Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Entrevistas
10/09/2018 (Nº 55) ENTREVISTA COM MÍRIAM MORATA NOVAES PARA A 55ª EDIÇÃO DA REVISTA VIRTUAL EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO
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ENTREVISTA COM MÍRIAM MORATA NOVAES PARA A 55ª EDIÇÃO DA REVISTA VIRTUAL EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO

Por Bere Adams

 

 

Descrição: C:\Users\Toshiba\Documents\entrevista55_arquivos\image001.jpgA entrevistada desta edição é Míriam Morata Novaes. Ela mora na Serra da Cantareira, em São Paulo, é arquiteta, fez filosofia, é mestre em Ciência da Religião na PUC-SP e terminou créditos para doutorado em Arquitetura na FEC Unicamp, com tema da tese “Uma casa popular sustentável – Faça você mesmo”. É presidente da ONG RECRIAR.COM.VOCÊ que tem alguns projetos voltados para a Arquitetura e Construção Sustentável e Educação Ambiental.  http://www.recriarcomvoce.com.br/blog_recriar/. Entre esses projetos está a criação do CENTRO TECNOLÓGICO RECRIAR, cujo principal objetivo é incentivar a Pesquisa de materiais e sistemas construtivos e o de inserir a construção sustentável em quatro justificativas importantes: social, ambiental, econômica e tecnológica. O Projeto pretende desenvolver uma casa de 50m2 com custo final até R$ 7.000,00, com materiais e sistema construtivo sustentáveis, que possa ser executada em sistema de mutirão. Trata-se de um projeto de suma importância tendo em vista que a indústria da construção civil é uma grande geradora de impactos ambientais. Pesquisas indicam que “as áreas degradadas provocadas pela construção civil ocorrem em três momentos distintos: na extração e fabricação de materiais de construção, na execução das obras e na disposição dos resíduos por ela gerados”. Cabe destacar que muito além dos benefícios ambientais, as construções sustentavam são, também, mais acessíveis, incentivam a colaboração e o cuidado pelo bem comum e permitem, sem dúvida, melhorar a qualidade de vida das pessoas que optam por vivenciar uma filosofia de vida mais ecológica, bem como das pessoas de baixa renda. Portanto, se trata de um imprescindível projeto de construções sustentáveis. Vamos então, conhecer mais “de perto” a arquiteta idealizadora Míriam e esse tão importante projeto.

 

Bere – Olá, Míriam, é uma honra e uma alegria muito grande tê-la como nossa entrevistada desta edição e agradeço muito pela sua disponibilidade em compartilhar conosco a sua experiência, muito obrigada! Bem, vamos começar por você! Como surgiu o seu interesse pelas questões ambientais? O que te motivou?

 

Míriam – Olá Bere, é uma alegria muito grande participar de um trabalho sério e bonito como o seu. Acho que nasci amando a natureza! Meus pais e avós sempre tiveram uma relação de profundo respeito pelas plantas e bichos. Quando eu era criança sempre via a minha avó materna pegar talos e folhas das casas que visitava, ou dos canteiros da rua, e quando chegava em casa, plantava; pouco tempo depois me mostrava os brotos nascendo e dizia – “lembra daquele galhinho que eu roubei?” Isso era mágico. A minha avó paterna tinha uma horta e eu adorava procurar morangos embaixo das folhas. Acho que essas coisas me levaram a ter um respeito profundo por tudo que é vivo. Sou uma pessoa profundamente religiosa e a Natureza é sagrada para mim. Há alguns anos fiz alguns projetos para o Programa Minha Casa Minha Vida e através do contato com comunidades carentes percebi que alguma coisa precisava ser feita, urgentemente para mudar os valores e a relação das pessoas com a casa - moradia e a casa - planeta. Junto com um grupo de pessoas comprometidas com a Vida e esse sistema maravilhoso que sustenta tudo, resolvemos criar a recriar.com.você que tenta levar a ideia de que “O Planeta é o nosso Lar”.

 

Bere – No seu ver, dentro da sua área de atuação, quais são os principais problemas ambientais a serem enfrentados, na atualidade?

 

Míriam – Acredito que o nosso principal desafio será a EDUCAÇÃO. Não adianta ensinar a construir uma casa com sistema de captação de água de chuva e os moradores passarem o dia lavando carro ou com a mangueira ligada no quintal. Mais do que morar em uma casa sustentável, é necessário que a cultura da sustentabilidade faça parte da rotina das pessoas. Para isso é necessário resgatar valores básicos como respeito pela vida, o cuidar do outro - seja uma pessoa, uma planta ou um bicho. Só a Educação pode ajudar a resgatar esse respeito pela Vida. Nosso papel é informar e oferecer ferramentas para consertar o estrago que já está feito e que é bem grande. Entre os problemas mais gritantes eu vejo a questão do resíduo sólido e a construção civil é a grande vilã; eu poderia citar o desmatamento, poluição e mau uso da água, mas acredito que por detrás disso está a ambição, o egoísmo e um sistema político que não serve para cuidar de nada, a não ser de interesses pessoais de uma minoria ínfima da população deste planeta.

 

 

Bere – Cada vez mais pessoas estão buscando alternativas para minimizar impactos ambientais, porém, muitos problemas ambientais sérios são tratados com descaso, principalmente por órgãos governamentais. Eu te pergunto, como cidadã, como você percebe a atuação do governo, nesse sentido?

 

Míriam – Eu acredito que os órgãos governamentais são omissos na maior parte dos casos. Eu vejo que os grandes desastres ambientais sempre foram anunciados e nem por isso foram evitados. As grandes empresas enxergam os recursos naturais como fonte inesgotável de lucro e de alguma forma, eles sempre encontram apoio de políticos para continuar seus projetos megalomaníacos e assassinos. Por outro lado, conheço muitas pessoas que trabalham nas secretarias com ideias, projetos, soluções maravilhosas e levam isso para as escolas, comunidades e eventos de rua. Alguns fazem esses trabalhos sozinhos – a Euquipe – como diz um amigo meu do Meio Ambiente de Campinas. Infelizmente essas pessoas tentam apagar o incêndio com copo de água, mas felizmente eles não desistem, não deixam a esperança morrer.

 

Bere – Em relação à educação, como você percebe as ações de Educação Ambiental em sua localidade? São significativas?

 

Míriam – Eu moro na Serra da Cantareira e todos os dias vejo máquinas arrancando árvores, pessoas cimentando o gramado e colocando vasos para “preservar o verde”. Aqui existem trabalhos isolados de ambientalistas que percorrem a Serra para salvar mudas e ninhos depois das tempestades, alguns plantam árvores nativas, mas, ações de mobilização de Educação Ambiental e preservação desta floresta maravilhosa, infelizmente eu não vejo.

 

Bere – Interessante e triste o seu relato de não ver ações específicas de Educação Ambiental no seu entorno, lamentável! Conte-nos como nasceu o Projeto Recriar com Você:

 

Míriam – Em 2010 criamos o grupo com 12 pessoas de diversas áreas, interessadas em levar aos moradores de comunidades carentes e público em geral (preferencialmente os excluídos) a possibilidade de fabricar componentes, construir a própria casa e compreender a cultura da sustentabilidade como uma nova opção de vida. Hoje fazemos parte de outras redes, temos voluntários ligados às igrejas, ONGs, clinicas de reabilitação de dependentes químicos, moradores de comunidades, universitários e simpatizantes do nosso trabalho; CRAS, Escolas, etc. Juntamente com o trabalho de campo, desenvolvemos um blog, que hoje tem mais de 9 milhões de visitas e divulga técnicas e novidades sobre construção sustentável e educação ambiental.  Fazemos palestras em Escolas, Construtoras, Universidades, Comunidades, eventos como Virada Sustentável, Dia de Cidadania em tendas no centro de São Paulo, Semana do Meio Ambiente nas ETEC e FATEC, Rotary, etc. Com o trabalho na comunidade percebemos que para atender ao nosso objetivo  - Pesquisa è  Desenvolvimento de Componentes e Tecnologia è Capacitação è  Produção de Materiais e Tecnologia  è Construção da casa - precisaríamos de um Laboratório e um Centro de Ensino e daí surgiu o projeto Centro Tecnológico Recriar.

 

Bere – Tem alguma pessoa que te inspirou? Alguma personalidade?

 

Miriam – Acredito que não existe uma pessoa, mas, os grandes idealistas que passaram por aqui, pessoas que acreditaram na Justiça, na Paz e no respeito pela Vida sempre me inspiraram. Porém, quem me move são as pessoas que nunca estão na frente do palco, pois são eles que fazem toda diferença. É o catador de reciclado que tira toneladas de resíduo das ruas e transforma em comida; é a dona de casa que faz milagre todos os dias para inventar receitas com talos, cascas, ervas que planta nos vasinhos; inspiro-me nas pessoas que dividem o pouco que têm com animais abandonados e às vezes deixam de pagar a luz para pagar veterinário. Sabe, aquelas senhoras idosas que plantam flores nas praças? Pois é... E aqueles loucos que se penduram nos navio para impedir a matança de baleias? E a criança que adota um sapinho e dá nome para a lagartixa... Esses todos são minha fonte de inspiração. São as “formigas” que mudam o mundo e infelizmente os donos do terreno também se acreditam donos do formigueiro e atrapalham bastante, mas eles nem imaginam o trabalho que está sendo realizado embaixo dos pés deles.

 

Bere – Quais foram (ou são) as maiores dificuldades enfrentadas para o desenvolvimento do projeto?

 

Míriam – A primeira grande dificuldade acredito que é a mesma de todas as ONG’s: a falta de patrocínio. Fazemos o nosso trabalho com dinheiro próprio e isso sempre limita muito nossas atividades. Ainda não conseguimos o terreno para nossa sede, o Centro Tecnológico. Outra dificuldade é entrar nas comunidades para atuar junto aos moradores. Geralmente as comunidades têm dono e é muito complicado lidar com isso, mas é uma barreira que precisamos tratar com cuidado. Depois dessa barreira transposta, precisamos lidar com valores e hábitos muito arraigados como desperdício de água e energia elétrica; falta de saneamento; resistência por parte de alguns moradores para ouvir essas “novidades burguesas”, etc. Entretanto, o mais difícil  é fazer com que essas pessoas - que conseguem sobreviver no meio do lixo, esgoto, barracos sem nenhuma condição de habitabilidade - acreditem que gente foi feita para brilhar e não para viver em condições sub-humanas.

 

Bere – E quais foram as realizações que te fizeram vibrar mais? Tem algum momento, ou alguns momentos especiais que você pode destacar?

 

Míriam – Muitos momentos foram emocionantes, entre eles eu destaco três que foram com públicos completamente diferentes. O primeiro foi em uma casa que estávamos construindo em Mairiporã, e a família era muito pobre, moravam no meio da reserva em um terreno invadido. Nós ensinamos essa família a plantar verduras e a mãe deles disse emocionada que nunca ninguém tinha ensinado a ela como plantar comida e agora ela poderia dar salada para os seis filhos, sem gastar nada. Outro momento emocionante foi quando estava saindo de uma palestra que fiz com o pessoal da FEC Unicamp, e um grupo de alunos me cercou e disse – “Míriam, como podemos ajudar essas famílias? A gente quer colocar a mão na massa e fazer alguma coisa útil.” E essa garotada vai trabalhar conosco no projeto da favela buraco do Sapo em Campinas. A última experiência que me emocionou bastante foi quando estávamos fazendo o contra piso de uma casa em uma favela de Caieiras. Uma criança de seis anos, moradora da casa, estava distante durante todo o nosso trabalho, desde a demolição do barraco até a preparação do terreno. Eu já tinha tentado de várias maneiras trazer essa menininha para a atividade e não conseguia quebrar o gelo. Quando estava alisando o cimento, eu a chamei e disse – “Este vai ser o seu quarto! Eu pensei em fazer o piso verde, o que você acha?” Ela respondeu – “Posso pensar?” – Eu fiquei desanimada e disse – “Claro, semana que vem você me fala.” Na semana seguinte ela veio logo que cheguei e disse – “Eu gosto mais de amarelo, o meu quarto vai ser amarelo.” Uau! Eu falei – “Então vamos comprar pó xadrez para tingir o piso.” E ela me mostrou a caixinha do pó – “Eu já comprei.” Pronto! A semente começava a brotar.

 

Bere – Nossa! Muito emocionantes estes relatos, Míriam, realmente são momentos de muita vibração! E quais são os maiores benefícios de uma construção sustentável?

 

Míriam – “As atividades relacionadas à construção civil são as maiores responsáveis pela degradação ambiental, que ocorrem por meio do consumo excessivo de recursos naturais, pela demanda por matéria prima industrializada e pela geração de resíduos. O setor é atualmente um dos maiores causadores de impactos ambientais, consome 75% dos recursos naturais extraídos, gera 80 milhões de toneladas de resíduos por ano e, devido à queima de combustíveis fósseis, sua cadeia produtiva contribui de forma significativa para a emissão de gases de efeito estufa (GEE), como o CO2. Também responde por 40% do consumo mundial de energia e por 16% da água utilizada no mundo.” Soma-se a isso no Brasil, de acordo com o Ministério das Cidades, o déficit habitacional para a população de baixa renda que é estimado, hoje, em 7,223 milhões de moradias, ou seja, a população com renda média familiar mensal até três salários mínimos.

O resultado para o planeta será:

• menor impacto ambiental;

• redução do consumo de energia;

• redução do consumo de água;

• melhoria do conforto térmico;

• redução e minimização de resíduos;

• saneamento eficiente;

• paisagismo produtivo.

 Para as pessoas isso significa morar com qualidade e começar uma nova relação com o meio ambiente.

 

Bere – Como é o processo de construção, quais os materiais e quanto tempo?

 

Míriam – Existem diversos materiais que já foram testados e apresentaram resultados ótimos como o bloco de solocimento, o superadobe, o painel monolítico de solocimento, taipa, etc. Minha pesquisa é sologesso, ou seja, fazer blocos ou painéis com mistura de gesso reciclado e terra. Os testes que fizemos na UNICAMP foram muito encorajadores e acredito que muitos pesquisadores sejam eles ligados à academia ou não, estão desenvolvendo materiais novos e sistemas construtivos que permitem a construção em mutirão. Isso é fundamental para baixar o custo da obra e ao mesmo tempo capacitar pessoas para essa profissão. Quanto ao tempo, dependendo do material, bloco de solocimento por exemplo, uma casa de 50 m2 pode ser construída em um final de semana.  O material e o sistema construtivo dependem da localização da casa, uma região onde o coco, por exemplo, é muito abundante nós precisamos estudar a fibra do coco para agregar aos novos materiais, assim evitaria que essas cascas se transformassem em lixo.

 

Bere – Os resultados têm sido conforme o esperado?

 

Míriam – Estamos engatinhando ainda, mas até agora superou muito o que imaginei como um bom resultado. A realidade muito mais rica do que a teoria e às vezes nos surpreende. Um dia estávamos em um evento de rua e um homem muito simples se aproximou da nossa tenda para pedir explicações sobre o nosso trabalho. Depois que eu expliquei ele disse – “A senhora já testou terra com baba de cupim?” Eu nem sabia que cupim babava e de repente estou agora recolhendo material em cupinzeiro, formigueiro e outros tipos de solo para saber o que podemos aprender com esses pequenos construtores.

 

Bere – Que fantástico, eu também não tinha ideia dessa informação sobre a baba do cupim! E para você, Míriam, o que significa o Projeto Recriar com você?

 

Míriam – Significa a possibilidade de trazer moradores de comunidades carentes, alunos de arquitetura e engenharia, profissionais da área de construção civil, internos de clínicas de recuperação e público em geral, para juntos recriarmos o jeito de construir, morar e cuidar do planeta.

 

Bere – Onde é possível acessar informações? Quais os links e endereço para contato?

Em nosso blog estão publicados os nossos trabalhos e diversas pesquisas sobre o assunto.

http://www.recriarcomvoce.com.br/blog_recriar/

 

Bere – Deixa uma frase ou um pensamento para nossos leitores e nossas leitoras:

 

Míriam – O Martin Luther King tinha um sonho, e nós também: Fazer uma ponte entre os saberes da Academia e os saberes da população, que utiliza técnicas de construção alternativas, com terra, materiais descartados pela indústria da construção civil, etc. Juntos nós podemos construir casas com qualidade e de baixo custo. Juntos podemos transformar esse monstro que é a construção civil em um poderoso aliado. Juntos podemos resgatar uma relação saudável e amorosa com o planeta e mudar esse conceito tacanha de que o planeta existe par anos servir.  Muito obrigada pela oportunidade para falar de nosso trabalho e não vamos desistir de cuidar deste planetinha azul. Ele merece, e nós também.

 

Bere – Prezada Míriam! Nós da equipe da revista Educação Ambiental em Ação que te agradecemos muito pela sua participação nesta entrevista esclarecedora e que amplia a esperança de todos nós em relação a, literalmente, construirmos um mundo melhor. Parabéns a você, e a todo grupo por essa luta e desejamos sempre muito sucesso neste tão necessário e valoroso projeto, muito obrigada!

 

 

 

Ilustrações: Silvana Santos