Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Entrevistas
27/11/2016 (Nº 58) ENTREVISTA COM ROQUE SPIES E ODETE SPIES PARA A 58ª EDIÇÃO DA REVISTA VIRTUAL EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO
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ENTREVISTA COM ROQUE SPIES E ODETE SPIES PARA A 58ª EDIÇÃO DA REVISTA VIRTUAL EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO

 

Apresentação: Os entrevistados desta edição são Roque e Odete Spies. Eles moram em Dois Irmãos (RS) e atualmente atuam com assessoria em reciclagem e capacitação de recicladores/catadores em associações/cooperativas. Anteriormente trabalharam na organização da reciclagem em Novo Hamburgo e foram fundadores da cooperativa em Dois Irmãos, por 12 anos. Conhecemo-nos há muito tempo em uma palestra de Rubem Alves, graças a um gostoso chimarrão que nos foi gentilmente oferecido por eles, e a partir de uma conversa entre Roque, sua esposa Odete, meu marido Pedro e eu, logo nos identificamos em nossos ideais. Ao longo destes anos não perdemos mais o contato e há alguns meses participei de um evento em que Roque e Odete participaram da organização: O Fórum dos Recicladores do Vale dos Sinos. Sendo a reciclagem uma temática que está diretamente associada à Educação Ambiental, considero de extremo valor conhecer essa louvável trajetória para compartilhá-la com todos vocês, queridos(as) leitores(as). Tenho certeza de que muito vamos aprender!

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Roque e Odete Spies – Foto divulgação

Bere – É um enorme prazer tê-los como nossos entrevistados desta edição da revista Educação Ambiental em Ação. Para começar, gostaria de perguntar o porquê de vocês se interessarem pelas questões da reciclagem e como foi o começo desta trajetória:

Roque e Odete – Em nossas vidas sempre tivemos preocupação com as questões ambientais. Mesmo quando não se fazia coleta seletiva, fazíamos separação dos resíduos gerados na nossa casa e aproveitávamos os orgânicos para compostagem e cultivo de horta e jardim. Prática que temos até hoje.

Desde os anos 70 temos um engajamento social com muito trabalho voluntário e profissional em comunidades da região. Em 1990 fomos convidados para ajudar na organização da Cooperativa dos Recicladores em Novo Hamburgo, no Bairro Roselândia e posteriormente em Dois Irmãos. Aceitamos este desafio com a certeza de que com este trabalho poderíamos sensibilizar muitas pessoas a terem um maior cuidado com os resíduos, valorização dos profissionais que atuam neste trabalho e pelas questões ambientais mais amplas.

Bere – O lixo, ou resíduos, é um problema que enfrentamos de longa data e que vem se acentuando pelo elevado grau de consumo, que a cada dia aumenta. Como a reciclagem pode auxiliar para minimizar esse problema?

Roque e Odete – Começa com a consciência de que cada um é responsável pelos resíduos que gera e que eles precisam ser separados na origem. O poder público deve investir na educação ambiental, organizar uma coleta seletiva e proporcionar uma estrutura de trabalho adequada para que as cooperativas de recicladores possam realizar um bom trabalho mediante contratos que remunerem dignamente.

O trabalho dos recicladores/catadores é muito importante porque são eles que classificam os diferentes tipos de embalagens para voltarem como matéria-prima, ao ciclo produtivo das indústrias

Bere – Como é o trabalho que vocês vêm desenvolvendo, atualmente?

Roque e Odete – Não trabalhamos mais diretamente na Cooperativa de Dois Irmãos.  Hoje realizamos processos de capacitação e assessoria em diversas cooperativas/associações no Estado. Cada realidade exige uma atuação diferente. Nossa contribuição se dá tanto nos aspectos organizativos de grupo, bem como no trabalho prático, conhecimento de materiais, técnicas de triagem, comercialização, etc. Quase sempre tem também a conversa com o poder público sobre a coleta seletiva e o apoio às cooperativas.

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Roque, Odete e equipe, em ação – Foto divulgação

 

Bere – Quais são os maiores desafios?

Roque e Odete – O pouco apoio e reconhecimento do trabalho dos recicladores pelo poder público e sociedade;

- A dificuldade de organização como grupo e solução de conflitos;

- A baixa escolaridade dificulta o surgimento de lideranças capazes de lidar com os aspectos formais da organização;

- Os baixos preços pelos produtos comercializados;

- A falta de outras políticas públicas capazes de atender as necessidades das famílias dos recicladores como creches, moradia, saúde, etc.

Bere – Como o poder público tem atuado em relação a estas questões?

Roque e Odete – Muitos pontos da Lei 12.305 – Política Nacional de Resíduos Sólidos não estão sendo cumpridos;

- Em geral, as coletas seletivas são ineficientes;

- Instalações precárias para o trabalho de reciclagem;

- Inexistência de contratos com as cooperativas ou contratos com valores muito baixos. Em geral, os contratos são para realizarem coletas, mas não para o serviço de triagem. Em consequência, remuneração baixa, falta de equipamentos de segurança para a proteção do trabalhador, má alimentação, não contribuição para o INSS, etc. Isto gera rotatividade de trabalhadores e não profissionaliza.

Existem algumas exceções.

Bere – A Educação Ambiental pode contribuir para o trabalho de reciclagem?

Roque e Odete – Sim, e muito. As pessoas precisam ser sensibilizadas e adquirir convencimento de práticas sustentáveis. Nada melhor do que poder vivenciar experiências de cuidado com resíduos, água, etc. É interessante poder visitar locais onde se realiza este tipo de trabalho para compreender melhor a importância da separação dos resíduos na origem.

Bere – Como a população, em geral, vê o trabalho dos recicladores?

Roque e Odete – Muita gente não conhece. Tem gente que discrimina. Algumas Prefeituras ajudam na organização de eventos para maior visibilidade dos recicladores.

Bere – Os catadores da nossa região desenvolvem um trabalho em rede. Contem-nos um pouco sobre essa rede e sobre a sua importância para o desenvolvimento dos trabalhos.

Roque e Odete – Aqui na região os recicladores criaram, em 2002, o FÓRUM DOS RECICLADORES DO VALE DO SINOS.  Tornou-se um espaço de debates, formação e integração entre as diversas cooperativas de toda a região sempre acompanhadas por chimarrão gostoso e partilha de comes. As reuniões são mensais para troca de experiências, estudos e organização de atividades como Seminários abertos à comunidade e mobilizações a favor da coleta seletiva, contra a incineração de resíduos, etc. Apoia também a organização de Fóruns Municipais.

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Mobilização do Fórum em defesa da coleta seletiva – Foto divulgação

 

Bere – Como é possível incentivar que mais pessoas se envolvam com as Cooperativas de Reciclagem? Vocês oferecem cursos e oficinas?

Roque e Odete – As cooperativas realizam ou participam de atividades para divulgar mais seu trabalho. Também recebem visitas individuais ou em grupos. As escolas têm realizado visitas com grupos de alunos.

Nós nos disponibilizamos para a realização de oficinas ou palestras. Contatos: Odete: odete.mulheres@terra.com.br - Fone: 51 993914332 e Roque: roque.reciclos@gmail.com - Fone: 51 999721786.

Bere – Para reciclar é preciso, antes, separar os resíduos, claro. As pessoas estão separando o lixo em suas residências?

Roque e Odete – Houve um avanço e muita gente já separa seus resíduos. Acontece que quando não existe uma coleta seletiva em toda a cidade e de forma eficiente, as pessoas desanimam.

Bere – É verdade, sempre escutei muito isso das pessoas: “O que adianta separar se não há coleta seletiva?”, lamentável, e realmente precisamos de mais ações de educação ambiental para justamente mostrar que, independente do sistema de coleta, o melhor, o ideal é separar nossos resíduos em casa. E as empresas, estão realizando uma boa gestão dos seus resíduos?

Roque e Odete – Houve um avanço, mas o setor industrial continua lançando no mercado embalagens que não tem aceitação no mercado de reciclagem. As Prefeituras acabam arcando com os custos de coleta e aterro.

Bere – No mínimo as empresas deveriam se responsabilizar pelas embalagens dos produtos que promovem resíduos. E Sobre o trabalho do catador, qual é, para vocês, a sua importância?

Roque e Odete – É pelo trabalho dele que muitas embalagens retornam ao processo produtivo industrial. Tem grande impacto ambiental pela economia de recursos naturais. Por isso defendemos que o trabalho dele deve ser mais reconhecido pelo poder público para que possa ter estrutura e garantia de direitos.

Bere – Além da triagem para a reciclagem de materiais, há muita união entre as pessoas dos diferentes grupos e cooperativas de reciclagem, configurando-se uma atividade de fundamental importância para o desenvolvimento social. Como vocês percebem esse entrosamento e o aspecto cultural dessas atividades?

Roque e Odete – As cooperativas gostam de se encontrar, prestar solidariedade umas às outras, confraternizar e realizar atividades de integração com a comunidade como participação em desfiles, apresentação de coral, etc. Também organizam mobilizações em defesa de políticas públicas e dos seus direitos.

Bere – Contem-nos algo curioso que tenha acontecido ao longo da experiência de vocês:

Roque e Odete – Certa vez fomos convidados para uma reunião na Prefeitura com representantes de empresas da área da construção civil, da cidade de Dois Irmãos, a partir da nossa constatação de que resíduos de construção vinham misturados na coleta seletiva. Resolvemos levar algumas sacolas para fazer uma demonstração do problema.  Durante a reunião alguns participantes afirmavam que nas suas obras os resíduos eram separados. Abrindo as sacolas expusemos os materiais misturados (latas com resto de tinta, papéis, plásticos, argamassa e equipamentos de segurança). Foi um espanto, e um deles reconheceu sua camisa e botinas misturadas com os resíduos.  E não foi necessário falar mais nada.

Bere – Vocês mostraram que eles não separavam, e assim os surpreenderam. Muito bom! Foi uma atividade de sensibilização! E o que lhes dá maior satisfação realizando esse trabalho?

Roque e Odete – É quando o poder público reconhece a importância do trabalho dos recicladores como profissionais sujeitos de direitos.

Bere – Tem algo que não perguntei e que gostariam de nos colocar?

Roque e Odete – A reciclagem contribui, mas não soluciona a problemática dos resíduos.  Há uma avalanche de resíduos que estão sendo enterrados, que são recicláveis ou não. Também são necessários investimentos na compostagem dos resíduos orgânicos.

Precisamos pensar cada vez mais num consumo consciente para que as futuras gerações possam ter recursos para viver no planeta. 

Bere – Deixem uma frase, uma palavra ou uma ideia como incentivo para quem quer se envolver com reciclagem.

Roque e Odete – Não basta conhecimento, é preciso atitude.  Depois que os resíduos saem da sua casa eles passarão pelas mãos de outras pessoas. Pense nelas e se achar que é difícil separar, é só não misturar.

Bere – Roque e Odete, em nome de toda equipe da revista Educação Ambiental em Ação agradeço a vocês pelo compartilhamento de experiências tão importantes, e diria fundamentais para a qualidade de vida de todo o planeta. Que essa entrevista incentive a lidarmos com os nossos resíduos de forma consciente, separando-os na origem, ou seja, dentro de casa, nos estabelecimentos em geral e empresas. E que, acima de tudo, que o trabalho dos catadores e que as Cooperativas de reciclagem recebam mais atenção do poder público e da população em geral, parabéns pelo maravilhoso trabalho e muito obrigada!

Ilustrações: Silvana Santos