Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Práticas de Educação Ambiental
10/09/2018 (Nº 53) TECNOLOGIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO AMBIENTAL: ANALISANDO SOLUÇÕES PARA A CRISE HÍDRICA EM SÃO PAULO
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TECNOLOGIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

ANALISANDO SOLUÇÕES PARA A CRISE HÍDRICA EM SÃO PAULO

 

Valdir Lamim-Guedes

Biólogo e Mestre em Ecologia pela Universidade Federal de Ouro Preto

Doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo

Professor no Centro Universitário Senac – Santo Amaro (São Paulo – SP)

E-mail: dirguedes@yahooo.com.br

 

Resumo: As tecnologias sociais (TSs) são produtos, técnicas ou metodologias de baixo custo de implementação e com alto potencial de transformar as realidades locais, sendo soluções simples e reaplicáveis com possibilidade de minimizar problemas socioambientais. Este texto traz o relato de uma atividade desenvolvida com jovens e adultos atendidos por uma ONG da cidade de São Paulo. A prática consistiu na análise de TSs e a preparação de slides para socialização. O foco foram TSs que envolvem recursos hídricos e podem ser aplicadas na cidade de São Paulo para minimizar a crise de abastecimento de água.

 

Palavras-chave: desenvolvimento sustentável; iniciativas populares; inovação social; água.

 

Introdução

O que são Tecnologias sociais?

Tecnologias sociais (TSs) são “produtos, técnicas ou metodologias aplicadas em comunidades que resultam em transformação social. A concepção valoriza a comunidade organizada para tornar-se agente de soluções, com matizes locais, permitindo a autogestão e o trabalho” (SILVA et al. 2012, p. 17). A figura abaixo retrata vários aspectos em que as TSs convergem, tendo como uma possível consequência o desenvolvimento sustentável comunitário.

Figura 1: diferentes setores das comunidades relacionados às TSs: social, ambiental, cultural, econômico, educação e geração de renda. Fonte: SILVA et al., (2012, p. 17).

Muitas vezes as TSs são chamadas também de Inovação social (BARRETTO e PIAZZALUNGA, 2012, p. 4). Nessa perspectiva, as TSs podem ser “avaliadas e valorizadas tanto pela sua dimensão de processos de construção de novos paradigmas e novos atores sociais, de fortalecimento da democracia e da cidadania, quanto pelos resultados que proporcionam em termos de melhoria da qualidade de vida” (BAVA, 2004, p. 105).

Uma das principais diferenças entre as tecnologias sociais em relação às inovações convencionais é que as primeiras exigem a participação popular. De baixo custo de implementação e com alto potencial de transformar as realidades locais, as tecnologias sociais são soluções simples e reaplicáveis, que permitem minimizar problemas socioambientais.

Um exemplo bem conhecido de TS é o soro caseiro. O copo de água com uma pitada de sal e duas colherinhas de açúcar já salvou milhares de crianças da desidratação. Fácil de ser aplicado em qualquer localidade, seu sucesso tem uma explicação científica: o sal e o açúcar possuem elementos que fixam a água no organismo, evitando que a pessoa se desidrate. O soro caseiro é o que chamamos de tecnologia social (MINAS FAZ CIÊNCIA, 2007). Outro exemplo de TS são as cisternas de placas, reservatórios cilíndricos que captam a água da chuva no telhado das casas para armazenamento, com resultados muito importantes para minimizar as consequências da seca na região semiárida do nordeste e norte de Minas Gerais. Internacionalmente, uma TS de grande destaque é o microcrédito usado em Bangladesh.

A “TS nasceu e é principalmente utilizada nas necessidades tecnológicas dos empreendimentos solidários que não têm acesso a tecnologias convencionais” (GASPAR, 2009, p. 6). Desta forma, temos uma aproximação entre as TSs e a Educação Ambiental (EA) como apresentado a seguir.

 

Tecnologias Sociais e Educação Ambiental

Gaspar (2009, p. 5) reconhece os coletivos educadores como TS, cuja base do raciocínio está na relação entre as TSs e EA:

 

Com objetivos próximos aos da TS, a Educação Ambiental (EA), alinhada ao conceito de sociedades sustentáveis, procura promover a transformação da sociedade tornando-a mais justa, democrática e sustentável a partir de ações locais, voltadas para o empoderamento e tendo com princípio o reconhecimento e estimulo da potência de ação de cada ator social nas comunidades em que atua.

 

Marques et al. (2012) destacam que a EA é essencial para a efetividade de uma TS socioambiental, no caso, da implantação de um reator anaeróbio com recheio de bambu, para o tratamento de esgoto em comunidades do oeste catarinense. Segundo os autores,

 

para minimizar os agravantes causados pela falta de saneamento básico, a aplicabilidade de uma tecnologia social somente tem resultados positivos se estiver aliada a um processo educativo. Por isso que ações em Educação Ambiental auxiliam na disseminação de tecnologias sociais e na efetivação de desenvolvimento sustentável, trazendo melhor qualidade de vida às famílias rurais, as quais se encontram desprovidas de políticas públicas voltadas para o saneamento. Essas ações devem ser contínuas e permanentes, por isso várias estratégias de mobilização, sensibilização e conscientização (MARQUES et al., 2012, p. 2105).

 

Segundo Marques (2012), a abordagem da Educação Ambiental no emprego de uma tecnologia social é importante, pois os sujeitos discutem coletivamente os problemas e chegam a consensos em relação às soluções, facilitando a disseminação dessas informações pela comunidade. Neste sentido, “várias soluções ambientais, reconhecidas e ainda não reconhecidas como TS, têm sido aplicadas em diversos focos temáticos socioambientais, sob o viés do empoderamento social” (EL-DEIR, 2013 apud AGUIAR, BRITO e EL-DEIR, 2014).

A proposta da prática foi analisar TSs usadas para reduzir o consumo de água, captação de água da chuva e reutilização de água desenvolvidas no Brasil, sobretudo, em áreas semiáridas. A justificativa para a realização desta prática é que a região metropolitana de São Paulo, com cerca de 20 milhões de pessoas, está em uma grave situação de escassez de água desde o início de 2014. Apesar desta crise de abastecimento de água ser influenciada por aspectos ambientais, incluindo uma média de chuvas abaixo do esperado e degradação ambiental, as opções políticas e o modelo de desenvolvimento são os maiores responsáveis pelo cenário atual. A solução para a crise hídrica inclui uma maior participação social, com maior posicionamento crítico dos cidadãos (LAMIM-GUEDES, 2015).

 

Metodologia

A prática relatada aqui foi desenvolvida no segundo semestre de 2014, em uma Organização Não Governamental (ONG), à época com duas unidades em bairros pobres e periféricos da cidade de São Paulo. Os jovens participantes desta prática tinham entre 12 e 17 anos, com dois adultos (entre 35 e 50 anos) que integravam os grupos.

Esta ONG oferece atividades educativas complementares à escola em horário de contra turno (no horário que os educandos não estão na escola). A proposta institucional é de uma abordagem interdisciplinar; neste sentido, a prática foi realizada durante duas aulas de biologia e química. A proposta, ao unir na mesma aula as duas disciplinas, é a busca por uma maior integração entre os temas, reduzindo a fragmentação no ensino, incluindo maior ludicidade, participação dos alunos e a abordagem do contexto local.

As turmas são pequenas, no intuito de que os educandos tenham uma atenção mais personalizada. Neste sentido, a prática foi desenvolvida com uma turma de cada unidade de ONG, com 5 e 11 alunos cada. Como nas salas de aula haviam computadores e acesso à internet, os alunos desenvolveram toda a prática durante as aulas, o que favoreceu o apoio do educador para melhor compreensão das TSs e as possíveis aplicações em São Paulo.

A proposta da aula, que aconteceu em dois dias diferentes, foi de apresentar o que são as tecnologias sociais com foco em soluções envolvendo o abastecimento de água, exemplos e aplicabilidades em São Paulo. Usou-se exemplares impressos do livro Água e mudanças climáticas: tecnologias sociais e ação comunitária (SILVA et al. 2012), que se trata de um catálogo de TSs voltadas para reduzir problemas relacionados ao abastecimento de água e mudanças climáticas, feito a partir do Banco de Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil (FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL, 2015). Os alunos foram orientados que deveriam escolher uma TS, analisar se esta poderia ser aplicada em São Paulo e expô-la através de uma apresentação de slides para a turma. Na turma maior, com 11 alunos, foram formadas duplas, enquanto que, na turma menor, com 5 alunos, as atividades foram desenvolvidas individualmente. Durante esta aula, os educandos tiraram dúvidas do funcionamento da TS escolhida e começaram a preparar slides usando o software Power Point. A apresentação para os colegas ficou para o encontro seguinte.

A ideia, ao propor esta prática, é de que os alunos refletissem sobre cada TS e trouxessem para a realidade paulistana, além de exercitar a capacidade de síntese, organização de ideias e capacidade de relacionar informações referentes a outras localidades com a realidade local para a elaboração dos slides e apresentação perante a turma.

Na segunda aula dedicada à prática, foram realizadas a apresentação das TSs escolhidas pelos educandos. Individualmente ou em duplas, eles explicaram suas escolhas, a aplicabilidade destas no local de execução (a maioria em regiões semiáridas do Nordeste) e um possível uso em São Paulo. A cada TS, o educador responsável fazia explicações de forma a reforçar a contextualização e trazer novos elementos para o debate, como a relação entre a captação de água da chuva e a redução do escoamento superficial, minimizando a ocorrência de enchentes.

 

Resultados

A seguir são comentadas algumas das TSs escolhidas pelos alunos e como foram tratadas durante a prática. Além disto, são apresentados alguns dos slides montados pelos alunos. Os educandos foram bastante participativos, sendo que, durante a preparação das apresentações das TSs, eles fizeram anotações no caderno com o que deveriam falar para a turma.

A TS “Sistema de reuso de água de lavagem de roupa em descargas domésticas” (SILVA et al., 2012, p. 95) foi uma das escolhidas pelos alunos. A seguir, estão dois slides entre os produzidos por uma aluna.

 

Figura 2: slide sobre a TS “Sistema de reuso de água de lavagem de roupa em descargas domésticas”.

Figura 3: slide sobre a TS “Sistema de reuso de água de lavagem de roupa em descargas domésticas” com imagem retirada de Silva et al. (2012).

Esta TS trouxe ao debate uma possibilidade de como podemos reutilizar a água, neste caso, que sai da máquina de lavar. Houve o questionamento por parte dos alunos sobre a necessidade de tratar esta água. O educador explicou que depende do uso, para lavar quintais ou descargas, não haveria necessidade. Mas, pode-se construir um filtro com areia e outros materiais para obter uma água de reuso de melhor qualidade (menor quantidade de detergente e impurezas).

A TS “Barragem subterrânea com lonas plásticas” (SILVA et al., 2012, p. 41) foi escolhida por um aluno que preparou alguns slides, dos quais destacamos dois:

Figura 4: slide sobre a TS “Barragem subterrânea com lonas plásticas”, com imagem retirada de Silva et al (2012).

Figura 5: slide sobre a aplicação da TS “Barragem subterrânea com lonas plásticas” em São Paulo.

A apresentação desta TS permitiu debater dois pontos: ciclo hidrológico e a agricultura urbana. O primeiro ponto foi necessário para melhor compreensão da TS, pois ela barra o escoamento subterrâneo, mantendo o solo mais úmido na região demarcada pela barragem. O outro ponto foi levantado pelos alunos, que comentaram conhecer várias hortas em lotes baldios: com isto, eles perceberam a possibilidade de uso em alguns locais para produção de alimentos.

A TS “Sistema de descarte automático das primeiras chuvas” (figura abaixo) trata-se de um dispositivo que recolhe as primeiras chuvas em uma cisterna, evitando que esta faça parte da cisterna que armazenará a água da chuva durante a seca, com isto, evita-se que a água seja contaminada pela poeira e fezes de animais que estão no telhado (SILVA et al., 2012, p. 61).

Figura 6: Tecnologia social que se trata de um filtro para desviar água de telhado em cisternas rurais do interior de Pernambuco, que melhora a qualidade de vida de várias famílias. Fonte: Silva et al. (2012, p. 62).

Em relação à cidade de São Paulo, conversamos sobre a captação de água de chuva como alternativa para reduzir a necessidade da translocação de água da bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacia PCJ), que abriga o sistema Cantareira (conjunto de represas que abastece cerca de 6,2 milhões de pessoas da grande São Paulo). Inclusive, o próprio consórcio que cuida da gestão dos recursos hídricos da bacia PCJ é visto também como uma TS (veja SILVA et al., 2012, p. 53).

O interesse dos alunos pela atividade foi grande, dada a intensa participação e empenho na confecção dos slides e durante a apresentação perante a turma. Os comentários que fizeram sobre as TSs foram elaborados de forma bastante crítica, avaliando prós e contras e como poderiam ser utilizadas em São Paulo.

 

Considerações finais

A metodologia e resultados apresentados foram focados nas ações desenvolvidas em uma ONG, mas a mesma prática foi desenvolvida com alunos de cursos superiores de Administração de Empresas e Arquitetura nos anos de 2014 e 2015, com resultados interessantes, sobretudo ao possibilitar uma análise aprofundada dentro da área de atuação dos respectivos cursos.

A expectativa, ao realizar esta prática, era de proporcionar uma análise construtiva em relação à crise hídrica na Grande São Paulo. Esta foi alcançada, pois os alunos apresentaram as TSs como alternativas populares frente aos problemas de gestão de recursos hídricos que aumentaram a vulnerabilidade da região à redução no índice pluviométrico. A relação global-local foi importante, principalmente ao destacar a relevância da iniciativa popular frente aos problemas enfrentados pelos alunos em suas comunidades que, por serem periféricas, têm uma menor participação governamental.

 

Referências

AGUIAR, W. J. de; BRITO, R. A.; EL-DEIR, S. G. Tecnologia Social na educação para a gestão ambiental: um enfoque no aproveitamento integral de alimentos. Anais CINTEDI (Congresso Internacional de Educação e Inclusão), v. 1, p. 1-15-15, 2014. Disponível em <http://editorarealize.com.br/revistas/cintedi/trabalhos/Modalidade_1datahora_03_11_2014_17_16_03_idinscrito_1232_46100ba109929208aed2df32a662604d.pdf>. Acesso em setembro de 2015.

BARRETTO, S. F. A.; PIAZZALUNGA, R. Tecnologias sociais. Ciência & Cultura. 2012, vol.64, n.4, pp. 4-5. Disponível em <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252012000400002&script=sci_arttext>. Acesso em setembro de 2015.

BAVA, S. C. Tecnologia social e desenvolvimento local. In: PAULO, A.; MELLO, C. J.; NASCIMENTO FILHO, L. P.; KORACAKIS, T. Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004, p. 103-116. Disponível em <http://www.itsbrasil.org.br/infoteca/tecnologia-social/tecnologia-social-uma-estrategia-para-o-desenvolvimento>. Acesso em setembro de 2015.

EL-DEIR, S. G. Metodologias inovadoras para o empoderamento social. 1. ed. Recife: EDUFRPE, 2013

FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL. Banco de Tecnologias Sociais. 2015. Disponível em <http://www.fbb.org.br/tecnologiasocial/>. Acesso em setembro de 2015.

GASPAR, V. T. Coletivos Educadores e Tecnologia Social: início de um diálogo. In: V EPEA (Encontro Pesquisa em Educação Ambiental). São Carlos – SP, 30 de outubro a 2 de novembro de 2009. Disponível em <http://www.epea.tmp.br/epea2009_anais/pdfs/plenary/T24.pdf>. Acesso em setembro de 2015.

LAMIM-GUEDES, V. Crise da água na região metropolitana de São Paulo, Brasil. Global Education Magazine, v. 11, p. 95-99, 2015. Disponível em <http://www.globaleducationmagazine.com/crise-da-agua-na-regiao-metropolitana-de-sao-paulo-brasil/>. Acesso em setembro de 2015.

MARQUES, E. G.; LINK, D.; UBERTI, L. F.; NISHIJIMA, T. Educação ambiental e inclusão de tecnologia social para saneamento básico em propriedades de agricultores familiares. Monografias ambientais, v. 10, n. 10, p. 2101 – 2014, 2012. Disponível em <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/remoa/article/view/5916>. Acesso em setembro de 2015.

MINAS FAZ CIÊNCIA. Tecnologia sociais. Nº 30, Jun a Ago de 2007. Disponível em <http://revista.fapemig.br/materia.php?id=422>. Acesso em setembro de 2015.

SILVA, M. N.; GONTIJO, A. B.; LAMIM-GUEDES, V.; SANTOS, M. E. G. Água e mudanças climáticas: tecnologias sociais e ação comunitária. Belo Horizonte: CEDEFES; Brasília: Fundação Banco do Brasil, 2012. 120p. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2012/02/10/livro-agua-e-mudancas-climaticas-tecnologias-sociais-e-acao-comunitaria-disponivel-para-download/>. Acesso em setembro de 2015.

 

Ilustrações: Silvana Santos