Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
06/09/2023 (Nº 84) A CIDADE DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
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A CIDADE DOS RESÍDUOS SÓLIDOS



Emanuel Antunes dos Santosi

Cláudia Mariza Mattos Brandãoii



Resumo: O presente artigo aborda reflexões sobre a cidade a partir da perspectiva e produção do professor-artista Emanuel Santos vulgo LOBO. Estabelecemos relações entre as pinturas realizadas sobre a superfície de materiais retirados do lixo, como o ato de pintar nos escombros da cidade, experimentando outros modos de existir no mundo através da arte. Entendemos que todo material descartado, tudo o que criamos e por ventura abandonamos, deixa rastros de existências que permanecem de alguma forma no mundo e que interferem de maneira direta e indireta na vida de todos.



A criação artística está fortemente ancorada no que existe enquanto dado de realidade. O seu processo de realização gira muitas vezes em torno da materialização de uma inquietação pessoal do artista. E isso pode implicar na própria modificação do que já existe, para ser utilizado como suporte significativo da obra. Algo que sobra das transformações processadas sobre a coisa concreta ou o que chamamos “lixo”.

É possível dizer, que o lixo é parte integrante da vida em sociedade. Ou, como Zigmunt Bauman (2005) destaca, somos uma sociedade de consumo pautada na cultura do lixo. Ele passou da condição de uma etapa do processo de produção para ser uma das partes principais da vida social, comunitária.

O lixo porta em si uma dualidade, a de ser ao mesmo tempo memória e esquecimento. Ele está além da sua condição de algo a ser descartado, eliminado, como considera o senso comum, pois todo o objeto é objeto de memória. O descarte implica abandono, de objetos, de histórias, inclusive, de pessoas.

O lixo é um conceito que está além da visão primária do senso comum, de separar aquilo que abala a ordem, a limpeza, e precisa ser rejeitado, excluído da esfera social. E o texto é pautado nesta ideia.

Em dezembro de 2021, durante a pandemia do COVID-19 em uma viagem à trabalho como tatuador para cidade de Florianópolis (SC) LOBO decidiu participar do edital do 32° programa de exposições do CCSP (Centro Cultural de São Paulo), para seleção de exposições que fariam parte da agenda do espaço cultural em 2022. A exposição submetida ao edital, intitulada "IRS - Inserção em Resíduos Sólidos", é formada por pinturas realizadas com tinta acrílica sobre caixas de papelão, carteiras de cigarro, madeiras achadas na rua, lixo seco encontrado na cidade e também coletado na casa em que estava hospedado. Foi agregado ao conjunto das obras vídeos e fotografias do processo criativo das pinturas.

Com intuito de elaborar objetos de reflexão, que deixassem em evidência uma pequena parcela dos produtos consumidos durante o período de pandemia, as pinturas apresentam expressões humanas. São figuras retratadas tristes, doentes, com raiva, ou tomando ações por um sentimento de revolta (Figura 1) diante do que estava acontecendo no planeta naquele momento.

Figura 1

De acordo com a definição de Resíduos Sólidos Urbanos, encontrada no site do SINIR (Sistema Nacional de Informações sobre os Resíduos Sólidos), eles são aqueles originários de atividades domésticas em residências urbanas (resíduos domiciliares) e os originários da varrição, limpeza de logradouros e vias públicas e outros serviços de limpeza urbana (resíduos de limpeza urbana). Sendo assim, os materiais retirados do lixo utilizados como suporte para as pinturas se caracterizam como resíduos sólidos, que são nada mais que embalagens de pizza, salgados e pedaços de móveis descartados no lixo. São objetos descartados que se encontram em estado sólido, resto de tinta que também foram encontradas na rua e utilizadas em trabalhos comerciais foram usadas para pintar os trabalhos.

Figura 2

As pinturas feitas sobre a superfície dos resíduos sólidos trazem a estética do graffiti Old School, que são bombsiii (Figura 2) em duas cores com contornos bem definidos pintados com pincel e rolinho. São personas como o “Cabeça de café” (Figura 3), criado em um momento de lazer, uma obra que foi integrada à exposição chamada “IRS - Inserção em Resíduos Sólidos” nome que referencia os trabalhos do escultor brasileiro de Cildo Meireles (1948), “Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola” (Figura 4).

Figura 3

Figura 4: Cildo Meireles, obra da série Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970.

Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/inser%C3%A7%C3%B5es-em-circuitos-ideol%C3%B3gicos-projeto-coca-cola-cildo-meireles/8QFtzKFoty9-Gw?hl=pt

De fato, somos seres que geram resíduos a todo momento, em função dos produtos que consumimos e descartamos no decorrer de nossas vivências. Acreditamos que pensar sobre eles através da poética, entendendo que tais resíduos não se limitam somente a embalagens descartadas no lixo, nos permitem extrapolar a compreensão do senso comum. Nesse sentido, consideramos que a cidade também contém resíduos da nossa história e ancestralidade, que está presente nos prédios históricos, imóveis geralmente abandonados, muitas vezes transformados em alvos preferenciais para o mercado imobiliário. Além desses, existem também os muros solitários que encontramos aleatoriamente ao andar sem rumo pela cidade.

Portanto, analisamos os resíduos como rastros da existência, o que alguns denominam “pegada humana”. Entendemos que a cidade é uma grande composição de resíduos sólidos nos quais estamos inseridos. Sendo assim, também é possível relacionar o ato de pintar na rua como uma interferência em resíduos sólidos, pelo fato de existirem lugares inabitados em estado de abandono e degradação que os artistas usam como suporte para o seu trabalho (Figura 5). E isso se aproxima, portanto, das pinturas realizadas para a referida exposição, sobre a superfície dos resíduos de menor escala encontrados no lixo.

Figura 5

A cidade é construída e transformada pela ação das pessoas, que atuam em diferentes áreas. Dentre as construções urbanas existem aquelas mais antigas e inabitadas, ou somente inabitadas, onde não existem proprietários ou responsáveis pelo cuidado e manutenção do espaço, as quais neste texto também são referidas como resíduos sólidos. Tais construções e escombros abrem espaço para que novas formas de habitar e existir na cidade aconteçam, e artistas tenham uma superfície para expressar sua arte na rua livremente. Eles podem expressar o que quiserem, sem a intermediação de terceiros para definir limites ou palpitar sobre o que é melhor a ser feito, em resumo, fazer graffiti em sua essência.

O graffiti, uma manifestação independente realizada por crewsiv ou indivíduos, é um modo e estilo de vida que utiliza esses espaços em estado de abandono, trazendo vida a eles. Fortalecendo a arte pública, através de linhas, manchas, cores e diferentes formas expressões, algumas de cunho reflexivo, outras usadas como demarcação de território, protesto, desenhos de personagens dentre outras tantas manifestações presentes nas ruas das cidades, assim são encaminhadas transformações estéticas na cidade, afetando os seus habitantes de modos distintos.

Gabriela Leal em seu livro “Cidade - Modos de ler, usar e se apropriar. A São Paulo do Graffiti”, cita que os sujeitos que pintam nas ruas “perfuram e modificam silenciosamente a dimensão cotidiana da vida urbana”, “em primeiro lugar, é preciso ‘deslocar o ponto de vista da cidade para os citadinos’; em segundo, ‘deslocar a própria problemática do objeto para o sujeito, da questão sobre o que é a cidade (...) para a pergunta sobre o que faz a cidade’” (Leal, 2023, p. 23).

Atuar na cidade é sempre uma surpresa. Pode ser algo simples, assim como também pode ser complexo, pois envolve uma série de questões acerca das nossas relações de pertencimento com os espaços que habitamos e optamos por realizar um determinado trabalho artístico. Entretanto, se faz necessário pintar nas ruas da cidade, pois se não fosse pelas manifestações artísticas realizadas nas ruas, a arte ficaria limitada às paredes de museus, galerias, instituições de ensino e a grupos particulares. E isso faria com que o acesso à arte se tornasse ainda mais difícil para as pessoas, em especial as menos favorecidas, considerando o funcionamento capitalista da nossa sociedade:

A gente precisa parar de pensar a arte como atividade privada e entender que ela, como atividade privada, é um momento da história do homem, esse momento difícil por que estamos passando, esse momento do fim, da decadência de uma civilização que não tem mais nenhum valor, não sabe mais onde se segurar. A arte privatizada é um aspecto desse momento da nossa civilização, mas ela é pública pela própria natureza. (HADDAD, 2015, p. 13).

Os locais abandonados, como casas, prédios e muros depredados, são de certo modo mais simples para a prática do graffiti pelo fato de não terem pessoas interessadas em utilizá-los. Sendo assim, situações de conflitos de interesse entre proprietário e artista geralmente não acontecem. Nas cidades que possuem pontes no corpo urbano, também esses são espaços receptivos para o graffiti, pois os seus pilares se tornam boas superfícies para fazer uns rolês, assim como os prédios abandonados, esses são locais para os quais as pessoas dão pouca importância.

Seja o lixo doméstico, sejam as ruínas da cidade, tudo é passível de ser transformado em suporte para as práticas do graffiti. Seja ressignificando os lugares, assim como os objetos, a poética dos/das grafiteiros/as provoca os olhares dos transeuntes, alimenta os imaginários e estimula reflexões.

A impermanência das obras gradativamente alimenta a pele da cidade com criatividade e cor. E esse palimpsesto mescla diferentes temporalidades como um testemunho sempre atualizado da imaginação poética acerca da conflituosa relação humana com o espaço urbano.



Referências:

BAUMAN, Zigmunt. Vidas Despedaçadas. São Paulo: Zahar, 2005.

LEAL, Gabriela; Cidade. Modos de ler, usar & se apropriar: A São Paulo do Graffiti. São Paulo: Editora Funilaria, 2023.

HADDAD, Amir. Arte urbana e a (re)construção do imaginário da cidade. Rio de Janeiro, Sesc Administração Regional no Rio de Janeiro, 2015.

SINIR, Sistema Nacional de Informações sobre Resíduos Sólidos. Resíduos Sólidos Urbanos. SINIR [online]. 2023. Disponível em: <https://sinir.gov.br/informacoes/tipos-de-residuos/residuos-solidos-urbanos/> Acesso em: 29/08/2023.





i Mestrando do PPGArtes, do Centro de Artes/UFPel. Graduado em Artes Visuais – Licenciatura, é pesquisador do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

emanuel.a.santos010@gmail.com

ii Doutora em Educação, com Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT), Mestre em Educação Ambiental, é professora associada da Universidade Federal de Pelotas, lotada no Centro de Artes, atuando no curso Artes Visuais – Licenciatura e no Programa de Pós-Graduação em Artes. Coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq).

http://www.photographein-pesquisa.com.br/

http://www.clamar-art.com

claummattos@gmail.com

iii É um estilo de graffiti caracterizado por desenhos e formatos executados rapidamente sobre paredes, vagões de trem, dentre outras superfícies.

iv Conjunto de grafiteiros que se reúnem para pintar.

Ilustrações: Silvana Santos