O conhecimento liberta, a ciência ilumina, informação salva vidas! – André Trigueiro
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 87 · Junho-Agosto/2024
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Arte e Ambiente
30/05/2024 (Nº 87) PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE AS ÁGUAS
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PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE AS ÁGUAS

Cláudia Mariza Mattos Brandãoi


Resumo: O texto aborda a situação climática enfrentada pelo povo gaúcho atualmente, e suas reverberações na vida cotidiana e no imaginário social. A discussão se dá a partir da reflexão sobre o simbólico manifestado através de seres não humanos que chegam ao espaço urbano trazidos pelas águas, assim como as cobras. A análise se ampara em artistas contemporâneos que problematizam características do Antropoceno através de suas obras.



Maio de 2024, um mês emblemático para a história do Rio Grande do Sul.

No norte do estado, chuvas torrenciais provocaram enchentes e deslizamentos, e aumentaram o volume da bacia do rio Guaíba. O rio transbordou e alagou a capital gaúcha Porto Alegre e as cidades vizinhas. Ao longo do mês, seguindo o seu trajeto até o Oceano Atlântico, as águas e os detritos elevaram o nível da Laguna dos Patos. São Lourenço do Sul, Pelotas e Rio Grande também foram (e estão) seriamente afetadas.

Esta é uma breve síntese da tragédia que se abateu sobre o povo gaúcho. Alguns a classificam como calamidade climática, outros, assim como eu, uma calamidade também política. A “crônica de uma morte anunciada”, diria, visto os sucessivos relatórios emitidos ao longo dos últimos anos. Os documentos avisam sobre as possibilidades reais de invasão das águas do Guaíba e suas prováveis consequências. E eles foram ignorados pelas autoridades responsáveis.

Nesta coluna não pretendo esmiuçar a complexa teia que envolve a origem do evento natural e suas repercussões para a espécie humana. Busco problematizar o modo como o imaginário das pessoas é impactado pelos fatos em si e por outras vidas que chegam com as enchentes, em particular as cobras.

Antes da intervenção humana colonialista, dos aterros, prédios, ruas e asfaltamento das vias, os rios alteravam seu volume ao sabor das chuvas. Os povos originários sabiam disso e buscavam locais mais altos para habitar. Os colonizadores europeus, por sua vez, estavam mais interessados na expropriação das riquezas minerais. Eles transformaram o relevo, ocuparam o território, sempre de acordo com suas prioridades e “necessidades”. E isso foi (e continua sendo) motivo para outras agressões à vida humana e à não humana que aqui habita(va):

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. (Krenak, 2019, p.11).

Depois de ter mais de 90% dos municípios sul rio-grandenses atingidos pelas enchentes e deslizamentos, me parece que o nosso “jeito (gaúcho) de estar na Terra” não é o correto. A cosmovisão antropocêntrica, herdada dos colonizadores, coloca a espécie humana como centro do Universo, e suas necessidades como a medida ética de suas ações. Isso faz com que muitas pessoas se surpreendam (algumas se apavorem), não só com o avanço das águas, mas também com os seres não humanos que passam a compartilhar os espaços conosco.

Como argumenta Ailton Krenak (id., p. 58-59), “O Antropoceno (conceito que se refere à atual era geológica do planeta) tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano (...) Essa configuração mental é mais do que uma ideologia, é uma construção do imaginário coletivo”. Para seres humanos que se consideram “senhores/as” do planeta, tudo parece “fora do lugar”. Porém, se analisarmos sob o ponto de vista da natureza, é possível considerar o evento climático como uma tentativa de retorno às origens, de reequilibrar a teia da vida.

Com a invasão das águas, um jacaré foi visto nas ruas de um bairro de Porto Alegre. Piranhas também foram identificadas. Em Rio Grande, cidade onde resido, além dos ratos, habitantes comuns da cidade, nós vimos peixes e lontras nadando na rua.

E num piscar de olhos, o que era asfalto se transformou em mar.

Figura 1

Dentre tantos animais “diferentes”, que passaram a circular nos “nossos” lugares, eu decidi focar esta reflexão nas cobras e no imaginário social atrelado a elas. Isso, pois no último mês foram muitas as postagens nos canais @aovivo_rg e @conexão_rg² sobre cobras encontradas na areia da praia (Figura 1) ou em casas (Figura 2).

“Que absurdo! Cobras são perigosas e precisam ser mortas”, argumentam alguns nos comentários.

Figura 2

Venenosas ou não, as cobras costumam nos assustar. Elas remetem ao imaginário cristão do perigo, do pecado, e muitas pessoas as consideram como uma representação do mal. Entretanto, se analisarmos sob a ótica da cosmovisão de alguns povos indígenas brasileiros, ela é considerada um ser perfeito:

Desde criança, o escritor (indígena) Tiago Hakiy ouvia de seus mais velhos que deveria ser sempre como uma cobra. Ele demorou a compreender que aquela sabedoria significava ser observador do que está ao seu redor, não agir precipitadamente, e saber o momento do movimento. (Ortega, 2024, s/p).

Para essas culturas a cobra é um oráculo de sabedoria, sendo responsável pelo equilíbrio social. Vemos, portanto, a importância simbólica dessa figura emblemática, que além de povoar a cosmologia indígena, atualmente é muito presente na produção contemporânea de artistas indígenas, seja na literatura ou nas artes visuais.

Em 2020, Jaider Esbell, propositor do movimento da Arte Indígena Contemporânea, apresentou pela primeira vez a instalação “Entidades” (Figura 3), na 5ª edição do Festival CURA, Circuito Urbano de Arte, ocorrido em Belo Horizonte (MG). A obra, composta por duas cobras infláveis, instaladas no Viaduto de Santa Tereza, é uma referência à “Cobra Grande”, símbolo da fertilidade e da fartura, a protetora dos povos originários.

Figura 3: Jaider Esbell, Entidades, instalação urbana, BH, 2020.

Fonte: https://www.facebook.com/waleska.falci.5/posts/10160263632958047

Posteriormente, a instalação foi reapresentada na Moquém – Surarî: arte indígena contemporânea, com curadoria do próprio Jaider, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, integrando a rede da 34ª Bienal de São Paulo, entre 4 de setembro e 28 de novembro de 2021. Porém, foi a sua primeira montagem a que gerou muitas reações negativas, principalmente de moradores da cidade de BH. A obra foi alvo de uma série de ataques orquestrados por internautas, políticos e fundamentalistas religiosos, através das redes sociais e aplicativos como o WhastApp. Lembro de acompanhar algumas alegações de que a cobra atrairia o mal para a cidade, dentre tantas outras associações que considero absurdas.

Afastando-se da visão ocidental em que as cobras são tidas como perigo, o escritor Tiago Hakiy relembra que para seu povo, esses animais estão associados ao mito original. “Em nossa história de criação do mundo, o Deus Tupã levou todos para o céu. Os que ficaram, os encantados, eram as serpentes, como a Sucuri, Surucucu e Jiboia, que resolveram fazer um mundo para elas. Além disso, fizeram um mundo da própria irmã, uma outra cobra. Se a cobra ficasse para o céu, eles nunca iriam morrer. Mas como ela ficou com a face para terra, a serpente fica sempre chamando. Por isso as pessoas, quando morrem, vão ser enterradas”, conta Tiago. (Ortega, 2024, s/p).

Independente do significado que a cobra assuma simbolicamente para cada cultura, o que vemos com a diminuição das inundações são seres não humanos deslocados de seu ambiente natural. E isso é uma das consequências dos atos humanos, das nossas intervenções danosas que deram origem à emergência climática vivenciada. E é sobre isso que discutem as/os teóricas/os, que propõem o Antropoceno como a atual era geológica do planeta, cuja característica principal é a força interventiva humana sobre o planeta e seus impactos negativos.

Alguns artistas indígenas representam a cobra com o intuito de resgatar a presença benéfica desse ser encantado, como Esbell o faz. Outras/os, como Merremii Karão Jaguaribaras, discutem sobre a extinção de muitas serpentes, cuja vida é fundamental para o equilíbrio da fauna: “As pessoas que não compreendem esse mundo acabam causando a extinção de um ser tão importante para nossa vida. A crise climática nunca foi natural, foi causada por um determinado predador chamado ser humano”, declara Jaguaribaras (idem).

Figura 4 - ROA, cidade do México, s/d.

Fonte: https://www.widewalls.ch/artists/roa

Não somente os artistas indígenas utilizam imagens de cobras e serpentes para problematizar as inúmeras implicações relativas ao Antropoceno. ROA, pseudônimo de um artista de rua belga, há muito tempo maravilha os transeuntes de diferentes cidades pelo mundo, com seus graffiti realizados em grande escala, geralmente monocromáticos. Ele traz de volta ao meio urbano inúmeros animais a lugares que um dia habitaram. Dentre coelhos, tatus, elefantes e outros seres não humanos, surgem nos prédios imensas serpentes (Figura 4):

As criaturas são retratadas em suas formas mais puras, independentemente de estarem sozinhas ou em grupo, acordadas ou dormindo, meio esqueleto ou em movimento. Utilizando cuidadosamente a colocação e ampliação do tema do graffiti, ROA implica a crueldade e a relação absurda entre humanos e animais, além de mostrar as raízes e origens dos seres retratados - é disso que se trata a sua arte. (https://www.widewalls.ch/artists/roa).

Figura 5 - ROA, Perth, Austrália, 2014.

Fonte: https://www.widewalls.ch/artists/roa

Enquanto Jaider Esbell resgata a tradição de seu povo, seus conhecimentos ancestrais e uma relação de encantamento e respeito com relação à natureza, as obras de ROA nos confrontam com a natureza da fera (Figura 5), uma fera que é humana. Parece-me que ele nos confronta, com “um mundo que tem tamanho horror ao tédio, que compensa essa angústia com uma agitação febril que não é mais do que a máscara de uma profunda paralisia” (Mondzain, 2016, p. 14) Um mundo tecnológico no qual a espécie humana cada vez mais atua movida pela ganância e a arrogância, muitas vezes erradicando do planeta a vida de outros seres.

Eis a característica marcante do Antropoceno. E neste momento, nós, gaúchos, nos confrontamos com os resultados deste comportamento egocêntrico, violento e devastador.

O momento clama por reflexão crítica e mudança de mentalidades e comportamentos. Entretanto, tal transformação de atitudes exige tempo ... tempo que não temos. As cobras e os jacarés não são nossos inimigos. Eles somente reivindicam os seus fundamentais papéis na teia da vida.

Para finalizar esta reflexão, creio que vale destacar a indagação: qual é o nosso papel na teia da vida? As/os artistas já nos indicam algumas possibilidades.



Referências:

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.

MONDZAIN, Marie-José. Sideração. Coleção Pequena Biblioteca de Ensaios. São Paulo: Zazie Edições, 2016.

ORTEGA, Anna. A serpente costura os mundos: conheça significados das cobras para artistas e educadores indígenas. Artigo. Revista Eletrônica Nonada, 2024. Disponível em: https://www.nonada.com.br/2024/04/a-serpente-costura-os-mundos-conheca-significados-das-cobras-para-artistas-e-educadores-indigenas/ Acesso em 03/06/2024.

i Artista/Professora/Pesquisadora. Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), é Mestre em Educação Ambiental. Professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Artes. Líder fundadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

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claummattos@gmail.com

Ilustrações: Silvana Santos