Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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12/03/2015 (Nº 51) OS TEMAS SOCIOAMBIENTAIS NO PROCESSO DE LETRAMENTO
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OS TEMAS SOCIOAMBIENTAIS NO PROCESSO DE LETRAMENTO

 

 Prof. Dr. Marcos Pinheiro Barreto

 Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense

 

 

Resumo

O presente artigo discute a pertinência de articularmos no contexto escolar, a preocupação com o letramento de crianças e o desenvolvimento de uma consciência ambiental crítica. Após uma aproximação sobre o conceito de letramento, tendo em vista a insuficiência da noção de alfabetização para interpretar o significativo contingente de estudantes que não dominam plenamente a leitura e a escrita, discute-se a gravidade da crise socioambiental contemporânea, exigindo das escolas um esforço pedagógico para também interpretá-la, tendo em vista uma leitura crítica do mundo vivido. Para demonstrar a viabilidade de um terreno comum entre o letramento e a consciência ambiental é apresentada uma atividade pedagógica com estudantes de pedagogia, explorando as implicações sociais e ambientais das mídias eletrônicas domésticas.

Palavras – chaves: Letramento – crise socioambiental – mídia - cidadania

 

 

Introdução

 

            O presente texto tem a pretensão de se dirigir aos educadores que se encontram trabalhando, teórica e praticamente, com o letramento nas séries iniciais do ensino fundamental. Preciso justificar essa pretensão, pois esse autor jamais trabalhou com alfabetização ou letramento, embora acumule alguma experiência com a formação de professores, nos últimos anos defendendo a urgente necessidade das escolas se ocuparem de temas socioambientais, diante dos sinais de crise que ora experimentamos.

            As contribuições que esse texto pode oferecer, nessa medida, diz respeito à tentativa de articular o trabalho escolar desenvolvido para que crianças alcancem domínio da leitura e da escrita com a formação de uma consciência ambiental crítica, requisitos, se não únicos, mas indispensáveis para que as novas gerações participem do esforço de transformações necessárias à construção de uma sociedade sustentável, com justiça social e preservação ambiental.

            O texto foi elaborado de tal modo a apresentar, primeiramente, uma aproximação sobre o conceito de letramento, de alguém que não é do campo da lingüística, mas entende a necessidade de que todos os educadores o compreendam, tendo em vista a melhoria da qualidade de ensino e aprendizagem em nossas escolas.

            Num segundo momento, apresento de forma breve o cenário da crise socioambiental que aludi anteriormente, para identificar um terreno comum entre as atividades de escrita e leitura e as atividades necessárias para uma leitura crítica do mundo em que vivemos.

            Finalmente, num terceiro momento, apresento uma possibilidade de trabalho pedagógico explorando as práticas domésticas associadas aos equipamentos de mídia, com importantes implicações para a formação de crianças letradas e mais conscientes dos desafios a serem enfrentados por elas e pelas gerações futuras.

 

Sobre o conceito de letramento

 

Foi pelas mãos de Magda Soares (2004) que fui introduzido ao debate sobre o conceito de letramento; em que medida ele se diferencia do conceito conhecido de alfabetização, além das próprias disputas no campo da Educação e das Ciências Lingüísticas sobre a melhor maneira de definir o conceito.

            Não pretendo entrar no mérito desses debates, para os quais não estou qualificado, mas não estou impedido de perceber a importância das pesquisas dedicadas ao aprimoramento teórico e prático das estratégias pedagógicas que procuram qualificar o desempenho de educadores e alunos no domínio da leitura e da escrita. Durante muitos anos, como professor de História, procurei auxiliar meus alunos nesse sentido, muitos deles precariamente alfabetizados, tanto nas séries do ensino fundamental, quanto nas do ensino médio. Embora utilizasse a noção de “analfabetos funcionais” para me referir a real condição desses alunos, que não dominavam com propriedade as habilidades de leitura e escrita, a despeito de serem considerados alfabetizados e terem alguns anos de escolarização, não era difícil perceber que as escolas não vinham garantindo uma efetiva alfabetização de crianças e jovens.

            O conceito de letramento nos permite identificar melhor a situação de um grande contingente da população escolarizada, que mesmo ultrapassando a fronteira das quatro séries iniciais do ensino fundamental, e, portanto, formalmente e tecnicamente considerados como alfabetizados, capazes de ler e escrever, ao menos para resolver as tarefas escolares que lhe foram propostas, não poderiam ser considerados letrados. Segundo Soares (2004:47), o letramento implica na condição daqueles que são capazes de cultivar e exercer as práticas sociais que usam a leitura e a escrita. É da autora a seguinte observação que ajuda a distinguir a condição de alfabetizado da condição de letrado;

         ...ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e escrever: aprender a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e decodificar em língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita “própria”, ou seja, é assumi-la como sua “propriedade”. (SOARES, 2004:39)

 

            Podemos acompanhar a mesma autora (Soares, 2004:58) quando procura entender o fracasso das campanhas oficiais de alfabetização em nosso país, que apenas se preocuparam em ensinar a ler e escrever, sem criar as condições para um letramento dos alfabetizados; livros, jornais e revistas com preços acessíveis, existência de bibliotecas públicas, mais oportunidades de espetáculos culturais e etc. Historicamente não temos articulado políticas educacionais e culturais, para além da alfabetização, no sentido de criar condições para um ambiente de letramento, que permita aos cidadãos gozarem das prerrogativas de uma vida letrada, quando utilizamos socialmente a leitura e a escrita para nos informarmos, para lutarmos por direitos, para nos comunicarmos, para estabelecermos contratos ou para usufruirmos do prazer de uma boa literatura.

No esforço de conceituar letramento, objeto de divergência entre pesquisadores, Soares (2004:67) chama atenção para duas dimensões do processo de letramento; uma dimensão individual, que diz respeito à aquisição de habilidades distintas de escrita e leitura pelo indivíduo, foco de uma vertente de pesquisas que procura definir que habilidades seriam consideradas para indicar diferentes níveis de letramento, e, a dimensão social, sustentada por outros pesquisadores, que entendem o letramento como uma prática social, mais do que um atributo pessoal ou individual, como bem caracteriza a autora;

 

...letramento é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social. (SOARES,2004:72)

 

Diante dessa concepção de letramento, atenta às implicações sociais, não seria difícil inferirmos uma forte relação entre níveis de letramento e padrões de cidadania, ou seja, quão mais qualificadas forem as habilidades de um indivíduo ou de um grupo social de usarem a leitura e escrita, mais chances teriam de conquistarem prerrogativas de uma cidadania plena. Mesmo sabendo das dificuldades teóricas e técnicas enfrentadas pelos pesquisadores que procuram estabelecer critérios para identificar níveis diferenciados de letramento de nossa população, desde a condição de iletrado até a que poderíamos considerar como a de letramento pleno, creio ser indiscutível o fato de que populações iletradas ou parcialmente letradas, se encontram privadas de habilidades sociais importantes, em grande desvantagem nas competitivas sociedades urbanas contemporâneas.

Sem precisar esperar que as pesquisas avancem no sentido de um consenso que permita uma avaliação e uma medição mais segura dos índices de letramento de nossa população[1], podemos antecipar resultados bastante desiguais, apartando uma minoria letrada, de uma maioria precariamente letrada, atingindo parte considerável dos que são considerados alfabetizados. Não seria surpresa encontrarmos indicadores de sub-letramento nas populações privadas de outras prerrogativas importantes para uma vida justa e saudável. Crianças, jovens e adultos iletrados ou parcialmente letrados, invariavelmente estarão sendo medidos com indicadores sofríveis em relação ao acesso aos serviços de saúde, de transporte, de infra-estrutura como saneamento básico, assim como em relação ao acesso aos bens culturais ou às áreas de lazer das cidades.

Muito tardiamente as crianças, adolescentes e jovens das classes populares em nosso país tiveram acesso à escola pública, massivamente só ocorrendo nas últimas décadas do séc.XX, pois durante quatro séculos fomos um país formado majoritariamente por trabalhadores braçais e iletrados, tutelados historicamente por uma minoria de proprietários, que sempre souberam mobilizar os poucos letrados para manterem seus interesses sociais, políticos e econômicos. Somos historicamente um país profundamente injusto, e o conceito de letramento nos ajuda a dimensionar, no plano do domínio da língua escrita, o tamanho das desigualdades que precisamos enfrentar como educadores brasileiros. A diminuição do índice de analfabetos, verificado nas últimas décadas, se representa algum avanço quando consideramos o nosso tardio processo de escolarização, hoje, serve mais para mascarar as demandas educacionais que se impõe a todos nas sociedades atuais.

As escolas, e não apenas as alfabetizadoras e os alfabetizadores, precisam reconhecer a importância de criarmos competências no sentido de transformar os ambientes escolares em ambientes potencialmente favoráveis ao letramento de seus alunos. O ideal, como sugere Soares (2004:47), partindo do pressuposto de que alfabetizar e letrar implicam em ações distintas, mas não inseparáveis, “seria alfabetizar letrando, ou seja, ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado.”

Animado por essa perspectiva, que permite entendermos o letramento como uma exigência e um critério de cidadania, em última instância como uma prática social, e admitindo o relativo fracasso das escolas no sentido de diminuirmos os déficits de letramento da população escolarizada, darei seqüência ao texto, apresentando a pertinência dos chamados temas ambientais para o desenvolvimento de estratégias pedagógicas preocupadas em fortalecer as habilidades de letramento de crianças.

 

Sobre a crise socioambiental

 

No início dos anos 70, tivemos sob o patrocínio da ONU, a organização da Conferência das Nações sobre o Ambiente Humano em Estocolmo (1972), que além de afirmar o direito das presentes e futuras gerações a um ambiente saudável e não degradado, recomendava a formulação de um programa de educação ambiental a ser seguido pelas nações. A importância estratégica da educação, “como um dos elementos mais críticos para que se possa combater a crise ambiental do mundo”, foi reafirmada em Belgrado, durante o Encontro Internacional de Educação Ambiental (1975), que formulou os princípios de um Programa Internacional de Educação Ambiental (PIEA).

 

Nós necessitamos de uma nova ética global – uma ética que promova atitudes e comportamentos para os indivíduos e sociedades, que sejam consoantes com o lugar da humanidade dentro da biosfera; que reconheça e responda com sensibilidade às complexas e dinâmicas relações entre a humanidade e a natureza, e entre os povos. Mudanças significativas devem ocorrer em todas as nações do mundo para assegurar o tipo desenvolvimento racional que será orientado por esta nova idéia global – mudanças que serão direcionadas para uma distribuição eqüitativa dos recursos da Terra e atender mais às necessidades dos povos. (Carta de Belgrado, 1975) (DIAS, 1993:59).        

            Projetava-se assim, um programa de educação ambiental, nos termos de uma “ética global individualizada”, que respondesse às situações de “desigualdades entre pobres e ricos, e entre países”, assim como à “crescente deterioração do ambiente físico em escala mundial, buscando a erradicação das causas básicas da pobreza, da fome, do analfabetismo, da poluição, da exploração e dominação”. O documento postulava um papel fundamental para um programa de EA, de caráter multidisciplinar, empenhado no “desenvolvimento de novos conceitos e habilidades, valores e atitudes, visando à melhoria da qualidade ambiental e, efetivamente, a elevação da qualidade de vida para as gerações presentes e futuras”.(Dias,1993:60)

Vinte anos depois da Conferência de Estocolmo e das graves advertências então formuladas sobre a crise ambiental provocada pelos impactos predatórios das atividades humanas, a ONU promoveu no Rio de Janeiro (1992), a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano, um mega-evento, reunindo representações oficiais de mais de 150 países, pesquisadores e técnicos de agências governamentais e não-governamentais e privadas, também de universidades de todo o mundo, além da expressiva presença de inúmeros ativistas de movimentos sociais, representando minorias étnicas, camponeses, mulheres, homossexuais, e tantos outros,  além dos ambientalistas de todos os continentes. Tudo isso com uma grande cobertura da mídia internacional que trouxe para o Rio de Janeiro um significativo contingente de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, garantindo a mobilização da opinião pública mundial em relação ao evento, também um espetáculo mediático.

            Não será demais afirmar que a intensa mobilização aludida foi proporcional à gravidade da crise planetária, provocada pela insustentabilidade dos atuais padrões de produção, distribuição e consumo de riquezas, injustos socialmente e predatórios ambientalmente, exigindo mudanças urgentes, sob pena de comprometermos o destino de futuras gerações, sendo esta a avaliação dos principais documentos que subsidiaram o encontro.

            Durante a ECO-92, como ficou conhecido o encontro, foi consolidado o conceito de desenvolvimento sustentável, que procura expressar a necessidade de outro paradigma de desenvolvimento, capaz de conciliar a produção de riquezas com a preservação de recursos naturais, além distribuir com justiça a riqueza produzida.

            Além da aprovação de tratados importantes sobre a biodiversidade, sobre as águas, os mares, as florestas e as mudanças climáticas, depois de duras negociações entre os interesses governamentais, públicos e privados implicados nas medidas a serem tomadas no sentido do desenvolvimento sustentável, foi aprovada a Agenda 21, um roteiro detalhado, sugerindo ações, atores, metodologias para obtenção de consensos, mecanismos institucionais para a implementação e monitoramento de programas, para guiar governos e sociedades, nas próximas décadas, rumo à sustentabilidade.

            Embora as implicações educacionais estejam sempre presentes ao longo de todo o documento, uma vez que os conceitos de cidadania, participação, cooperação, solidariedade, parceria, democracia e gestão, direta ou indiretamente evocam a educação ambiental, esta merecerá um capítulo específico sob o título de “Promovendo a Conscientização Ambiental”. Valorizando tanto a educação formal, estabelecendo metas para a erradicação do analfabetismo e a universalização da educação básica, quanto a educação informal, o documento sugere dois processos pedagógicos combinados, um correspondendo a conscientização sobre a complexidade dos problemas ambientais, percebendo as repercussões locais e globais dos mesmos, outro referente aos comportamentos a serem estimulados, não predatórios, de modo a podermos falar de uma educação para a sustentabilidade, defendida no documento.

            Desde então, temos assistido diferentes atores sociais defenderem o desenvolvimento sustentável, bem com uma educação ambiental que lhe corresponda, não sendo difícil verificar, como assinala Guimarães (2000);

 

...a cooptação de categorias/conceitos anteriormente atrelados à propostas críticas”, em favor de um projeto desenvolvimentista, “que vincula o processo educativo a um novo modelo de acumulação de capital, agora denominado de  desenvolvimento sustentável.

 

            De fato, ao fazermos um balanço das últimas duas décadas, não há como sermos muito otimistas ou ingênuos, como parecem sugerir muitos projetos de educação ambiental, desenvolvidos em escolas ou por ONGs em suas múltiplas parcerias. Inspirados acriticamente no conceito de desenvolvimento sustentável, parecem desconsiderar a hegemonia conquistada pela agenda neoliberal em escala planetária, sob o ritmo vertiginoso da mundialização do capital financeiro/industrial, mutilando a soberania de Estados Nacionais, privatizando empresas estatais e serviços públicos.

Atualmente o campo da educação ambiental encontra-se fortemente influenciado por discursos e práticas que conciliam acriticamente meio ambiente, capital e trabalho, sob o manto de conceito de sustentabilidade, reafirmado recentemente na Rio + 20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, com resultados pouco animadores em termos de prazos e metas não assumidos, principalmente entre países, governos e corporações.  Por outro lado, no evento paralelo, a Cúpula dos Povos, animado pela intensa atividade de organizações não-governamentais, de profissionais e estudantes de variados campos e de movimentos sociais diversos, foram questionados e criticados os padrões hegemônicos de produção, consumo e de distribuição de riquezas, para a defesa de uma aliança “por justiça social e ambiental em defesa dos bens comuns, contra a mercantilização da vida”[2].

Diante do cenário apresentado, o que podem fazer as escolas e as respectivas comunidades escolares? Como reagir a esses desafios, tanto o de assegurar o pleno desenvolvimento da escrita e da leitura, como o de realizar uma educação ambiental crítica, comprometida com um projeto sustentável de sociedade? 

Não há contradição entre os desafios apresentados, pois da mesma forma como não é possível atingir níveis razoáveis de letramento, sem desenvolver uma percepção crítica do ambiente em que vivemos, também não parece possível praticar uma educação ambiental transformadora, sem o domínio efetivo, por parte de estudantes e professores, das habilidades de leitura e escrita.

Espero ter conseguido demonstrar a correlação necessária entre as duas tarefas, que são indissociáveis. Trabalhar pedagogicamente por uma sociedade sustentável, social e ambientalmente, implica na preparação de nossos alunos para extraírem possibilidades de fortalecimento, individual e coletivo, no cenário da crise que vivemos. Para tanto, sob inspiração de Freire (1983:92), precisamos qualificar nossas atividades, sobretudo aquelas relacionadas à pronúncia do mundo, tanto no sentido da denúncia de suas iniqüidades e desigualdades, quanto no sentido do anúncio de uma nova sociabilidade, com justiça ambiental e social.

 

Explorando as mídias domésticas

 

            Trabalhando com formação de professores numa universidade pública, tenho procurado elaborar uma agenda ambiental explorando as situações do cotidiano urbano experimentadas por estudantes de pedagogia; situações corriqueiras e até banais, quase sempre desconsideradas como fonte de conhecimento, mas que se revelam ricas para problematizarmos indicadores de (in)sustentabilidade ambiental.

Um dos exercícios implicou na produção de fotografias por parte dos estudantes, retratando suas moradias e as respectivas vizinhanças, de modo a constituirmos uma coleção fotografias legendadas pelas estudantes/fotógrafas. Para efeito desse artigo, apresentarei uma única foto pertencente à coleção intitulada Interiores, retratando salas, quartos, cozinhas e as chamadas áreas de serviço. Assim, a foto escolhida para ser trabalhada nos limites desse artigo pretende demonstrar a potencialidade de trabalharmos pedagogicamente com a representação de situações cotidianas, explorando suas implicações sociais e ambientais.  

Ao organizar essa coleção, procurei levar em conta a polarização simbólica entre a casa e a rua, com a primeira representando o espaço doméstico, familiar e privado, e, a outra, o espaço exterior e público, estranho e muitas vezes ameaçador ao primeiro, expressando as emblemáticas oposições entre ordem e desordem, entre harmonia e desarmonia. Reconhecendo a pertinência dessa polaridade para examinarmos o acervo constituído, como nos chama atenção Da Matta (1979:70) ao afirmá-la como “um instrumento poderoso na análise do mundo social brasileiro...”, este autor não perde de vista que, para além da evidência mais imediata que nos sugere domínios sociais “mutuamente exclusivos”, existem as gradações e ambivalências entre o mundo externo da rua e o mundo interno familiar.

A foto escolhida para análise retrata uma sala, sendo reproduzida com a legenda original elaborada por sua autora, indicando práticas sociais do cotidiano doméstico.

 

Sala da minha casa, onde assisto tv, ouço música,

recebo amigos, etc. (Valéria de Souza Maciel)

 

            Essa foto-legenda foi escolhida, primeiramente, por representar um ambiente muito valorizado pelos participantes, exatamente pelo exercício do que chamamos de tempo livre, quando assistimos TV, ouvimos música e recebemos amigos, lugar também associado a carinho, descanso, intimidade, diversão, namoro, confraternização. Chamei de representações topofílicas, utilizando os conceitos de topofilia e topofobia de Yi-Fu-Tuan, um geógrafo que inspira estudos de percepção ambiental, usando o primeiro para caracterizar os lugares que despertam sentimentos de afeição, pertencimento, conforto, e o segundo, para se referir a lugares que provocam qualquer tipo de aversão ou medo.[3]

            O segundo motivo de ter escolhido uma representação topofílica de uma sala é que esse aparente consenso foi quebrado, quando diante da coleção completa de fotos-legendas das salas das moradias dos quarenta participantes, um deles provocou uma animada discussão quando perguntei se os equipamentos multimídia, principalmente a televisão, mas não subestimando as demais mídias de som e imagem que nos permitem usufruir dos bens culturais, poderiam ser considerados como indicadores favoráveis de qualidade de vida e de sustentabilidade.[4] Suas críticas à qualidade das produções televisivas, sejam programas ou propagandas, ganharam apoio e logo noções como “invasão cultural”, “manipulação” e “alienação”, passaram a ser utilizadas de modo que as representações, antes topofílicas, ganharam conotações claramente topofóbicas. Esse deslocamento simbólico de percepções favoráveis para percepções desfavoráveis, em relação aos equipamentos de mídia domésticos, indicou um esforço crítico do grupo no sentido de avaliar o papel das mídias no contexto doméstico, seja quando determina aspectos importantes da rotina familiar, seja quando influencia comportamentos ou hábitos de consumo, ou quando valoriza determinadas idéias em detrimento de outras.

A televisão, e as práticas sociais a ela associadas, concordamos, não podem ser negligenciadas se pesquisamos indicadores de qualidade de vida e de sustentabilidade, sendo importante levarmos em conta não apenas o acesso aos bens eletrônicos, mas a qualidade da produção cultural veiculada pelas telas domésticas, como janelas ligando o ambiente doméstico ao mundo externo.

            Assim, a ambivalência identificada na percepção dos participantes sobre o acesso aos bens de multimídia, com foco principal na televisão, mas não exclusivamente, revelou uma clara contradição na medida em que tais bens mereceram representações que transitaram entre a topofilia e a topofobia. Simbolizaram conforto, lazer e diversão, mas também alienação, dominação e invasão. Este rico conflito pode e deve merecer a atenção de educadores, pois indica não apenas a tensão vivida entre a liberdade e a intimidade do lar e os poderes constituídos na vida pública, mas alguma capacidade de resistência  experimentada pelos consumidores, que longe de serem passivos se defendem simbolicamente contra o assédio de interesses estranhos aos domínios domésticos.

            Duas questões devem ser consideradas neste sentido. Uma diz respeito à qualidade dos produtos culturais consumidos, como novelas, seriados, filmes, telejornais, músicas, shows e clips musicais, competições esportivas, desfiles de moda etc., considerando a hegemonia cultural exercida por grandes corporações da indústria cultural estadunidense[5] na vida cultural brasileira como em muitos países, sobretudo do continente americano, consumindo domesticamente seus produtos, desde os anos 50, com a expansão do mercado de televisores. Para dialogar criticamente com esta “qualidade”, para além da inequívoca supremacia tecnológica e financeira, uma pedagogia crítica precisa considerar as relações entre cultura e poder, de modo a compreender a dimensão simbólica e material do processo de homogeneização cultural a que estamos sujeitos, em prejuízo de produções culturais que expressam valores e qualidades culturais locais, regionais ou nacionais.  O caráter monocultural desta pesada indústria cultural, que tem no mercado monopolizado das mídias eletrônicas seu principal fundamento, garante a difusão planetária de hábitos, valores, desejos e comportamentos validados para crianças, adolescentes, jovens e adultos à luz do american way of life,  consagrando o mercado como a única instância de mediação das necessidades humanas e alcançando um poder sem precedentes de “moldagem da vida cotidiana”, através do consumo doméstico de sua diversificada produção cultural (Giroux, 1995:134).

 Se entendermos que esta vocação imperialista, etnocêntrica, consumista e privatista da cultura de massa hegemônica é incompatível com os princípios de sustentabilidade que pressupõe a valorização do multiculturalismo e da democratização das relações entre os povos, incluindo as relações culturais, temos a possibilidade de tratarmos das práticas culturais cotidianas e domésticas numa perspectiva crítica. Dito de outro modo, uma pedagogia crítica pode contribuir para desnaturalizar o consumo cultural doméstico, revelando suas implicações socioculturais, econômicas, ambientais, ideológicas e geopolíticas, politizando um espaço que só aparentemente é preservado para a vida íntima de uma família contemporânea.

Outra questão a ser considerada diz respeito aos impactos socioambientais provocados pela exposição diária das famílias ao assédio publicitário veiculado em suas tvs, que difunde igualmente uma cultura hedonista, individualista, privatista, consumista. O discurso publicitário busca ancorar o consumo dos produtos anunciados no cotidiano familiar e nas suas diferenciadas exigências para sustentar-se, moldando estas exigências segundo padrões de consumo e de comportamentos adequados aos interesses privados e corporativos dos anunciantes. Operações simbólicas importantes associam sentimentos, desejos, valores e conceitos aos produtos anunciados, induzindo a um consumo de bens materiais e imateriais, combinando a descartabilidade dos primeiros com a perenidade dos segundos. Um anúncio de um novo modelo de automóvel faz parecer antigo e ultrapassado o modelo do ano anterior, mas renova os ideais de pertencimento a uma elite moderna e progressista, assim como renova a capacidade de sucesso na conquista de belas mulheres. No caso do consumo estritamente doméstico, um novo produto de limpeza torna obsoleto aquele usado anteriormente, mas reedita o desejo feminino de ter o trabalho doméstico simplificado, aumentando o tempo livre para o exercício de uma feminilidade moderna, com ocupações mais edificantes. Certamente estes apelos midiáticos diuturnos alcançam em alguma medida a consciência doméstica, mas não sem resistência, como verificamos nas ambivalentes representações elaboradas pelos estudantes, com críticas potencialmente ricas sobre os atuais padrões de produção e consumo e seus impactos na geração de lixo, no consumo energético, assim como no endividamento da renda familiar.

Parece oportuno, nesse momento, retomarmos a questão do letramento, pois os ambientes eletrônico/digitais em que se transformaram salas e quartos domésticos inegavelmente se constituem em fonte de letramento, face ao acesso sistemático experimentado pelas crianças aos variados produtos culturais combinando sons, imagens e textos, estimulando tanto a linguagem oral como a escrita. Antes mesmo de iniciar o processo propriamente dito de alfabetização, a criança já é dotada de alguma “competência lingüística”, adquirida sobretudo no ambiente familiar, que deve ser considerada nas pesquisas sobre a aprendizagem da escrita, como nos sugere Nascimento (2006:41), na medida em que “ela é um dos fatores determinantes – condição de existência – da elaboração das hipóteses e estratégias utilizadas (pelo aprendiz) na construção de seu conhecimento sobre a escrita.” Assim, se as práticas de oralidade e de letramento vividas pelas crianças   no espaço doméstico são fortemente mediadas pela mídia, constituindo uma  certa competência oral e escrita, tais práticas não devem ser desconsideradas também pela escola, tanto por ajudarem os professores a compreenderem tecnicamente melhor as hipóteses construídas pelas crianças para relacionarem a língua  falada e escrita, como por advertirem os mesmos para os limites e as possibilidades do contexto estético, social, cultural, ideológico em que as crianças se encontram mergulhadas.

Se consideramos o bombardeio publicitário a que as crianças estão sujeitas quando assistem seus programas preferidos, podemos acompanhar Kellner (1995), quando afirma que “a publicidade tornou-se o discurso público dominante do século XX”, e para justificar uma aproximação crítica da pedagogia em relação à publicidade, evoco do autor a seguinte passagem teórica;

A publicidade constitui uma das esferas mais avançadas da produção de imagem, com mais dinheiro, talento, e energia investidos nesta forma de cultura do que em qualquer outra em nossa sociedade hiper-capitalista. A própria publicidade é uma pedagogia que ensina os indivíduos o que eles precisam e devem desejar, pensar e fazer para serem felizes, bem-sucedidos e genuinamente americanos. A publicidade ensina uma visão de mundo, valores e quais comportamentos são socialmente aceitáveis e quais são inaceitáveis. ”(KELLNER,1995:)

 

As sedutoras peças publicitárias, assim, não são apenas fontes de letramento, mas competentes fontes de mensagens que visam à construção de identidades sociais adequadas à reprodução dos atuais padrões de produção, consumo e distribuição de bens, materiais e simbólicos.

Tal perspectiva sobre publicidade pode dotar uma pedagogia crítica, teórica e metodologicamente, de uma oportuna capacidade de desconstrução das narrativas publicitárias, demonstrando a insustentabilidade das práticas sociais, bem como dos valores e conceitos a elas associados, se consideramos os princípios do chamado desenvolvimento sustentável.

Os produtos culturais oferecidos pela indústria contemporânea e consumidos por crianças e jovens (filmes, clipes, revistas, músicas etc.) não se constituem em produções desinteressadas, merecendo toda atenção de educadores ocupados com o processo de letramento de seus alunos, pois a competência lingüística pode ser potencializada se além do domínio da leitura e da escrita, forem capazes de um exercício crítico, indispensável para postularmos práticas sociais comprometidas com a construção de uma sociedade sustentável.

 

Considerações finais

            Procurei ao longo desse artigo estabelecer um terreno comum entre letramento e a educação ambiental, conceitos que correspondem a campos teóricos que não dialogam muito entre si, embora pareça razoável aliarmos competências linguísticas e competências críticas para assegurarmos uma “leitura” do mundo em que vivemos.

            Considero graves os indicadores que atestam a fragilidade da escolarização em nosso país, com contingentes de crianças e jovens apresentando baixo desempenho no domínio da leitura e da escrita, como de resto em outras áreas do conhecimento, mas sem um processo de letramento bem sucedido, pouco podemos esperar em relação ao desempenho nas demais disciplinas.

Do mesmo modo, considero graves os indicadores da situação socioambiental brasileira, que não deixam dúvidas sobre os impactos decorrentes do atual padrão de produção, consumo e distribuição de riquezas, provocando a intensa dilapidação dos recursos ambientais e a degradação das condições de vida, tanto nas áreas rurais como nas cidades. 

Ao explorar as práticas sociais associadas ao usufruto dos equipamentos domésticos de mídia, de modo a problematizar a cultura do consumismo identificada com a lógica produtiva da obsolescência planejada, pretendi demonstrar a pertinência pedagógica de aliarmos a preocupação com o processo de letramento com a necessidade de um exercício crítico sobre as condições de insustentabilidade das sociedades contemporâneas.

Acompanhando Soares (2004), quando discute os possíveis critérios para a avaliação e medição do letramento, reproduzo uma passagem em que ela problematiza a relação entre letramento e escolarização para criticar uma redução do conceito nos termos do que poderíamos chamar de um letramento escolar;

...o fenômeno complexo do letramento é reduzido àquelas habilidades de leitura e escrita e àqueles usos sociais que os testes avaliam e medem. Desse modo, os critérios segundo os quais os testes são construídos é que definem o que é letramento em contextos escolares: um conceito restrito e fortemente controlado, nem sempre condizente com as habilidades de leitura e escrita e as práticas sociais necessárias fora das paredes escolares. (SOARES, 2004:86)

 

            Do mesmo modo, podemos falar de uma educação ambiental escolar igualmente mutilada, conformada em avaliar burocraticamente a produção dos alunos, sem dialogar com as complexas demandas educacionais suscitadas pelo cenário crítico em que vivemos para além dos muros escolares.

            Ao defender a necessidade de uma pedagogia crítica, capaz de animar tanto as atividades de leitura e escrita, quanto aquelas que ajudam a entender os riscos ambientais que ameaçam a vida em escala planetária, estou, em última instância, sustentando que as práticas pedagógicas devem concorrer para fortalecer as competências e habilidades emancipatórias, tanto de educadores quanto de educandos, para que libertemos as escolas da missão meramente reprodutora da cultura dominante. Para que deveriam servir as escolas, senão para trabalhar a favor de uma vida digna, justa, saudável e sustentável para as presentes e futuras gerações?

 

             Bibliografia

 

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GIROUX, Henry. “Praticando estudos culturais nas faculdades de educação”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Um alienígena na sala de aula. Petrópolis: Vozes, p. 85/102,1995.

 

GUIMARÃES, Mauro. Educação Ambiental: o consenso um embate? Campinas, SP: Papirus, 2000.

 

KELLNER, Douglas. “Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna”. In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (org.) Um alienígena na sala de aula. Petrópolis: Vozes, p 104/131,1995.

 

NASCIMENTO, Milton do. “A alfabetização como objeto de estudo: uma perspectiva processual”. In: ROJO, Roxane (org.) Alfabetização e Letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, p.33/59, 2006.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

 

http://www.cupuladospovos.org.br. Declaração final da Cúpula dos Povos na Rio + 20. Rio de Janeiro, 22 de junho de 2012

 

 



[1] Na obra citada de Magda Soares (2004), a autora apresenta um ensaio “Letramento: como definir, como avaliar, como medir” , discutindo os rumos, as dificuldades e as polêmicas das pesquisas sobre letramento no país  e no mundo.

[2] Da declaração final da Cúpula dos Povos na Rio + 20. Rio de Janeiro, 22 de junho de 2012. (http://www.cupuladospovos.org.br).

 

[3] Para maiores aprofundamentos sobre os referidos conceitos sugiro a leitura da obra Percepção Ambiental: a experiência brasileira,1996, organizado por Vicente del Rio e Lívia de Oliveira.

 

[4] Deliberadamente identifico qualidade de vida e sustentabilidade na medida em que a noção de sustentabilidade tem sido associada a diferentes conceitos, sendo mais comum o uso dessa noção referindo-se à “saúde do mercado”, por exemplo, descaracterizando e empobrecendo a riqueza do conceito.

[5] Como a Disney Company, a Time Warner, a Times Mirror e outros conglomerados responsáveis pela produção e comercialização  filmes, livros, músicas, textos, imagens através de diversas mídias, para ficarmos no campo do entretenimento cultural.

Ilustrações: Silvana Santos