Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Para Sensibilizar
12/12/2009 (Nº 30) TODOS OS DIAS NASCE UM DEUS-MENINO NA MINHA CASA
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Educação Ambiental em Ação 301
TODOS OS DIAS NASCE UM DEUS-MENINO NA MINHA CASA

Ione Jaeger

 

 

                               

                                            

           Cara de fuinha, estrábico, inteligente. O moleque me olhava, um olho meio fechado, um sorriso chocho – o rato tinha levado os dentinhos de leite, os incisivos superiores – e fazia perguntas do arco-da-velha:

         – Vovó Sara, quem inventou comer? Quem disse que a gente tem que dar bom-dia para as pessoas? O vento que tinha ontem, onde está ele hoje?

         –  Vovó, Deus já sabe que ele vai nascer amanhã?

        Era véspera de Natal.

         – Socorro, Nossa Senhora das Candeias! Acenda uma vela na minha mente para eu responder certo ao meu santinho perguntador!

        E as perguntas vinham uma atrás da outra. Tirava minha concentração. Eu me perdia nas contas do ponto-de-cruz do guardanapo que estava bordando para a mulher do doutor Balbino. Ela pagava bem. Eu queria entregar a encomenda ainda hoje. Dinheiro garantido para fazer um rancho na quitanda do Zé Pretinho e melhorar o almoço do dia de Natal. Queria fazer uma cabidela de galinha, um arroz branco e macarrão com molho. Também, sobremesa. Cocada preta. Meu menino gosta!

       Todo o pessoal da rua, até a irmã do frei Antônio, achou um absurdo eu pegar o menino para criar. A mãe, uma indigente que vagava pela vila, sem ter onde cair morta, deu à luz antes de fechar o nono mês de gravidez. Caiu do bonde. Morreu, bateu a cabeça nos paralelepípedos do leito dos trilhos. A criança se salvou. Ficou três meses na incubadeira.

        Na missa do primeiro domingo de Advento, o padre disse no púlpito:

        – Alguma família caridosa quer pegar o filho da Maria Indigente, que ainda está no hospital? É um varão com saúde para dar e vender.

        A primeira a levantar a mão fui eu:

        -- Eu quero!

       Ninguém mais se coçou. Dias depois, busquei o Quincas.  Não sei dizer qual teria sido o ato de maior resolução, mais importante para mim – fazer o sinal que queria o neném, ou trazer para casa aquela criancinha. Nunca me casei, não fui mãe. Dava aula dominical de catecismo na paróquia. Parei há doze anos, quando papai adoeceu para morrer. Convivia há muito tempo somente com gatos e cachorros.

       Foi gostoso trazer o bebê no colo. Quentinho, encostado no meu peito, do lado do coração. Tão pequeninho enrolado nos cueiros, no xale! As pessoas me olhavam. Invejosas! Algumas falavam coisas:

        –  Você perdeu o juízo, dona Sara? 

        – Que falta de ponderação, dar uma criancinha para uma mulher de quase sessenta anos criar! 

        – Hum! Não vai ficar muito tempo! Não dou cinco dias. É só começar a chorar de noite,  não lhe deixar dormir!

        – Sara, donde a senhora vai tirar recursos para o sustento do menino?

        – Criar uma criança sem pai!

         E eu pensava com meus botões: Deus provê. Deus há de prover!

       José Joaquim completou seis anos em setembro. Passou para o segundo ano com a melhor nota da classe. Nunca passou fome nem deixou de ir à missa, à aula, por não ter roupa e borzeguim. Claro que não era roupa de veludo. Eu mesma costurava as calças, camisas e paletós para ele. Seu Almeida, o sapateiro do convento, fazia as botinhas.  Nunca ficou doente, doença brava. Nunca chorou de noite.  Sabia desde pequeninho que a mãe havia morrido. Eu até o levei num cemitério onde a mãe estava enterrada. Hum! Sei lá de quem era aquela sepultura. Não tinha nome, mesmo. Rezava antes de dormir, pedindo que a mãe estivesse sempre sentada do lado do Papai do Céu.

         Neste ano, aprendendo a letra p, fez a pergunta na hora do almoço:

         – Vovó, meu pai morreu, foi pra guerra ou foi embora com outra mulher?

         – Quê, criaturinha!?

         – Na aula, quatro não têm pai: A Rosa, o pai morreu tuberculoso; o do Ciríaco, foi para a guerra e nunca mais voltou; o do Orlando e o da Celina foram embora com outra mulher. E o meu?

         – O seu... bem... morreu também.

         – Ah! Que mentirosa a dona Mariquita, avó do Chico. Disse que eu nunca tive pai. Ela fuma aquele cachimbo fedorento que deve ter feito mal pros miolos dela. Para a gente nascer se precisa de um pai.

         Quincas discursou com categoria. Pensei: meu neném cresceu! Obrigada, meu São Joaquim, meu São José!

         Naquela tarde, véspera de Natal, ele brincou a tarde inteira. Jogou bola com os filhos da dona Dinda, fez-me o questionário cotidiano, leu pela centésima vez o livrinho ganho da professora por ter tirado o primeiro lugar, jantou sopa de verduras com pão, rezou, se preparou para dormir. Antes de deitar colocou o calçado na janela da cozinha.

         – O que você espera que Papai Noel traga para você, Quincas? (o que eu ia dar estava bem escondido: uma piorra, um livro de história, uma patinete, comprados com muito amor e pouco dinheiro).

         Parado na minha frente, a cara de fuinha, o olhar estrábico, o sorriso banguela, a doce voz infantil – a imagem de um deus-menino:

          – Minha avó (foi a primeira vez que ele me chamou assim), Papai Noel não traz presente. São os pais e avós que compram ou fazem. Eu não quero presentes. Botei minhas botinhas na janela porque é Natal e Deus nasce sempre, para ele saber que aqui mora um neto com a avó e que o neto gosta muito da avó. Ele vai ler no meu sapato.

          Ergueu os bracinhos finos, levou as mãos ao meu rosto, acariciando-me a face:

           – Boa noite, minha avó Sara!

          Foi para o quarto. Olhei-o até entrar e fechar a porta. Fiquei parada, sentada na minha cadeira predileta não sei por quanto tempo. Quando dei por mim estava com um sorriso escondido nos lábios, o avental molhado, a minha face também, a mão levantada e ainda ouvi no silêncio da sala minha voz:

          – EU QUERO!     

 

                                                                     

 Novo Hamburgo - 2003

 


 IONE JAEGER (Ione Maria Rocha Jaeger). Nasceu em Salvador/BA, vive em Novo Hamburgo há 59 anos, faz poesias e outros escritos para cumprimentar a vida. Tem seis livros editados.  Premiada no teatro - Melhor Texto Inédito - em NH e no Paraná. Letrista no CD Momentos Reticentes, reggae, gravado pela Banda Mundo Y. Idealizou, criou e fundou a Associação Cultural de Amigos das Artes - ACAART, em NH, 1997. Organizadora da Coletânea Onde os Poetas se Encontram, I, II. e III edição.

PATRONA da 24ª Feira Regional do Livro de Novo Hamburgo, 2006. Membro da Academia de Letras, Ciências e Artes Castro Alves, POA/RS – Cadeira nº 19 – Vianna Moog; Membro da Academia de Letras de Ribeirão Preto/SP – Cadeira Augusto dos Anjos. Sócia Correspondente da Casa do Escritor e do Poeta de Ribeirão Preto CPERP/SP; Sócia da Casa do Poeta Brasileiro – POEBRAS e da Casa do Poeta Rio-Grandense – CAPORI. Membro do Clube dos Escritores de Piracicaba/SP, Cadeira Leonor Bonsi Piselli.

Criado em 13/07/06, no Calendário Municipal o Dia do Ativista Cultural, foi escolhida a data do seu nascimento (13 de maio) em homenagem ao Ativismo Cultural que desenvolve há 10 anos.

Professora, Especialista em Educação, graduada em Pedagogia (1974), pós-graduada em MTE (Métodos e Técnicas de Ensino (1979), Faculdade de Educação FEEVALE/ NH.  Coordenou o Movimento da Catequese na Catedral Basílica São Luiz Gonzaga de Novo Hamburgo (1991 a 1994) . Aposentada – 1983 SEC/RS


 

Fonte: Texto enviado pela autora por e-mail.

 

Ilustrações: Silvana Santos