percebe-se uma naturalização da ideia de que o ser humano, notadamente o homem, foi criado para dominar a natureza e as outras espécies. Há nesta naturalização uma ênfase tão grande a esse papel dominador que o ser humano se acha no direito de decidir sobre a vida e a morte das outras espécies, sobre a mudança das informações genéticas e até sobre a completa alteração em um ecossistema que, para servir às suas vontades e necessidades, vive em desequilíbrio.

            Analisando a relação do ser humano com a natureza tendo o pensamento holístico e ecológico como norte, segundo o qual deveria haver uma relação harmônica entre todas as espécies para garantir a resiliência e a sustentabilidade do planeta é, no mínimo estranho pensar que uma espécie é capaz de expor outras espécies em vitrines de pet shops para serem apreciadas e/ou compradas; ou de se achar no direito de ser possuidor de uma espécie “de raça”; ou ainda de expor espécies em um zoológico, como se fossem uma coleção, isso quando não estão espetadas, mortas, como as coleções de borboletas ou de insetos. Há também quem use os animais para fins de entretenimento e, para isso, os adestre: os animais de parques aquáticos e dos circos cumprem bem este papel, sem esquecer as vaquejadas e as rinhas de galo (há quem chame de cultura!); há os que são usados para fins estéticos: os aquários são um bom exemplo disso. E os que são usados para tração? Para locomoção? Os que são mortos em laboratórios em pesquisas que nunca chegam a resultados conclusivos? Os que são usados para testes, principalmente da indústria de cosméticos? E o tratamento dispensado aos animais do agronegócio, que já nascem para serem abatidos, de preferência no mínimo tempo possível?

Em 1975 Peter Singer publicou Libertação animal. O livro é referência para toda a legislação moderna sobre direito dos animais, claro que não podemos desconsiderar o pioneirismo de Jeremy Bentham que, no século XIX já afirmava a igualdade entre as espécies. No livro, Singer define especismo, conceito que serve de base para as reflexões aqui presentes: “é o preconceito ou atitude tendenciosa de alguém a favor dos interesses de membros da própria espécie, contra os de outras” (SINGER, 2010, p.11).

Libertação animal se inicia com uma explicação do termo direito dos animais, que foi cunhado inicialmente como uma sátira ao direito das mulheres. Em 1792 Mary Wollstonecraft publicou a obra Vindication of the right of woman (Defesa dos direitos das mulheres) cujas reivindicações foram consideradas absurdas. Pouco tempo depois foi publicada uma obra anônima (descobriu-se, posteriormente, que o autor era o filósofo Thomas Taylor), intitulada Vindication of the right of brutes (Defesa dos direitos dos brutos) que tentava refutar os argumentos do primeiro livro dizendo que se a igualdade valia quando aplicada às mulheres, por que não para os brutos? Na época a ideia era considerada absurda e a intenção era invalidar o direito das mulheres tanto quanto era inválido o direito dos brutos (IBIDEM, p.3-4).

O debate sobre os direitos dos animais é muito atual e presente na sociedade brasileira. Abrimos aqui um parêntese para discutir um pouco o tema. Não faltam representações na sociedade civil defendendo os direitos dos animais. Em janeiro de 2015, dois fatos aqueceram o debate, um em nível estadual, na Paraíba, mas comum a muitos estados brasileiros: a Lei 10.428, de 20 de janeiro de 2015, de autoria do deputado Doda de Tião, que reconheceu a vaquejada como modalidade esportiva no estado da Paraíba e é considerada pelos defensores dos direitos dos animais inconstitucional. Eles fundamentam sua defesa no Decreto de 1934 (24.645) que já considerava touradas e simulacro às touradas como crueldade; e também na Constituição Federal, Constituição Estadual da Paraíba e na Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) que consideram maus tratos aos animais como crime. E, em nível federal, a Resolução 1.069 do Conselho Federal de Medicina Veterinária, que foi publicada em outubro de 2014, mas passou a vigorar em janeiro de 2015, que considera que o veterinário deve assegurar que as instalações destinadas aos animais “proporcionem um ambiente livre do excesso de barulho, com luminosidade adequada, livre de poluição e protegido contra intempéries ou situações que causem estresse aos animais”. A Resolução inicialmente provocou um esvaziamento nas vitrines de pet shops do país (Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pet-shops-nao-podem-mais-expor-animais-em-vitrines-e-gaiolas,1622809  acesso em 23/01/2015).

            Tendo estas reflexões por guia, vamos pensar um pouco na construção das relações dos personagens, notadamente de Fabiano, com os animais, no livro Vidas secas, de Graciliano Ramos.

Nascido em Quebrangulo- AL em 1982, Graciliano Ramos estudou em Maceió no nível secundário e nunca concluiu faculdade. Foi preso político no governo de Getúlio Vargas e em 1945 se filiou ao Partido Comunista do Brasil. A obra de Graciliano teve por inspiração o sertão nordestino em uma perspectiva de denuncia das mazelas sociais, políticas, econômicas e ambientais que assolam este espaço e seu povo. Em 1952 ele adoeceu, falecendo de câncer do pulmão em 1953, aos 60 anos.

Escrito em 1938, reconhecido como uma obra da segunda fase modernista, o romance Vidas secas é analisado como romance neo-regionalista (neo por indicar a presença de escritores regionalistas no século XIX, dentre eles Franklin Távora e Bernardo Guimarães) ou romance de 30, que, em poucas palavras é um conjunto de obras literárias que tratavam da região Nordeste com uma inspiração realista que primavam por uma verossimilhança com realidades socioculturais, e um caráter ideológico, histórico e social evidenciados na escrita. O ciclo se iniciou em 1928, com a obra A bagaceira, de José Américo de Almeida.  Outras obras importantes deste período foram O quinze, de Rachel de Queiroz, escrita em 1930; Banguê, de José Lins do Rego, escrita em 1934 e Capitães de Areia, de Jorge Amado, escrita em 1937.

Embora este ciclo literário não seja o foco principal das nossas reflexões, duas características das obras que o compõem são importantes para compreendermos a construção das relações do ser humano com outras espécies no livro em questão: a forma como são descritos os personagens, enfatizando características físicas e psicológicas, e a força que a construção do ambiente e a relação do ser humano com ele têm na narrativa, ao ponto do ambiente “animalizar” Fabiano, o principal personagem do romance.

            Reconhecida pela crítica literária como uma das mais bem sucedidas narrativas deste ciclo, Vidas secas tem por tema principal o deslocamento de retirantes sertanejos que fugiam da seca, deslocamento este necessário para garantir a sobrevivência. A falta de linearidade temporal garante um tom de independência aos capítulos e evidencia a fragmentação que o espaço e as relações sofrem com a migração temporária. A migração também permite a exploração dos espaços rural e urbano evidenciando o completo domínio de Fabiano no espaço rural, onde trabalha como vaqueiro, e a falta de domínio dos códigos do espaço urbano, como fica explícito na narração dos capítulos Cadeia e Festa.

            Reforçando esta construção, Albuquerque Júnior (1999), analisando este romance, afirmou, em seu livro A invenção do Nordeste e outras artes:

 

Graciliano constrói, na própria textura da linguagem, uma imagem da região: minguada, nervosa áspera e seca. O Nordeste do parco, do pouco, da falta, do menos, do minguado que ele quer ver conhecido e ferindo a consciência de todo o país. O Nordeste onde até o papagaio era mudo. Nordeste do vaqueiro que se entende melhor com o cavalo do que com os outros homens, que falava uma linguagem cantada, monossilábica, gutural, cheia de exclamações e onomatopeias (p. 230-231) (grifos nossos).

 

 

Percebe-se, no trecho acima, o quanto a relação do ser humano com os animais está presente não apenas diretamente, mas também nas entrelinhas da produção literária de Graciliano Ramos. O quanto o autor inverte as características aceitas como humanas que, no livro, estão presentes na personagem Baleia - uma cadela, e as características atribuídas às outras espécies que, em Vidas Secas, tem por principal representante Fabiano. Como afirma ainda Albuquerque Júnior sobre os personagens regionalistas de Graciliano Ramos: “(Ele) não consegue entender o humanismo, porque este é a sua própria negação” (p.240). Nesta análise vemos um ponto fundamental da discussão sobre a relação do ser humano para com os animais: o que é este humanismo? O que diferencia o ser humano das outras espécies ao ponto de se considerar superior? De que forma isto foi construído ao ponto de se naturalizar na nossa visão de mundo?

Vejamos o trecho do livro Vidas Secas que foi analisado por Albuquerque Júnior:

 

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animaisOs seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feioÀs vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas (RAMOS, 1986, p. 19-20) (grifos nossos).

 

 

No livro em questão, a construção se torna ainda mais complexa, pois a atribuição de características “animalescas” a Fabiano serve de ingrediente para moldar a identidade do nordestino: alguém rude, bronco, de poucas palavras (até por não conhecer muitas), árido como o ambiente que lhe foi também construído. As mesmas características são atribuídas aos animais que habitam a região, não havendo, portanto, distinção entre o nordestino e as demais espécies do lugar. Esta interação do ser humano com as outras espécies do ambiente que, à primeira vista pode parecer algo positivo, em um olhar mais aprofundado é trabalhada como algo que inferioriza o ser humano daquele espaço em relação aos que habitam os outros espaços. Interagir com outras espécies no mesmo nível é, portanto, para o autor, uma atitude que não deve ser considerada normal ou correta para o ser humano. 

O livro tem um tom de denúncia dos problemas sociais vividos pelos personagens. Problemas estes causados principalmente pela seca. Os poucos adjetivos usados e as poucas falas dos personagens dão à narrativa um estilo áspero, proposital, que demonstra o efeito da seca não apenas no ambiente, mas no estilo de vida dos personagens, tornando as pessoas tão áridas quanto o cenário construído na obra. Estas poucas palavras são sentidas pela presença do papagaio, membro da família que não falava (como se falar fosse algo natural para este animal), apenas latia, por ser o único som que ouvia: “Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco (...) o louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra (IBIDEM, 1986, p.17).

No romance a pobreza provocada pelo fenômeno “natural” das secas se alia à injustiça social provocada pela exploração dos ricos latifundiários, construindo um Nordeste de muita miséria no qual os personagens interagem entre si, com o ambiente e com a sociedade.   

Na composição da família de retirantes temos Fabiano, o vaqueiro rude, de poucas palavras, que não sabia ler nem escrever, a sua esposa, Sinhá Vitória, que fazia contas com grãos, o Menino mais velho, que ansiava por aprender a ler, o Menino mais novo, que queria ser vaqueiro e tinha admiração pelo pai, a cadela Baleia, a quem o autor atribuiu muitas características humanas, e o papagaio.

Um ponto muito forte da narrativa é o momento em que Fabiano vê Baleia com pelos caídos, as costelas à mostra e feridas na boca. Ao imaginar que a cadela poderia estar doente, Fabiano decide sacrificá-la “para a cachorra não sofrer muito” (IBIDEM, p.85). Neste ponto da narrativa os sentimentos se embaralham: proteção contra o sofrimento e compaixão se misturam à violência e aspereza da descrição do momento do sacrifício de Baleia por quem esperava-se ser seu protetor. O que pode parecer um gesto nobre, a uma simples inversão desfaz tudo o que poderia ter de positivo. Sacrificaríamos outros membros da nossa espécie por estarem doentes e não termos conseguido êxito nos tratamentos para que não sofressem?

 

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito(IBIDEM, p.85).

 

A narrativa segue com Sinhá Vitória recolhendo os meninos que já tinham pressentido, pelos movimentos do pai, o que ia acontecer, para que eles não presenciassem a cena. Os meninos lamentavam a perda de uma amiga: “Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras” (IBIDEM, p.85-86).

Sinhá Vitória vivia um drama interior: aceitava a decisão de Fabiano, mas lamentava por ele não ter esperado um pouco mais para ver se o sacrifício era realmente necessário. Mas, existe sacrifício de vida necessário?

A cena que descreve o tiro é de um realismo característico da narrativa em questão: forte e ao mesmo tempo áspera,

 

(...) A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente (IBIDEM, P.87).

 

            A frieza e a determinação com a qual Fabiano age ao sacrificar Baleia leva o leitor a visualizá-lo como alguém que não é passível de sentimentos, não humano. Ao contrário, quando Graciliano narra as atitudes de Baleia em um momento tão árduo, ele a constrói com um ser humano muito sensível. O antropomorfismo presente em toda a narrativa impressiona não apenas pela atribuição de características humanas à Baleia, mas pela forma como esta construção se entrelaça com toda a obra, como ela dialoga com a construção imagético-discursiva do sertão e do sertanejo feita por Graciliano Ramos.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis (IBIDEM, p.88).

 

 

            Baleia, refletindo sobre a vontade de morder Fabiano, argumenta para si mesma: “Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas” (IBIDEM, p.89). Aqui é a cadela quem é capaz de valorizar sentimentos de amizade, de respeito, de cumplicidade, de companheirismo.

Em meio à nevoa que encobre seus olhos, à vida que se esvai, Baleia começa a delirar, a tentar compreender porque a sua rotina tem lhe fugido o controle, porque a noite chegou, onde estão os ruídos que lhe são familiares e lhe indicam o que fazer, como o bater das asas do galo e o tilintar do chocalho das cabras. A vida se esvai da cadela e Graciliano, com um quê de poesia e sofrimento narra seu último momento: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes” (IBIDEM, p. 91).

Ao construir sua narrativa usando como personagem uma cadela, Ramos potencializou o debate sobre como os diferentes espaços permitem diferentes relações entre o ser humano e as variadas espécies em seu entorno. Com seu estilo realista, com sua narrativa forte, intensa, o autor visibilizou um debate que não era emergente à época da escrita do livro. Invertendo os papéis: humanizando Baleia e animalizando Fabiano, o debate se desloca da discussão que atende apenas à construção de uma identidade pejorativa para o nordestino. Não por acaso há várias interpretações para a personagem Baleia e não por acaso o livro não se esgota: permite leituras, releituras, pesquisas e discussões à luz dos vários tempos históricos e grupos sociais. Que esta breve reflexão acrescente mais uma pitada de tempero às leituras de Vidas secas, e que o romance seja, também, uma provocação para que possamos pensar e repensar as nossas relações para com as outras espécies e o nosso papel dentro de um recorte geográfico maior chamado Terra, fornecendo subsídios para eventuais trabalhos de Educação Ambiental contextualizada.

 

Referências

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

 

ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1978.

 

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Martins Editora, São Paulo, s/d.

 

BIBLIA SAGRADA. 99 ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1995.

 

GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. São Paulo: Martin Claret, 2001.

 

QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 56 ed., São Paulo, Siciliano, 1997.

  
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 56 ed.  São Paulo: Record, 1986.

 

REGO, José Lins do. Banguê. 10 ed. São Paulo: Livraria José Olympio, 1978.

 

SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

 

TÁVORA, Franklin. O cabeleira. São Paulo: Ática, 1971.

 

 

SITE CONSULTADO:

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,pet-shops-nao-podem-mais-expor-animais-em-vitrines-e-gaiolas,1622809  acesso em 23/01/2015.

 

Ilustrações: Silvana Santos