Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 52) A APREENSÃO DE VEÍCULOS UTILIZADOS EM INFRAÇÕES AMBIENTAIS NO BIOMA AMAZÔNICO: UMA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS À LUZ DA TEORIA DE FRIEDRICH MÜLLER
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A APREENSÃO DE VEÍCULOS UTILIZADOS EM INFRAÇÕES AMBIENTAIS NO BIOMA AMAZÔNICO: UMA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS À LUZ DA TEORIA DE FRIEDRICH MÜLLER

 

 

Larissa Suassuna Carvalho Barros

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco

Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp

 Procuradora Federal do IBAMA e ICMBio em Santarém/PA – dez/2011 a jul/2014

Procuradora Federal junto à Procuradoria Regional Federal da 1ª Região

E-mail: larissa_suassuna@hotmail.com / Telefone: (61) 8315-0011

 

 

 

 

RESUMO: A apreensão é uma medida de natureza cautelar prevista na Lei nº 9.605/98, passível de aplicação nos limites do poder de polícia ambiental. Quando se trata de apreensão de veículos utilizados no cometimento de infrações ambientais, entretanto, a jurisprudência maciça dos Tribunais brasileiros é no sentido da sua impossibilidade, à vista de uma interpretação literal do artigo 25, § 4º, da citada Lei. O objetivo do presente artigo é o de – à luz da essência da teoria estruturante do direito de Friedrich Müller – demonstrar a inadequação da interpretação dada pelos Tribunais ao mencionado dispositivo legal, que comumente o aplicam de forma completamente alijada da realidade.

 

PALAVRAS-CHAVE: Constitucional. Ambiental. Hermenêutica. Infrações administrativas ambientais. Apreensão. Veículos.  

 

 

INTRODUÇÃO

 

A Lei nº 9.605/98 põe à disposição dos executores da Política Nacional do Meio Ambiente no exercício de atividades de fiscalização ambiental um importante instrumento de tutela: a possibilidade de, nos limites da discricionariedade administrativa vinculada, apreender animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração.

 

No que se refere à apreensão de veículos, especificamente, é preocupante o posicionamento dos Tribunais brasileiros. Isso porque, via de regra, os juízes conferem uma interpretação literal ao artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98, defendendo que tal dispositivo legal só franqueia a possibilidade de apreensão de instrumentos da infração fabricados exclusivamente para finalidades ilícitas.

 

À luz das bases da teoria estruturante do direito de Friedrich Müller, o que se pretende é alertar para o cabimento e – mais que isso – para a necessidade de dar uma melhor interpretação ao referido dispositivo legal, atenta à realidade e mais favorável ao meio ambiente, posto que um veículo flagrado na prática de infração ambiental raramente é utilizado de forma esporádica para esse fim, máxime quando se trata de infrações no Bioma Amazônico.

 

 

1. AS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS E A MEDIDA DE APREENSÃO NA LEI Nº 9.605/98

 

Por imposição constitucional, as condutas consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitam os infratores à responsabilização nas esferas penal e administrativa, além de obrigá-los à reparação dos danos causados, na esfera cível. É o que se depreende com clareza do artigo 225, § 3º, da Constituição Federal de 1988, a seguir transcrito:

 

Art. 225. [...]

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

(grifo nosso)

 

No intuito de dar cumprimento ao comando constitucional, foi editada a Lei nº 9.605/98, a qual “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”. Referida lei, portanto, embora popularmente conhecida como “Lei de Crimes Ambientais”, igualmente versa acerca das infrações administrativas ao meio ambiente.

 

A citada lei define infração administrativa ambiental em seu artigo 70, a qual se configura como “toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”, cuja apuração – autuação e instauração de processo administrativo – incumbe ao órgão ambiental competente.

 

Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.

§ 1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.

[...]

§ 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei.

(grifo nosso)

 

O artigo 72 da Lei nº 9.605/98, a seu turno, estabelece as sanções passíveis de aplicação, quando constatada a prática de infração administrativa ambiental:

 

Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:

I - advertência;

II - multa simples;

III - multa diária;

IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;

V - destruição ou inutilização do produto;

VI - suspensão de venda e fabricação do produto;

VII - embargo de obra ou atividade;

VIII - demolição de obra;

IX - suspensão parcial ou total de atividades;

X – (VETADO)

XI - restritiva de direitos.

[...]

§ 6º A apreensão e destruição referidas nos incisos IV e V do caput obedecerão ao disposto no art. 25 desta Lei.

(grifo nosso)

 

No que concerne à medida de apreensão, veja-se que o artigo 72 remete à leitura do artigo 25 da mesma lei, que estabelece:

 

Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos.

§ 1º Os animais serão libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.

§ 2º Tratando-se de produtos perecíveis ou madeiras, serão estes avaliados e doados a instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes.

§ 3° Os produtos e subprodutos da fauna não perecíveis serão destruídos ou doados a instituições científicas, culturais ou educacionais.

§ 4º Os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos, garantida a sua descaracterização por meio da reciclagem.

(grifo nosso)

 

 

 

2. A INTERPRETAÇÃO DADA PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS AO ARTIGO 25, § 4º, DA LEI Nº 9.605/98

 

Tendo em vista que o § 4º do artigo 25, acima transcrito, dispõe que os instrumentos utilizados na prática da infração serão vendidos após sua descaracterização através da reciclagem, os Tribunais brasileiros têm entendido que tal dispositivo se aplica apenas a instrumentos fabricados exclusivamente para fins ilícitos, o que não seria o caso de veículos, tais como caminhões e tratores, supostamente utilizados apenas em caráter eventual para tais fins.

 

Os recentes julgados abaixo, todos do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, bem elucidam esse entendimento:

 

ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO AMBIENTAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE MADEIRA. APREENSÃO DE VEÍCULO PERTECENTE A TERCEIRO. LIBERAÇÃO. POSSIBILIDADE. I - Na inteligência jurisprudencial deste egrégio Tribunal, "o veículo pertencente a terceiro, contratado para o serviço de transporte de madeira, somente pode ser apreendido, nos termos do art. 25, § 4º, da Lei 9.605/1998, quando for usado exclusivamente para o desempenho da atividade ilícita" (AC 2010.37.00.000963-0/MA, Rel. Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, Sexta Turma, e-DJF1 de 28/11/2011), hipótese não verificada na espécie dos autos, a caracterizar a ilegitimidade do ato impugnado. II - Apelação e remessa oficial desprovidas. Sentença confirmada.
(AC 200839020005670, DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, TRF1 - QUINTA TURMA, e-DJF1 DATA:05/09/2013 PAGINA:53.)

(grifo nosso)

 

ADMINISTRATIVO. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (IBAMA). INFRAÇÃO AMBIENTAL. APLICAÇÃO DE MULTA E APREENSÃO DO VEÍCULO TRANSPORTADOR DE MADEIRA PERTENCENTE A TERCEIRO. PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO PROPRIETÁRIO QUE NÃO CONCORREU PARA O ILÍCITO. RESTITUIÇÃO DO VEÍCULO. POSSIBILIDADE. 1. O veículo pertencente a terceiro, contratado para o serviço de transporte de madeira, somente pode ser apreendido, nos termos do art. 25, § 4º, da Lei 9.605/1998, quando for usado exclusivamente para o desempenho da atividade ilícita. Precedentes. 2. No caso, presume-se a boa-fé do proprietário dos veículos que desempenha a atividade genérica de transporte de cargas. 3. Apelações do IBAMA, do MPF e remessa oficial desprovidas.
(AC 200739020007947, JUIZ FEDERAL MARCELO DOLZANY DA COSTA (CONV.), TRF1 - SEXTA TURMA, e-DJF1 DATA:11/03/2013 PAGINA:314.)

(grifo nosso)

 

ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. INFRAÇÃO AMBIENTAL. TRANSPORTE DE MADEIRA. MADEIRA SERRADA E BENEFICIADA. INEXIGÊNCIA DE ATPF. 1. Embora o veículo tenha sido apreendido em situação que denota a prática de infração ambiental, não há provas de que o veículo seja destinado única e exclusivamente a essa finalidade, de modo que deve haver liberação do veículo, de acordo com o entendimento jurisprudencial desta Corte de que não pode ser condicionada ao prévio pagamento da multa. 2. "A parte agravante está comercializando madeira serrada e beneficiada estando excluída a exigibilidade da ATPF, porque não se trata de madeira 'in natura'"(TRF1 6ª Turma MAS 2000.36.00.000723-7/MT). Deve ser concedida a segurança para que seja desconstituída a pena de multa imposta por transporte de madeira sem ATPF e determinada a liberação do produto apreendido. 3. Nega-se provimento ao recurso de apelação e à remessa oficial e dá-se provimento ao recurso adesivo.
(AMS 200436000112490, JUIZ FEDERAL RODRIGO NAVARRO DE OLIVEIRA, TRF1 - 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 DATA:25/07/2012 PAGINA:129.)

(grifo nosso)

 

Com efeito, partindo-se de uma interpretação literal da norma, parece plausível e defensável o posicionamento acima exposto: se a norma exige a descaracterização do instrumento da infração por meio de reciclagem é porque efetivamente este foi fabricado com o intuito exclusivo de utilização para fins ilícitos, ilação inaplicável a veículos.

 

Penso, contudo, que a subsunção da norma ao fato, em casos que tais, não deve ser analisada a partir de um silogismo literal tão simplório e, para tanto, recorro brevemente à teoria hermenêutica de Friedrich Müller.

 

 

3. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH MÜLLER

 

As idéias de Müller, jurista alemão, são notoriamente reconhecidas pelo seu mérito de “compreender como se processa a aplicação estatal do direito na atualidade, sobretudo relevando o papel da constituição no ambiente do Estado Democrático de Direito ou até mesmo fora dele” (ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 222).

 

Para Müller, a concepção tradicional da norma e seu modelo tradicional de interpretação lógico-dedutivo, típicos da dogmática positivista, calcados no dualismo ser/dever-ser de Hans Kelsen e sua “Teoria Pura do Direito”, não são capazes de efetivamente realizar justiça no caso concreto, pois muitas vezes as peculiaridades do caso prático exigem que se vá além do que se infere do texto da norma.

 

Na concepção kelseniana, a norma está absolutamente apartada da realidade. Para ele, a ciência do direito deve ocupar-se apenas com o dever-ser, isto é, com a norma posta e seu conteúdo. Müller, entretanto, propõe uma “metódica estruturante do direito”, de modo que a norma, antes de sua efetiva aplicação, leve em conta a realidade que a circunda, sendo construída e tornada concreta através de um complexo processo.

 

Além de se contrapor à idéia kelseniana de que o texto normativo fixa os limites da decisão (moldura), a qual é fruto de um mero silogismo (premissa maior -> premissa menor), Müller igualmente rechaça a perspectiva casuística, de que o texto normativo serve apenas para ser utilizado como justificativa para decisões já tomadas, não havendo relação entre ambos, na linha do que defende Carl Schmitt.

 

Para Müller, a concretização da norma não pode ser tão simples quanto um silogismo lógico-dedutivo (Kelsen) e nem tão ilimitada quanto permite o casuísmo/decisionismo (Carl Schmitt). Segundo defende, a concretização da norma se dá exatamente quando se observa que o seu sentido não se encontra fixado objetivamente no texto, dada a sua multivocidade, dependendo substancialmente do resultado de sua interpretação. O resultado dessa interpretação, então, torna-se conteúdo daquela norma.

 

Neste ponto de partida, adere àquela linha crítica ao método positivista tradicional, defendendo a incompletude da norma, o fato de a lei não se mostrar inteiramente pronta, o que não representa uma deficiência do sistema jurídico, mas é hermeneuticamente necessário e apriorístico (Ibidem, p. 237).

 

Assim, o sujeito de concretização nunca é a norma, para Müller, e sim o jurista que irá interpretá-la. O texto da norma tem importância, naturalmente, na medida em que fixa os limites a partir dos quais a norma será concretizada, impedindo que se tomem decisões em qualquer sentido, não podendo, todavia, servir como baliza isolada.

 

A decisão, portanto, precisa ser compatível e condizente com o texto (ao contrário da linha decisionista), mas não se pode separar o texto da norma da realidade (na linha da visão de Kelsen), pois ambos estão intrinsecamente relacionados, e é dessa interação que vai surgir a norma jurídica. Assim, a norma do caso concreto só é construída a partir do caso. Só na concretização, ao ser decidido o caso, é que é produzida a norma. O que existe previamente é apenas o seu texto, que é só um “dado de entrada”, e não a norma propriamente dita. A norma vai além do texto e a concretização vai além da interpretação.

 

Müller afirma que os métodos interpretativos tradicionais positivistas fornecem somente os dados linguísticos, ao passo em que os elementos sociais e naturais que serão posteriormente intermediados pela linguagem fornecem os dados reais da concretização. Juntos, eles irão se conectar, cabendo ao intérprete articulá-los.

 

Em seguida, acrescendo-se aos dados linguísticos e aos dados reais o relato sobre o caso, o jurista transforma-os no conjunto de matérias. Analisando, então, o conjunto de matérias, o jurista irá selecionar, dentre os textos normativos válidos, as hipóteses normativas específicas que considera adequadas ao caso, formando o que se chama âmbito da matéria (que, em suma, é o conjunto de matérias com as hipóteses normativas selecionadas). “Aqui o jurista procura os artigos e parágrafos, os textos que poderiam ser relevantes para o caso que tem diante de si, e ao mesmo tempo observa a realidade, para nela descobrir informações e dados fáticos que poderiam ser significativos” (Ibidem, p. 246).

 

Prosseguindo, o âmbito da matéria, quando posto diante do caso específico, torna-se o âmbito do caso.  O âmbito do caso não possui ainda, contudo, um caráter normativo. Procede-se a uma operação, após, escolhendo os fatos normativamente relevantes a partir do âmbito do caso e relacionando-os às técnicas hermenêuticas dogmáticas (programa da norma), chegando-se ao âmbito da norma, que representa justamente os dados reais normativamente relevantes. A concretização, no entanto, só se completa quando se chega à norma aplicável ao caso concreto, obtida ao final desse processo.

 

A tese de Müller, portanto, permite visualizar as limitações de alcance e de sentido que a hermenêutica constitucional traz consigo.

 

A crise do modelo (modo de produção do Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais bem nítidos em nossos códigos (civil, comercial, penal, processual penal, processual civil, etc) (STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1999, p. 34).

 

A teoria da concretização de Müller, dessa forma, rompe paradigmas e abre o mundo da hermenêutica jurídica para novas perspectivas, mostrando que as técnicas tradicionais de interpretação comumente se revelam inadequadas à resolução dos conflitos.

 

 

4. DA NECESSIDADE DE CONFERIR UMA MELHOR INTERPRETAÇÃO AO ARTIGO 25, § 4º, DA LEI Nº 9.605/98

 

Transpondo as considerações formuladas em torno da hermenêutica jurídica para a temática da apreensão de veículos, percebe-se que a jurisprudência pátria – praticamente pacífica no sentido de defender a impossibilidade de aplicação do artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98 às apreensões de veículos, ao argumento de que tal dispositivo diz respeito tão somente a instrumentos fabricados exclusivamente para a prática de ilícitos (já que teriam que ser descaracterizados através de reciclagem) – lança mão de métodos hermenêuticos típicos do positivismo jurídico clássico, fazendo uma interpretação literal do artigo.

 

Ouso afirmar, todavia, que tal interpretação não é a mais conforme à Constituição, que alçou o meio ambiente ao status de direito fundamental. A tese de Friedrich Müller, nesse ponto, aqui exposta apenas superficialmente, nos dá a importante contribuição de mostrar que o jurista não pode, na sociedade complexa em que vivemos, extrair a intenção da norma apenas a partir de seu texto literal, fazendo silogismos. Para efetivamente implantar um Estado Democrático de Direito, o jurista tem que se ater à realidade que envolve a norma posta, aos fatos juridicamente relevantes, não podendo separar o ser do dever-ser. A norma não se resume ao seu texto. Ela só estará pronta e acabada após um processo concretizador, em que levadas em conta as peculiaridades do caso e a realidade que o envolve.

 

Seria formidável para o direito ambiental que os Tribunais brasileiros seguissem essa linha interpretativa com mais força, em especial quando se trata de demandas ambientais no bioma amazônico. Se uma interpretação literal do art. 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98 impede a apreensão de veículos utilizados para o cometimento de infrações administrativas ambientais, por não serem utilizados exclusivamente para fins ilícitos, uma interpretação à luz da essência da tese de Müller, que leve em conta a realidade amazônica, possibilitaria decisões em sentido oposto.

 

Na região da Floresta Amazônica, onde é recorrente o desmatamento e o transporte ilegal de produtos florestais, um veículo flagrado na prática de infração administrativa ambiental – tal como um caminhão transportando madeira sem a respectiva guia florestal ou um trator derrubando vegetação nativa em unidade de conservação e/ou sem qualquer licença – via de regra não é utilizado esporadicamente para tais fins. E esse fato é de conhecimento geral.

 

Na grande maioria das vezes, aquele veículo flagrado e apreendido determinada vez pelo órgão ambiental já foi utilizado em outras ocasiões para esse tipo de atividade, ao contrário do que se poderia chegar a defender, com relação a outros biomas. E certamente voltará a sê-lo quando liberado, como se tem constatado. Esses veículos possuem, sim, uma potencialidade lesiva natural, embora não tenham sido aprioristicamente produzidos para finalidades ilícitas.

 

Fazer uma interpretação meramente dogmática do artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98, máxime quando se trata de veículos apreendidos no bioma amazônico, significa expurgar totalmente a norma da realidade que a cerca. Representa um apego positivista desarrazoado ao texto da norma, desvinculando-a da intenção da norma maior que lhe confere validade (art. 225, CF/88), que é o de proteger o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

 

Nesse ponto, vale citar também as lições de Umberto Eco, que, assim como Müller, defende que as propriedades do texto em si realmente impõem limites ao alcance da interpretação legítima, mas não encerra aí a problemática: Eco defende que “a intenção do texto não é revelada pela superfície textual. Ou, se for revelada, ela o é apenas no sentido da carta roubada. É preciso querer vê-la” (ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001, p. 75).

 

Na mesma linha, Robert Alexy sustenta que os direitos constitucionais são direitos prima facie, isto é, direitos baseados em princípios, o que implica que a aplicação do direito deve ser mais do que a mera subsunção de um caso a uma regra:

 

En la determinación tanto de las condiciones fácticas de realización como de las jurídicas, el derecho constitucional tiene uma fuerza por sí mismo. Esta es la razón para concebir a los derechos constitucionales como derechos prima facie, esto es, como derechos basados em princípios. Si seguimos esta propuesta, la aplicacíon de um derecho es algo más que la mera subsunción de um caso bajo uma regla (ALEXY, Robert. Derechos, Razonamento jurídico y Discurso racional. Isonomia (Publicaciones Periódicas): Revista de Teoria y Filosofia del Derecho. Nº 1, ouctubre 1994, p. 43).

 

Tem perfeita aplicação à espécie, nesse ponto, o princípio “in dubio pro natura”, mediante o qual, na dúvida quanto à melhor interpretação a ser dada a uma norma, deve-se optar por aquela que seja mais protetiva ao meio ambiente. A interpretação das normas ambientais – aí incluído o mencionado artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/96 – deve, portanto, ser obrigatoriamente pautada nesse princípio, sendo inquestionável que a melhor interpretação a ser dada ao referido artigo é aquela que decide pela manutenção da apreensão dos veículos utilizados no cometimento de infrações ambientais, por ser este o entendimento que mais atende aos anseios constitucionais de uma tutela efetiva do meio ambiente.

 

A “vontade da constituição”, portanto, deve ser enxergada, para além do texto literal da norma infralegal. Impõe-se ao julgador observar a realidade que cerca o caso posto a sua apreciação, aplicando a norma sob essa ótica. Separar o texto normativo da realidade, fazendo interpretações lógico-dedutivas e determinando, por consequência, a liberação de veículos apreendidos pela autoridade ambiental que sabidamente são utilizados com frequência para a prática de infrações, como têm reiteradamente decidido os Tribunais brasileiros, não parece a melhor solução a ser dada, com a devida vênia.

 

Tal solução traz consigo, ainda, uma completa desmoralização do poder de polícia dos órgãos ambientais e um aumento substancial na crença na impunidade, por parte daqueles que infringem a legislação ambiental. Como consequência natural, as tentativas de controle e redução dos índices de desmatamento na Amazônia se tornam tarefa cada vez mais árdua para os órgãos de meio ambiente.

 

O juiz, ao interpretar a lei e aplicá-la, não pode fazê-lo sem se ater à realidade que o cerca e aos propósitos da constituição. Apenas dessa forma seu mister jurisdicional se posicionará efetivamente em prol da implantação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. “Pontes de Miranda afirma que a subordinação do juiz é ao direito, não à lei” (HERKENHOFF, João Batista. Como aplicar o Direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p. 89). Pois então que assim se faça, com menos apego ao positivismo e a seus métodos interpretativos alijados da realidade e com mais vontade de fazer justiça diante do caso concreto, com todas as suas vicissitudes.

 

 

5. CONCLUSÃO

       

Com a devida vênia, o atual entendimento jurisprudencial em tema de apreensão de veículos utilizados como instrumento para a prática de infrações administrativas ambientais não parece ser o mais conforme à constituição. Uma interpretação isolada da realidade – e, portanto, desatenta à necessidade de adotar uma interpretação mais protetiva ao meio ambiente – não atende aos anseios constitucionais delineados no artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

 

A teoria estruturante de Friedrich Müller, ainda que aqui exposta de forma muito superficial, permite vislumbrar a possibilidade de fazer uma exegese diferente do artigo 25, § 4º, da Lei nº 9.605/98, menos literal e mais vinculada à realidade circundante.

 

Lançando esse olhar hermenêutico menos positivista e tradicional sobre o referido dispositivo legal, certamente o aplicador do direito adotará uma postura diversa em tema de apreensão de veículos, os quais, insofismavelmente, não são utilizados apenas esporadicamente para a prática de ilícitos contra o meio ambiente, especialmente quando apreendidos no Bioma Amazônico.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica - Para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002.

 

ALEXY, Robert. Derechos, Razonamento jurídico y Discurso racional. Isonomia (Publicaciones Periódicas): Revista de Teoria y Filosofia del Derecho. Nº 1, ouctubre 1994.

 

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.

 

HERKENHOFF, João Batista. Como aplicar o Direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999.

 

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1999.

 

Ilustrações: Silvana Santos