Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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11/12/2021 (Nº 73) A RELAÇÃO DE USUÁRIOS DO SERVIÇO DE SANEAMENTO BÁSICO COM RIOS URBANOS: O EQUÍVOCO NO COTIDIANO
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A RELAÇÃO DE USUÁRIOS DO SERVIÇO DE SANEAMENTO BÁSICO COM RIOS URBANOS: O EQUÍVOCO NO COTIDIANO



Beatriz de Deus Grotto1, Frederico Yuri Hanai2



1Curso de Gestão e Análise Ambiental, Universidade Federal de São Carlos. E-mail: be_grotto@hotmail.com

2Departamento de Ciências Ambientais, Universidade Federal de São Carlos. E-mail: fredyuri@ufscar.br



Mini resumo: Apesar de sua notável importância, muitas pessoas enxergam os córregos urbanos como algo incômodo e as relações com os rios estão cada vez mais distantes. É essencial que hajam ações comunicativas assertivas para promoção da sensibilização ambiental, despertando o olhar das pessoas ao ambiente à sua volta.



Resumo: Os córregos urbanos representam funções ecossistêmicas e socioambientais nas cidades, sendo muitas vezes o mesmo corpo hídrico que fornece água para abastecimento público e/ou que recebe os despejos dos esgotos tratados (ou não), provindos da população que ali vive. No entanto, apesar de sua notável importância, muitas pessoas ainda os enxergam como algo incômodo, ou que deveriam ser (mais) modificados, em outras palavras, mais antropizados de alguma forma. As relações das/os munícipes com os rios estão cada vez mais distantes, mais distorcidas do meio natural, passando estes a serem considerados até mesmo artificiais, construídos ao seu olhar, como o restante das ocupações urbanas. Neste sentido, é essencial que haja ações comunicativas que promovam a sensibilização nas pessoas, para despertar seu olhar ao ambiente à sua volta, o qual influencia sua saúde e qualidade de vida cotidianamente. Assim, este trabalho traz resultados de uma pesquisa qualitativa realizada em São Carlos, município do estado de São Paulo, em forma de entrevistas junto à moradoras/es e/ou comerciárias/os próximas/os dos 3 principais córregos da cidade: Gregório, Monjolinho e Tijuco Preto. Esta pesquisa aponta os principais equívocos identificados por meio de análise dos discursos do sujeito coletivo (DSC), construído a partir dos relatos obtidos. Os resultados principais evidenciam que as moradoras/es urbanas/os estão cada vez mais distantes dos corpos d’água, têm pouco ou nenhum conhecimento sobre os córregos (ou possuem com uma visão muitas vezes reduzida e utilitarista de sua função), há ausência de percepção dos problemas, alterações antrópicas e impactos que acometem os rios urbanos, destacando apenas falhas no sistema e na prestação dos serviços de saneamento básico. Tais constatações ressaltam a necessidade de ações de sensibilização e comunicação ambiental para que despertem a percepção ambiental nas pessoas, assim como para que reconheçam e valorizem a importância das suas relações com as águas e com os rios urbanos.

Palavras-chave: relações com a água; córregos urbanos; comunicação; sensibilização.



Abstract: Urban streams represent ecosystem and socioenvironmental functions in cities, often being the same water source that supplies water for public supply and / or that receives wastewater from sewage treatment plant, coming from the population that lives around there. However, despite their remarkable importance, many people still see them as something uncomfortable, that should not be there, or that they should be (more) modified, in other words, more anthropized in some way. The relationships of the citizens with the rivers are increasingly distant, more disconnected from the natural environment, and these become even artificial, by their sight, like the rest of urban occupations. In this way, it is essential that it might have communicative actions that promote awareness in people, to awaken their eyes to the environment around them, which influences in their health and quality of life on a daily basis. Thus, this work brings the results of a qualitative research carried out at city of São Carlos - SP, Brasil, in the form of interviews with residents and / or merchants that are close to the 3 main streams in the city: Gregório, Monjolinho and Tijuco Preto. This research will point out the main mistakes identified in the discourses of the collective subject (DCS, or DSC in portuguese), built from the reports obtained. The main results showed that urban residents and / or merchants are increasingly distant from water, have little or no knowledge of streams (or have an often reduced and utilitarian view of their functions), there is not perception of problems, human changes and impacts that affect urban rivers, highlighting only deficiencies in the system and in the provision of basic sanitation services. Such findings highlight the need for environmental education and communication actions to awaken people's environmental awareness, as well as to recognize and to enrich the importance of their relations with urban waters and rivers.

Keywords: relations with water; urban streams; communication; awareness.



Introdução

A água é o elemento-chave da existência da vida. Sua presença ou ausência cria culturas e hábitos, provém qualidade de vida no meio que a cerca, modifica paisagens e organismos, determina o futuro das gerações (BACCI; PATACA, 2008).

Ao longo de milhares de anos, a espécie humana cresceu e se desenvolveu, ocupou territórios e realizou construções no entorno de rios e córregos, tendo como base de seu desenvolvimento este bem tão valioso: a água. Porém, com o passar do tempo, a relação dos seres humanos com a natureza se modificou e a água foi perdendo o seu valor de bem natural insubstituível para um recurso hídrico em suposta abundância, uma matéria prima de produção. O seu uso indiscriminado está associado com a falta de percepção dos seres humanos em avaliar as consequências ambientais desta cultura, que promove o uso exacerbado dos recursos hídricos, ausente de técnicas compensatórias em larga escala, afetando a disponibilidade, quantidade e qualidade da água (BACCI; PATACA, 2008).

A extensa utilização da água para diversos usos pela sociedade acarretou em diversas relações humanas (modificadas) com este bem, tornando-se este valorável (monetizável) e de apropriação, perdendo-se o olhar de valorização natural e compreensão de fonte de qualquer forma de vida, ocasionando várias consequências sociais, culturais e ambientais.

Dictoro e Hanai (2020) apontam que o racional moderno (baseado na visão antropocêntrica) atua na dicotomia entre os seres humanos e a natureza, dividindo-se o que não deve ser dividido, resultando-se em um afastamento das pessoas com o meio ambiente à sua volta, e na apropriação da natureza. Deve-se, então, reestabelecer uma reconexão com a natureza, de maneira consciente e profunda. Neste sentido, a educação, comunicação e sensibilização ambientais são essenciais.

Atualmente, a água, embora seja o principal elemento natural, vem sofrendo degradação e invisibilidade pelas pessoas, em contextos diversos. O que se destaca é o seu uso para consumo e satisfação cotidiana ao atender-se as necessidades humanas. Entretanto, as relações humanas com a água não devem ser pensadas apenas para uso e consumo, mas também para aspectos simbólicos, religiosos e afetivos, e além disso, para aspectos inerentes à qualidade de vida na terra, seja esta humana ou não (DICTORO; HANAI, 2020).

A exemplo destas relações que perpassam o uso e o consumo, tem-se as comunidades ribeirinhas, como a de Cachoeira de Emas-SP, localizada às margens do Rio Mogi-Guaçu, a qual, conforme demonstra Dictoro e Hanai (2016), mantém relações simbólicas com a água, com respeito, admiração, sentimento, religiosidade, misticidade, de saúde, de sobrevivência, de conservação e de lazer, diferentemente dos moradores urbanos, que têm perdido ao longo do tempo esses tipos de relações com a água, valorizando, sobretudo a de sentido utilitarista. Os autores apontam que, em sua pesquisa, pôde-se verificar que alguns moradores locais de Cachoeira de Emas-SP “possuem uma percepção da água doce voltada como o componente mais importante dentro do ecossistema em que vivem” (p. 116).

Para Sauvé (2005, p. 318), as relações das pessoas com a água e os rios deve reconhecer que “o lugar em que se vive é o primeiro local do desenvolvimento de uma responsabilidade ambiental, onde aprende-se a tornar guardião, utilizador e construtor responsável” desse ambiente. Assim, todos aprendem e compartilham responsabilidades para se cuidar do recurso natural mais importante e valioso para os ecossistemas e vida humana: a água.

A racionalidade da humanidade moderna é baseada no sistema capitalista, resultando na construção de um mundo em que o ser humano se tornou o centro das atenções, ao qual tudo e todos deve servir, baseado em suas ações antrópicas de poder, gerando perdas de valores simbólicos e culturais e apropriação da natureza, intensificada pela extração e exploração exacerbada de seus recursos naturais.

No entanto, atualmente, apesar de ainda tímido, há um entendimento de que é preciso repensar e mudar as relações e atitudes com o meio ambiente, as questões ambientais vêm então ocupando espaços nas políticas de governos, nos diferentes meios de comunicação e também sendo discutidas pela sociedade (SILVA, 2014).

Assim, faz-se necessário entender a percepção e atuação das pessoas em relação ao ambiente à sua volta, para que se busque formas de intensificar estas relações de maneira positiva, impulsionando a compreensão do mundo como um sistema integrado, em que ações surtem efeitos, sejam estes imediatos ou a longo prazo, na sua rua, em seu bairro, em sua cidade ou mesmo em seu país.

Para tanto, este trabalho aponta a percepção da população urbana de São Carlos - SP residente e/ou comerciária próxima (até 100 metros de distância) dos 3 principais córregos urbanos da cidade (Gregório, Monjolinho e Tijuco Preto), de maneira a demonstrar os resultados obtidos, os quais evidenciam a apropriação humana perante a natureza, bem como a desconexão dos olhares e sentimentos em relação aos rios próximos de si. A pesquisa buscou identificar e refletir sobre as percepções dos residentes e/ou comerciários sobre os rios urbanos (conhecimento, funções, relações, impactos, situação ambiental), relacionando-as aos serviços de saneamento básico da cidade de São Carlos-SP, visando subsidiar futuros meios educacionais, comunicacionais e sensibilizatórios que sejam elaborados e conduzidos para despertar o olhar e valorizar as relações das pessoas com as águas e com os rios urbanos.



Metodologia

Nesta pesquisa, realizou-se entrevistas com moradoras/es e/ou comerciárias/os próximas/os aos 3 principais córregos urbanos da cidade de São Carlos-SP: Gregório, Monjolinho e Tijuco Preto. O desenho amostral está representado na Figura 1.

Figura 1 - Localização das seções de estudo: das áreas de referência amostral e dos pontos específicos para abordagem das entrevistas na cidade de São Carlos-SP.

Fonte: Elaboração própria (2019).



Para a determinação das regiões de aplicação das entrevistas à população usuária do sistema de saneamento básico de São Carlos - SP, foram realizadas análises geográficas-espaciais por meio do uso de SIG (Sistema de Informação Geográfica), com o auxílio do software ArcGIS® versão 10.4.1 (com BaseMap OpenStreet ativado) e do Google Maps (2017). Três regiões geográficas próximas a córregos urbanos, pertencentes à Sub-Bacia Hidrográfica Monjolinho (TREVISAN, 2015), foram identificadas e selecionadas para a execução da pesquisa: 1) Gregório (marginal Av. Comendador Alfredo Maffei); 2) Tijuco Preto (marginal Av. Trabalhador Sãocarlense); e 3) Monjolinho (marginal Av. Francisco Pereira Lopes). Estas regiões descritas estão localizadas e identificadas na Figura 1.

A partir desta delimitação, as regiões que apresentam adensamentos urbanos nas margens de cada córrego foram definidas como áreas de referência amostral (estes adensamentos foram verificados por meio da imagem de satélite disponibilizada pelo BasepMap Imagery, 2018, do software ArcGIS®), totalizando então três seções para estudo. A ferramenta “Buffer” foi utilizada para seleção de uma área considerando a distância de seus limites de até 100 metros em relação ao córrego. Estas seções definidas são as delimitações das áreas de referência amostral e estão ilustradas na Figura 1, a qual também destaca os respectivos pontos específicos de abordagem das entrevistas, distribuídas de forma aleatória entre as seções de estudo.

Vale destacar que os córregos urbanos utilizados para delineamento amostral nesta pesquisa, fazem parte da Bacia Hidrográfica Tietê-Jacaré (UGRHI 13 - Unidade de Gerenciamento de Recursos Hídricos), ilustrada na Figura 2, mais especificamente dentro da Sub-bacia Monjolinho, ilustrada na Figura 3.

Figura 2 - Mapa da UGRHI 13, com divisão por municípios.

Fonte: Relatório de Situação dos Recursos Hídricos Ano Base 2017 (2018).



Figura 3 - Mapa do espaço amostral com referência à UGRHI 13 e Sub-bacia Monjolinho.

Fonte: Elaboração própria com dados da ANA (2020).



Segundo Fontanella; Ricas e Turato (2008), a amostra não pode ser escolhida ao acaso, pois deve corresponder ao objeto de pesquisa e estar presente em todos os aspectos do estudo, devendo recair, portanto, no subgrupo que melhor atender a estes. A determinação da área de estudo, então, foi realizada com apoio às perguntas que se almeja responder com o presente trabalho, em relação à percepção da população urbana da cidade de São Carlos-SP a respeito do ambiente em que vive.

Sendo assim, o público alvo foi composto por residentes ou comerciárias/os próximas/os aos principais córregos urbanos. O propósito para esta seleção é de que estas pessoas estão, ao menos em teoria, mais expostas aos problemas que afetam o referido sistema, visto que os córregos são vítimas de descarte inadequado de resíduos sólidos e são o destino para as águas pluviais urbanas.

A aplicação das entrevistas seguiu rigorosamente o mapa proposto, ilustrado na Figura 1, afim de manter a qualidade e diversidade dos relatos obtidos, por meio do sorteio e aleatoriedade previstos. Portanto, a localização ilustrada representa a realidade amostral.

As entrevistas foram organizadas com perguntas fechadas e, principalmente, abertas, possibilitando liberdade nos diálogos e relatos das/os entrevistadas/os, sendo esta então uma pesquisa qualitativa exploratória (MINAYO, 2013) que utiliza trabalho de campo como como estudo de caso (CHIZZOTTI, 2009).

Segundo Minayo (2017), a saturação é um termo utilizado, nas pesquisas sociais, para se referir ao momento da pesquisa em que novas coletas de dados não agregarão novos esclarecimentos teóricos, ao menos não totalmente desconhecidos ao objeto estudado, ou seja, o aprofundamento teórico não será alcançado com o aumento da quantidade de entrevistas.

A quantidade de entrevistas, na presente pesquisa qualitativa, não se torna mais relevante que a quem as perguntas se destinam, a atenção se deve à riqueza de informações obtidas em campo (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Portanto, esta utilizou a amostragem por saturação, a qual foi constatada ao alcance de 15 entrevistas para cada seção de estudo (distribuídas aleatoriamente ao longo destas), totalizando, então, 45 entrevistas classificadas e tabuladas continuamente, conforme metodologia descrita a seguir. A saturação teórica foi verificada por meio da técnica descrita por Fontanella et al. (2011), constituída por oito passos, continuamente seguidos durante a aplicação e análise das entrevistas (FONTANELLA et al., 2011).

Os dados obtidos por meio do estudo de caso foram organizados e padronizados, posteriormente codificados e tabulados, para melhor representação e análise. Desta forma, proporcionando facilidade para interpretações e comparações, podendo ser sintetizados e representados graficamente (LAKATOS; MARKONI, 2010).

Para simplificação das análises e comparação dos dados, os resultados foram primeiramente categorizados seguindo a análise de conteúdo de Oliveira (2008), a qual possibilitou a síntese e representação numérica das categorias apresentadas.

Posteriormente, os relatos foram analisados e agrupados por semelhança, para construção do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), descrito por Lefevre e Lefevre (2006) e Gondim e Fischer (2009). Esta análise complementar permite o aprofundamento dos relatos obtidos na pesquisa, os quais representam as relações humanas (nas perspectivas das/os entrevistadas/os) com a água e o ambiente a sua volta.



Resultados e Discussões

Quarenta e cinco relatos foram obtidos com a aplicação das entrevistas a moradoras/es e comerciárias/os próximas/os aos córregos Gregório, Monjolinho e Tijuco Preto, sendo 15 para cada córrego urbano, ou área de estudo. O trabalho de campo foi composto por resultados com uma grande diversidade e complexidade de informações obtidas. Sendo assim, a princípio adotou-se a categorização dos relatos por meio da análise de conteúdo (OLIVEIRA, 2008) e, posteriormente, aprofundou-se nos diálogos para representação dos saberes e reflexões por meio do DSC (GONDIM; FISCHER, 2009; LEFEVRE; LEFEVRE, 2006). Ambos resultados são apresentados e discutidos neste artigo, de forma a complementarem-se.

Para melhor discussão, os códigos assumidos para citação dos relatos das/os entrevistadas/os são: ExCy. Em que: E = Entrevistada/o; x = sequência de entrevista; C = Córrego urbano mais próximo; e y = ponto de amostragem no córrego. Assim, para os relatos a serem discutidos nesta análise, tem-se: G correspondente a Córrego Gregório; T correspondente a Córrego Tijuco Preto e M correspondente a Córrego Monjolinho.



3.1 Relações com a água

Para se identificar qual o primeiro pensamento que emerge ao se ouvir sobre a água, perguntou-se às/aos participantes qual a palavra ou reflexão imediata que lhes convém com a palavra água. A Figura 4 apresenta que há um reconhecimento da água como elemento essencial para a vida, com 62% das afirmações, porém mais pessoas remeteram o conceito aos sentidos utilitaristas (22%) (como abastecimento doméstico, comercial, industrial, usos consuntivos e não consuntivos, dentre outros), do que à natureza (16%).

Figura 4 - Sentidos que a palavra água remete às/aos entrevistadas/os.

Fonte: Elaboração própria (2020).



Por meio da análise DSC, obteve-se o seguinte principal discurso:

A água é essencial, essência de vida, sem água ninguém vive, ela é pura, pureza, é límpida, tudo pra gente, muita coisa, um bem precioso. A gente precisa economizar, não pode faltar (o mais importante), a água é necessária, é vida, é fonte. Muito importante, não conseguimos viver sem. (Ideia de vida e utilitarismo, 34 relatos: E2G3; E3G2; E5G6; E6G5; E7G7; E8G8; E9G9; E10G10; E11G12; E12G11; E13G13; E14G14; E15G15; E1M5; E2M3; E3M2; E5M4; E6M6; E7M7; E9M11; E11M8; E12M12; E15M15; E1T1; E2T2; E3T3; E4T4; E6T7; E5T5; E8T11; E9T12; E12T10; E13T13; E14T14).

Ainda, algumas pessoas trouxeram palavras como: Beber (E13M13, E7T8), Sede (E4M1, E10T6, E15T15) e Chuveiro (E8M9). A água também foi apontada no sentido contrário, como algo poluído: Às vezes é poluição, é esgoto (E4G1; E10M10).

Nota-se que há repetição da ideia de dependência da água para a vida, mas esta é pensada somente no aspecto humano, por isso a categoria “utilitarista”, uma vez que os pensamentos apontados não citam outras formas de vida que são igualmente dependentes deste recurso inestimável.

Apenas uma pessoa trouxe uma afirmação que se pode remeter ao pensamento ecossistêmico da íntima relação humana com a água, por meio da natureza: “Coisa que a gente não vive sem ela, falta água, falta tudo, a gente não tem nada, tudo depende de chuva” (E5M4). A palavra natureza foi citada por apenas duas pessoas (E1G4; E14M14).

Conforme apontado, são poucas as pessoas que pensaram na água no sentido mais amplo, incluindo-se a natureza e a chuva, remetendo-se a pensamentos de relação ecossistêmica, dando um sentido de causa e efeito, entre os seres vivos e a água.

3.2 Relações com os rios urbanos

Ao se perguntar às pessoas qual o nome do rio/córrego urbano mais próximo, apenas 14 delas, ou seja, 31% (em relação a 45) responderam corretamente, sendo que outras 31, ou 69%, não o conhecem pelo seu nome. Dos 3 córregos, o Tijuco Preto é o menos conhecido, seguido do Monjolinho, conforme apresentado na Tabela 1:



Tabela 1 - Proporção de pessoas que sabem e não sabem os nomes dos córregos.

Córrego Urbano

Sabem

Não sabem

Gregório

9 (60%)

6 (40%)

Monjolinho

4 (26,67%)

11 (73,33%)

Tijuco Preto

1 (6,67%)

14 (93,33%)

Fonte: Elaboração própria (2020).



O córrego mais conhecido por seu nome é o Gregório, e isso pode ser remetido ao fato de que este é o córrego que passa no centro da cidade, intensamente retificado e impermeabilizado, o que ocasiona em severas enchentes e até mesmo inundações em épocas de chuvas, conforme frequentemente noticiados pelos vários meios de comunicação locais no ano de 2020 (G1, 2020; A CIDADE ON, 2020; SÃO CARLOS AGORA, 2020). Todos os anos a Prefeitura Municipal de São Carlos-SP precisa investir na reforma e reconstrução de vias nesta região e, ainda, as lojas ali instaladas têm sofrido inúmeros prejuízos.

A/o participante E1G4 destaca em uma de suas falas que o córrego Gregório tem função histórica, sendo um marco da cidade. De fato, as construções mais antigas da cidade estão no entorno dele, sendo esta a região do centro da cidade, que resiste às forças da natureza até hoje, insistindo com a forte urbanização ali presente.

De maneira a instigar as/os participantes da pesquisa sobre a função do córrego mais próximo, fez-se a seguinte pergunta: “Qual a função deste córrego?”. Obteve-se as categorias apresentadas na Figura 5.



Figura 5 - Representação das respostas sobre a função dos córregos mais próximos.

Fonte: Elaboração própria (2020).



Observa-se que 20 pessoas, ou seja, 44,44% afirmam que não sabem a função do córrego, 31,11% (14) assimilam as funções para modos utilitaristas e apenas 24,44% das pessoas pensam em funções ecossistêmicas ao refletir “para quê o rio serve”. Estes dados apontam para o distanciamento cotidiano em que as pessoas, mesmo que residentes e/ou comerciárias/os muito próximas/os dos córregos se adentram.

Os DSCs abaixo resumem as relações de utilitarismo e negativismo identificadas:

Limpar. Levar a água que vem da chuva para a estação de tratamento SAAE (perto da Santa Casa), desvio para passar por processo de tratamento para abastecimento público. Pra não acumular tanta água da chuva. Sei que tem tempo que a água dele tá limpa, que tem gente que pesca nele. Ele tem a função do esgoto, transportar o esgoto. Levar o esgoto para os mares. Levar o esgoto/lixo embora e juntar com os outros. Pra cidade eu vou falar que é contribuir com a captação de água na nascente (acho que é perto da UFSCar) e ponto de despejo de esgoto na saída. No meio termo, o que acontece no meio do rio, eu não vou saber. (Ideia de utilitarismo e serventia para a cidade, 9 relatos: E3G2; E3M2; E5M4; E8M9; E10M10; E13M13; E11G12; E14G14; E9T12).

A partir do DSC apresentado acima, verifica-se que as pessoas entrevistadas pensam no rio como algo que deve servir às necessidades humanas, para limpar a cidade, levar a água para a estação de tratamento, ou mesmo não acumular água da chuva nas ruas. Ainda, há pessoas que o remetem à função “do esgoto”, citando que o que rio faz é levar o lixo/esgoto para longe, às vezes até mesmo para o mar. Nota-se que não há palavras como “natureza” ou “ecossistema” nestas falas.

Para complementar o pensamento negativista, algumas pessoas reclamam da presença do rio tão próximo, citando insetos e sensações incômodas:

Ele faz é trazer mosquito para casa, gela minha casa e enche de pernilongo. (Ideia de aspectos negativos relacionados ao bem-estar, 2 relatos: E2M3; E15M15).

Algumas pessoas, no entanto, reforçam que o rio, depois de tanto sofrer alterações, perdeu sua função:

Não tem função nenhuma, coitadinho do rio (não tem peixe, nem nada). Não tem mais função, acabaram com a função dele (virou o centro da cidade né). A função dele agora é levar essa água embora, pra não inundar tudo (até o centro de tratamento). (Ideia de que o rio perdeu sua função, 3 relatos: E10T6; E5T5; E6T7).

Estas afirmações são interessantes pois demonstram o entendimento de funções ecossistêmicas que o rio deveria estar exercendo, mas que não consegue identifica-las devido às tantas alterações em seu leito, formas e fluxo, as quais, inclusive, podem motivar o pensamento utilitarista apontado no DSC anterior, uma vez que pode-se chegar ao seguinte pensamento: se o rio não está exercendo sua função natural, então ele está servindo à população, à cidade.

Finalmente, algumas pessoas associam funções ecossistêmicas ao rio:

O rio serve para “hidratamento”, receber água de chuva, levar água pra nascente, cruzar com outros rios, escorrer em outros rios, captar água da chuva e desembocar no Jacaré. Sem ele, muitos “lugar ia encher, dar inundação”, a chuva cai nele e vai embora. Ele tem a função de captar águas das chuvas, para ajudar a vegetação, os animais, fauna e flora. Na minha opinião isso aqui é uma nascente, deveria preservar. Ele tem a função de gerar vida, promover o ciclo da água. (Ideia de funções ecossistêmicas para o rio, 11 relatos: E1G4; E3G2; E4G1; E7G7; E10G10; E15G15; E4T4; E12T10; E13T13; E14T14; E15T15).

Estas falas, embora ainda com um certo caráter utilitarista presente nos sentidos de “levar água pra nascente” e “sem ele, muitos lugar ia encher”, remetendo-se ao pensamento de água para captação e serventia para levar a água embora, se destacam por apontar a relação entre as conexões dos rios e córregos urbanos, e citar a vegetação, animais, fauna e flora. No entanto, apesar de se entender o que se quis dizer na primeira afirmação, ressalta-se que as águas não são levadas para as nascentes, e sim nascem destas.

Assim, embora muitas pessoas não saibam a função do rio ou só a remetam a algo utilitarista, ainda há quem remeta o pensamento às funções mais próximas do natural, mesmo que sejam 24,44% das pessoas, há perspectivas positivas.

3.3 Percepções sobre os rios urbanos

Em seguida, perguntou-se às/aos participantes da pesquisa como estas/es percebem o córrego mais próximo, o que se acha dele. A Figura 6 ilustra as categorias identificadas:



Figura 6 - Representação das respostas sobre a percepção do córrego mais próximo.

Fonte: Elaboração própria (2020).



O sentimento de abandono foi o mais frequente, observado por 26 participantes, ou seja, 57,78% das/os entrevistadas/os.

O seguinte DSC resume e ilustra estas percepções:

Ele já foi bom, quando chove muito tem enchente, fico triste de ver jogarem muito lixo nele, é a nossa fonte. Antigamente devia ser lindo, agora o esgoto cai nele, infelizmente está poluído, horrível, fedido, o pior é quando está calor. Deveria ser mais tratado (jeito da água entrar mais rápido, porque ele enche e transborda tudo). Acho que precisava ser feito algum trabalho pra melhorar, porque às vezes dá enchente e acaba inundando. Em captação de tratamento eu creio que não deve ter, porque ele é mal projetado, porque em chuva forte ele alaga. Deveria ser tratado, ser cuidado mais, essas coisas, você vê o descaso da prefeitura, oh, mato... E a gente passando por uma epidemia de dengue que tá chegando na região, isso é um perigo. Acho que tem bueiro, os lixos vão ficando. Deveria ser melhor cuidado. Deveria ser mais bem tratado, está muito poluído, fede. A nascente é muito bonita, muito clara em questão de água (já fui lá, no colegial fizemos uma visita). Aqui no meio, principalmente mais pro final, você começa a ver bastante esgoto. Tem muito impacto. Acho que a água dele é bem suja. Bem largado, como a cidade inteira, bem sujo. Ele tem um pedaço que ficou parado no tempo. É um coitado, muito mal cuidado. Está muito assoreado, infelizmente as pessoas jogam objetos dentro dele. Deveria ser muito bem tratado, poderia ser um recurso infinito para turismo e lazeres para o pessoal da cidade, muito importante. Não é um córrego bem tratado, não é estruturado, com a chuva sobe cheiro de esgoto, partes dele vive alagando. (Ideia de abandono, 27 relatos: E3G2; E5G6; E7G7; E8G8; E9G9; E10G10; E12G11; E13G13; E14G14; E15G15; E3T3; E4T4; E5T5; E6T7; E9T12; E10T6; E14T14; E15T15; E1M5; E3M2; E4M1; E6M6; E7M7; E9M11; E10M10; E11M8; E15M15).

Este discurso aponta para diversas falhas identificadas pelas/os usuárias/os do sistema de saneamento básico, há denúncias apontando que os rios/córregos não são bem tratados e que poderiam ser mais bem cuidados, ainda, há afirmações sobre lançamentos ilegais de esgoto direto nos rios, causando mau cheiro e degradação ao corpo hídrico.

Destaca-se a fala da/o participante E9T12 que enxerga possibilidades turísticas nos rios e córregos, as quais poderiam dar mais visibilidade e, de certa forma, proteção ao ambiente, uma vez que, para se atrair visitações e atrações locais, é necessário que este esteja limpo e adequado, o que, na visão desta pessoa, seria melhor que a atuação situação, de descaso e abandono, como apontado.

Por outro lado, algumas pessoas reconhecem a importância do rio, e conseguem até mesmo dar destaque às árvores (raras) em seu entorno:

Ele é bom, importante para a cidade. Importante, gosto das árvores que tem em volta dele. Acho que ele é limpo. (Ideia de importância para o local, 4 relatos: E7T8; E8T11; E2M3; E14M14).

É interessante observar que este discurso acima traz a afirmação “acho que ele é limpo”, trazendo a ideia contrária ao discurso anterior.

Ainda, a/o participante E12T10 complementa: “Traz bastante pernilongo por estar perto, mas não é que ele é ruim, a gente transforma ele numa coisa ruim”. Esta afirmação deixa claro que o rio está impactado, e por isso causa incômodos às pessoas, pois estas o transformam em algo ruim.

A/o participante E5M4 afirma: “Ele nunca jogou água pra fora, assim pra dar enchente. Teve uma vez que estava chovendo, as pessoas foram ver, ele estava paralelo mas não chegou a jogar água no asfalto”. Esta afirmação foi passada em um tom positivo, como se o rio fosse de fato bom para quem está ao seu entorno porque ele não joga água fora, este pensamento pode ser remetido tanto à visão utilitarista do rio, que se torna bom por não incomodar e/ou trazer prejuízos, quanto à visão funcional, no sentido de que talvez este rio não jogue água para fora por não sofrer sobrecarga das águas pluviais, ou por ter sofrido alterações em sua forma e fluxo que não foram tão bruscas.

Contudo, surpreendentemente, há pessoas que afirmaram não conhecer o rio mais próximo (lembrando que este se encontra há no máximo 100 metros de distância do ponto de entrevista). Ainda assim, são despercebidos, invisíveis.

Não conheço. Nunca vi. Quase não conheço. Não vejo ele. Só sei que tem, mas nunca vi. Não sei onde fica esse córrego. Nunca nem consegui ver ele, tem muita mata em volta. (Ideia de invisibilidade, 7 relatos: E2M3; E6M6; E7M7; E12M12; E13M13; E4T4; E13T13).

Uma pessoa afirmou sua percepção com indiferença, pois só “passo e vejo ele” (E4G1), uma pessoa assumiu não remeter pensamentos ao rio “Não sei o que ele faz, nem pra onde ele vai ou o que cai nele” (E9G9) e uma pessoa relatou que o córrego não é bem feito: “Tem uns que não são bem feitos, a água transborda, mas tem alguns que até aguentam”, para afirmar o pensamento, perguntou-se: “Você acha que alguém fez esse córrego?”. A resposta foi: “Acho que sim” (E8M9).

Estes resultados reforçam que a população entrevistada não tem conhecimentos sobre o Córrego mais próximo, com uma visão muitas vezes reduzida e utilitarista de sua função, passando-o assim por despercebido.

O relato da/o participante E8M9 espanta ao afirmar que o córrego foi feito, colocado ali aonde está, demonstrando-se total desconexão deste com a natureza, tornando o córrego algo puramente antropizado e modificado, planejado e “instalado” naquele local, sendo a denúncia desta pessoa acerca de que “uns não são bem feitos”, colocando-se a culpa, de algum modo, a quem projetou este córrego, assim como projetou as demais ocupações da cidade, por exemplo.

Estes resultados demonstram o quanto a população entrevistada não visualiza o córrego como algo bom e natural, em sua maioria as pessoas o rejeitam e/ou tem sentimento negativo sobre ele. A importância para o local é reconhecida por 10 participantes, mas de uma maneira que ainda pode ser mais profundamente sensibilizada, pois observa-se que as respostas foram curtas e superficiais. Há muito trabalho a ser feito neste sentido, de mostrar-se de fato como o córrego surge, e como ele foi formado/alterado para atendimento às necessidades urbanas da época, bem como torna-se muito importante discutir o porquê é importante que ele continue ali e seja conservado, ou mesmo renaturalizado, por exemplo.

3.4 Impactos sobre os rios urbanos

Com o intuito de verificar a percepção da população entrevistada a respeito da situação dos córregos urbanos e do ambiente à sua volta, perguntou-se: “Você percebe impactos no ambiente em que vive e/ou no córrego mais próximo?”. Em caso positivo, solicitando-se exemplos, perguntou-se: “Quais?”. As respostas obtidas estão ilustradas nas Figuras 7 e 8.



Figuras 7 e 8 – Representação das respostas sobre os impactos no entorno dos córregos.

Fonte: Elaboração da autora (2020).



Oito participantes associaram duas categorias em suas respostas sobre quais impactos são observados. A maioria das/os participantes (64%) percebe impactos relacionados à sujeira, resíduos jogados de forma inadequada, móveis abandonados, despejos de indústrias, dentre outros, conforme apontado neste DSC:

Tem muito mato mal cuidado, atrai muito inseto, tem móveis jogados, não tem fiscalização. Cheiro horrível, sujeira, esgoto, estava tendo até mais bichos. Talvez a indústria próxima jogue efluente. Tem muito lixo jogado nele, as pessoas não pensam no Meio Ambiente, quando chove ele alaga tudo, entope. As firmas jogam poluição no rio, os peixes morreram e a água é muito suja, o cheiro forte (para na época de férias) é das indústrias soltando rejeitos no rio. Ele é muito fedido, a gente não aguenta/suporta, quando chove ele sobe e acaba te trazendo doenças. Chove muito, transborda, não está bem cuidado, o mato está alto, atrai bichos, pessoas jogam lixo, pode atrair doenças, ser perigoso para quem mora perto. Poluição da água, sujeira. Muito lixo jogado, povo para o carro para jogar sacos dentro do rio, depois entope os bueiros e não sabe porquê, não tem necessidade de fazer isso. Sempre vai deteriorando, tem que ter um cuidado maior. Além da claridade da água (ausente), tem problemas de odor (muito forte a partir do kartódromo), na nascente você vê peixes, já aqui não tem. Por conta do rio aqui em baixo tem bastante coisa, sujeira. Muito cheio de lixo. Você vê só lixo aqui. Muita sujeira cai da rua nele. Tem muito cheiro ruim. Muita sujeira, muito mosquito, descaso. Muito lixo e muito assoreado. (Ideia de impactos relacionados a sujeira e enchentes, 23 relatos: E2G3; E3G2; E4G1; E7G7; E8G8; E9G9; E10G10; E11G12; E12G11; E13G13; E15G15; E1M5; E4M1; E8M9; E10M10; E11M8; E13M13; E3T3; E6T7; E10T6; E13T13; E14T14; E15T15).

Destaca-se a afirmação “por conta do rio” relacionada à sujeira do ambiente, como se o rio fosse algo que naturalmente já atraísse as sujeiras e despejos inadequados.

Algumas/ns (5%) das/os participantes comentam que “certamente” há despejos indevidos das indústrias no rio, uma vez que o cheiro é muito forte e este diminui em “épocas de fim de ano (férias)”. Esta denúncia deve ser investigada a fundo, uma vez que a fiscalização ambiental deve multar indústrias que estejam fazendo descarte inadequado nos rios.

O segundo maior impacto apontado são problemas relacionados à segurança (17%), como situações em que animais (cachorros, por exemplo) caem no córrego e é preciso fazer resgate, além de já ter acontecido acidentes graves com pessoas, como apontado neste DSC:

Tem muito cheiro ruim, alaga quando chove e não tem segurança nenhuma, vive caindo cachorro aqui na frente. Bastante lixo, até aluno já morreu aqui dentro desse rio (por incrível que pareça). (Ideia de falta de segurança, 2 relatos: E6T7; E10T6)

Esperava-se, com esta pergunta, obter-se respostas como as que foram ditas por apenas 14% das pessoas, relacionando-se os impactos às alterações no rio, provindas da urbanização, como canalização e impermeabilização. Conforme aponta este DSC:

Muita sujeira cai da rua nele, muita pedra. Canalizou, acabou com a função do rio, a água é suja, virou esgoto. Total. Ele é “acimentado”, não tem arborização para preservação a desbarrancamento, nascente do rio é entupida. Não tem nada dentro da coisa natural. (Ideia de alteração antrópica, 2 relatos: E5T5; E9T12).

Também são citadas as questões do deslizamento das margens do rio, causado por erosão, como observado neste DSC:

Bastante, a cidade cresceu, tem muita enchente, precisa ampliar. Com a chuva, a erosão que tá fazendo, daqui uns anos vai levar a rua embora. A beira do rio já caiu tudo ali, já tá chegando na propriedade do vizinho, acho que são efeitos de muita água, era pra passar bem menos água. As casas jogam água nele e quando chove não dá conta, a água na lateral vai levando, leva ponte e leva tudo. (Ideia de erosão e deslizamento, 3 relatos: E1G4; E5G6; E15M15).

As afirmações dos dois discursos colocados acima demonstram a percepção dos impactos nos rios urbanos, que causam a modificação de sua função e impactam o ecossistema ao seu redor, porém, são poucas as pessoas que remeteram seu pensamento desta forma, o que pode ser trabalhado com comunicações adequadas para se mostrar os impactos da urbanização nos rios, e motivar o controle e fiscalização popular no entorno, para que haja denúncias a descartes e despejos inadequados.

O destaque para a fala “são efeitos de muita água” é dado pois este argumento remete ao pensamento das águas pluviais que descem com velocidade e intensidade muito maior que a natural, causando ainda mais impactos nos córregos que as “recebem”.

Detalhando-se os resultados por córrego, tem-se as proporções demonstradas na Tabela 2, em que é possível observar que o córrego mais percebido em relação aos seus impactos é o Gregório.

Tabela 2 - Proporção de pessoas que percebem e não percebem impactos nos córregos.

Córrego Urbano

Percebem

Não percebem

Gregório

13 (86,67%)

2 (13,33%)

Monjolinho

7 (46,67%)

8 (53,33%)

Tijuco Preto

8 (53,33%)

7 (46,67%)

Fonte: Elaboração própria (2020).

Novamente, este destaque pode ser associado ao fato de que o córrego do Gregório é o que passa no centro da cidade, sendo este local de forte várzea, o qual sofre enchentes e inundações, que causam impactos socioambientais severos recorrentes em todos os anos.

Os resultados apontados neste tópico esclarecem os motivos pelos quais a população entrevistada, em sua maioria (57,78%), percebe o córrego abandonado. Além de reforçar a comunicação com estas pessoas sobre a importância da natureza (ou ao menos os resquícios dessa) à sua volta, e demonstrar formas de realizar atitudes diferentes e benéficas a todas/os, fica evidente que são necessárias ações para limpeza dos rios, cuidados e conservação da área, para que impulsione o sentimento de pertencimento nas pessoas, de forma a despertar o interesse e satisfação em conviver nestes ambientes.

Dezessete participantes, ou seja, 38% das/os entrevistadas/os afirmaram que não percebem impactos no córrego mais próximo, e nestes pontos de entrevista, muitas vezes, o córrego estava com resíduos sólidos domésticos e/ou de construção civil, até mesmo com alterações em suas margens, como erosões e deslizamentos, conforme ilustram as Figuras 9 e 10.

Figura 9 - Margem do córrego Monjolinho próxima ao ponto 15 de entrevista.

Figura 10 - Margem do córrego Tijuco Preto próxima aos pontos 1, 2 e 3 de entrevista.

Fonte: Elaboração própria (2019).



Esta ausência de percepção dos problemas que acometem os córregos pode advir do contato distante com o ambiente em que se vive, ou mesmo da falta de conhecimento dos impactos causados neste, o que pode dificultar a identificação dos possíveis problemas, mesmo que perto de sua residência e/ou comércio.

Apesar disso, algumas/ns moradoras/es do entorno dos córregos visitados cuidam do ambiente e constroem estruturas simples de convívio em alguns pontos, como bancos e mesas de tijolos, além de pequenas plantações de espécies vegetais ornamentais e mesmo comestíveis (como temperos), como apresentado nas Figuras 11 a 13.

Figuras 11 a 13 – Margem do córrego Monjolinho próxima ao ponto 2 de entrevista.

Fonte: Elaboração própria (2019).



Nota-se que estes ambientes são limpos e conservados por pessoas que optaram por cuidar daquele espaço, porém são poucas as pessoas realmente envolvidas desta maneira, uma vez que este espaço cultivado é pequeno.



Considerações Finais

Tendo em vista os resultados apresentados e explanados, fica evidente que as/os moradoras/es urbanas/os estão cada vez mais distantes dos ambientes naturais que estão à sua volta, principalmente com os corpos d'água. Percebe-se que o olhar das pessoas está “anestesiado” com as alterações e impactos causados nos córregos, pois, mesmo quem reside e/ou trabalha há menos de 100 metros de distância destes, não remete suas afirmações no sentido de identificar e perceber as alterações antrópicas que ocasionam severas consequências no meio natural. Os discursos são colocados muito mais nos sentidos de incômodo a resíduos depositados de maneira inadequada e irregular. Ainda, há muitas pessoas que não percebem impactos, ou mesmo não enxergam os rios e córregos no cotidiano de sua vida, literalmente afirmando que não os conhecem.

Contudo, as denúncias em torno do resíduo sólido e/ou esgoto despejado incorretamente nos rios e córregos são importantes e apontam para falhas no sistema de saneamento básico, no sentido de manter o ambiente urbano limpo, para se prevenir doenças, assim como para a necessidade do manejo de águas pluviais, que são apontadas, mesmo que indiretamente, como causas de se carrear resíduos de superfície dos pavimentos urbanos (first flush de águas pluviais) para o corpo hídrico. Devem ser feitas melhorias nestes sentidos, para que haja promoção da qualidade de vida às/aos usuárias/os do sistema, e estas/es poderem almejar melhores condições de vida e ambientais.

É fundamental, então, identificar os aspectos que desvirtuam a percepção das pessoas em relação aos rios, para que sejam pensados e planejados materiais comunicativos cada vez mais assertivos, que demonstrem os equívocos cotidianos recorrentes sobre os rios urbanos e sobre o saneamento básico, mal compreendidos pela maioria das pessoas. É preciso sensibilizar as pessoas sobre as alterações ecossistêmicas que se tornam mais profundas a cada dia, principalmente sobre os córregos urbanos, que devem ser recuperados o tanto quanto possível para próximo do natural, sob o raciocínio de causas e efeitos nas relações de seus sistemas ambientais.

Também é relevante a consideração das diversas formas de atuação e de motivação para as soluções dos problemas ambientais, as quais devem ser empenhadas individualmente e de forma coletiva no sentido de exigir melhores condições dos rios urbanos, assim com na prestação adequada dos serviços de saneamento básico, colaborando com a implementação e o aprimoramento constante de melhorias ambientais e de qualidade de vida.

É possível (re)ascender o espírito de reconhecimento e respeito pelos rios urbanos, de maneira a se praticar relações simbólicas e íntimas com os rios, estendendo-se os profundos sentimentos com respeito, admiração, religiosidade, misticidade, de saúde, de sobrevivência, de conservação e de lazer também às/aos cidadãs/os urbanas/os, para que estas/es se conectem com o ambiente à sua volta, e se vejam como parte influente e intrínseca deste ecossistema tão interligado, influente e importante para vida urbana.



Agradecimentos

À FAPESP pelo substancial apoio à pesquisa de iniciação científica que me proporciona frutos de aprendizados constantes. À UFSCar e ao DCAm pela formação que me encanta e me motiva e ao Prof. Dr. Frederico, por todos os ensinamentos prestados.

Processo nº 2018/07585-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.



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Ilustrações: Silvana Santos