Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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28/05/2009 (Nº 28) A ESCOLA E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL CONTEMPORÂNEA: A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS DE ORIGEM ANIMAL
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A ESCOLA E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL CONTEMPORÂNEA

A ESCOLA E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL CONTEMPORÂNEA: A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS DE ORIGEM ANIMAL

 

THE SCHOOL AND THE CHALLENGES OF CONTEMPORARY ENVIRONMENTAL EDUCATION: THE PRODUCTION OF FOODS OF ANIMAL ORIGIN

 

Rossano André Dal-Farra

Licenciado em Ciências Biologia (ULBRA). Médico Veterinário (UFRGS). Mestre em Zootecnia (UFRGS). Doutor em Educação (UFRGS). Professor, Pesquisador e Assessor Pedagógico na Universidade Luterana do Brasil. Atua no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da ULBRA.

 

RESUMO – A produção intensiva de alimentos de origem animal tem sido discutida atualmente em função da sua interface com os discursos relativos à proteção do ambiente e à defesa do bem estar animal, principalmente diante dos desafios enfrentados para abastecer cidades cada vez mais populosas como temos no Brasil. Com base nestes aspectos, este texto tem como objetivo trazer este debate para a Educação, buscando problematizar o tema e a suas repercussões no Ensino de Ciências e na Educação Ambiental.

 

Palavras-chave: Criação de animais, Ensino de Ciências, Educação Ambiental

 

ABSTRACT – The intensive production of foods of animal origin has become the object of current discussions due to the interface it has with the discourses related to environmental protection and to animal rights, especially in the light of the challenges faced to supply food to ever increasing urban populations, as observed in Brazil. Based on these aspects, this text aims at inserting this discussion in the field of Education studies, with a view to investigating the issues concerning the theme and the repercussions thereof to the teaching of Sciences and to Environmental Education.

 

Key words: Science Education, Environmental Education, Livestock

 

INTRODUÇÃO

 

Mesmo que as pessoas possam ter gostado dos animais desde sempre,

a história nos ensina que elas gostaram deles de formas profundamente diferentes

sob condições históricas diversas (FRANKLIN, 1999, p. 53).

 

A decisiva intervenção do ser humano no ambiente em que vive, bem como os reflexos deste processo sobre a vida na Terra, suscitam um amplo debate na atualidade a respeito da proteção do ambiente e da defesa do bem estar das outras espécies de animais que convivem conosco, mormente em relação aos conflitos deste discurso com as necessidades de produção de alimentos em grande escala para o abastecimento de cidades cada vez mais populosas.

O discurso ambiental tem sido cada vez mais inserido na contemporaneidade, como pode ser observado a partir dos reflexos resultantes de eventos como a Conferência da ONU para o Ambiente Humano de 1972, o Programa Internacional de Educação Ambiental de 1975 pela Conferência de Belgrado, a Conferência Intergovernamental de Educação Ambiental de Tbilisi em 1977, e a Conferência Internacional sobre Educação e Formação Ambiental da UNESCO em Moscou no ano de 1987, que ratificou a necessidade de introduzir o tema na educação formal. E mesmo que as preocupações com o ambiente ganhem matizes diferenciados em relação ao grau admitido para a intervenção do ser humano na utilização dos recursos naturais, se torna inegável que, nas últimas décadas, há um maior espaço para a discussão destes temas, tanto na mídia, como na escola (DAL-FARRA, 2007).

Este processo se corporificou ainda mais com a institucionalização da Educação Ambiental no Brasil, cristalizada por ações efetivas do Ministério da Educação desde 1991 até o período atual, destacando-se a Portaria 678, na qual o MEC institui que os currículos de diferentes níveis devem contemplar conteúdos relativos a Educação Ambiental, assim como a ampliação das ações administrativas e pedagógicas nas últimas décadas, como pode ser observado com a inclusão do tema Meio Ambiente de forma privilegiada nos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1997 e 1998, assim como em documentos importantes como a Resolução No. 13 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) de 7 de abril de 2006, a respeito da Educação Ambiental e a sua operacionalização na Educação Brasileira (BRASIL, 2006).

Este cenário suscita diferentes posicionamentos em relação ao papel do ser humano frente aos outros seres que coabitam o planeta conosco, da mesma forma que levanta uma questão crucial a ser debatida pelos educadores brasileiros, considerando as peculiaridades de um país agropecuário como o Brasil, bem como as suas profundas carências em relação aos aspectos ambientais resultantes, principalmente, da implantação de um processo acelerado de desenvolvimento no século XX sem que houvesse um planejamento prévio.

Diante destes aspectos, o objetivo deste texto consiste em trazer este debate para a educação, buscando problematizar a questão por meio da reflexão a respeito das abordagens que este tema pode suscitar no Ensino de Ciências e, de forma mais ampla, nos Programas de Educação Ambiental, considerando a profunda escassez de publicações que há em torno deste tema.

 

ANIMAIS DE PRODUÇÃO

 

A criação de animais para a utilização como produto de consumo acompanha a história da humanidade, alimentada por discursos diferentes em diferentes culturas. Entre a categoria de animais que servem de alimento, temos um conjunto de seres (principalmente herbívoros) domesticados pelo ser humano há muitos séculos. A civilização européia, chega a afirmar Thomas (1984, p. 25), seria impossível sem os animais de produção.

Ao longo do século XX, ocorreram expressivas alterações no sistema de produção de alimentos de origem animal inspiradas pelo fordismo, provocando grandes transformações neste ramo produtivo e no cenário rural/urbano como um todo. Franklin (1999, p. 39-40) comenta a respeito do tema elencando os seguintes aspectos que alavancaram este processo:

·       Ampliação das áreas para pasto no Novo Mundo, resultando num maior potencial para a produção de alimentos no globo, permitindo assim a produção em grande escala.

·       Desenvolvimento técnico-científico permitindo acondicionamento e armazenamento de carne pela refrigeração, facilitando a comercialização a distâncias maiores e proporcionando um incremento no consumo de carne no mundo.

·       Desenvolvimento técnico-científico gerando uma produção mais especializada e industrial de carne, associada com a comercialização do produto a preços mais baixos.

·       Concentração dos processos de abate e beneficiamento da carne, resultando em linhas de produção mais otimizadas e, principalmente, separando estes processos dos grandes centros urbanos.

Este processo culminou no século XX com a expansão da indústria de produtos de origem animal como carne, leite, ovos e produtos de pesca, inseridos na lógica intensiva de produção articuladas com os conceitos do fordismo (FRANKLIN, 1999, p. 5), no qual a racionalização da produção e o processo de divisão do trabalho alavancaram a produtividade (HARVEY, 1992, p. 121).

No período pós-guerra, houve uma transformação absoluta na vida cotidiana das pessoas, tanto na comunicação, quanto em relação às indústrias em geral, ocorrendo a transformação dos hábitos alimentares pela introdução de produtos como a comida desidratada, os hortigranjeiros industrializados e as carnes com enzimas visando alterar o sabor (HOBSBAWN, 1994, p. 260).

Neste sistema de produção, os animais deixam de receber alimentos e passam a ter insumos, deixam de ser tratados e passam a ser administrados, deixam de receber somente medicamentos individuais, e passam também a recebê-los na comida e/ou na água, além de serem avaliados por números ou índices. Tal incremento da indústria da produção animal teve um grande impacto na vida social da segunda metade do século XX. Neste mesmo período, as agroindústrias trouxeram grande desenvolvimento a algumas regiões do nosso país, e também possibilitaram a produção de alimentos em grande escala, viabilizando a oferta de proteína animal a custo reduzido para a população, especialmente no caso da carne de frango. Neste contexto, se consolidaram os sistemas intensivos de produção, gerando a oferta de alimentos em grande escala, abastecendo eficientemente as cidades que a cada dia se tornavam maiores e mais populosas.

Em decorrência desta nova conjunção de fatores, as representações de animais de fazenda se alteraram a partir da modernidade, deixando de serem baseadas na pequena produção e na ansiedade relativa a escassez, passando para questões como produção em massa, superabundância e, posteriormente, para as preocupações com o consumo exagerado e com a contaminação. Em termos de representação, os animais de fazenda deixaram de ser um ícone de segurança e saúde e tornaram-se símbolos de risco, de doenças e de poluição. No entanto, as “antigas” representações ainda se encontram nos produtos culturais (filmes, livros) destinados às crianças, devido à “impossibilidade” de colocar e traduzir estas novas representações dentro de histórias infantis (FRANKLIN, 1999, p. 127). Tais alterações, desembocando na solidez das agroindústrias ligadas aos produtos de origem animal, criaram novos significados para os animais de produção, que não mais se enquadram nas representações românticas de bucólicos galos cantantes da aurora, nem de bovinos solitários pastando tranqüilamente junto às casas, ou em duplas carregando, sonoramente, carroças com rodas de madeira em vielas de chão batido.

As transformações ocorridas no espaço urbano, que hoje concentra grande parte da população brasileira, têm como conseqüência o afastamento da população em relação aos meios de produção animal, criando uma cultura urbana que desconhece a intimidade dos processos de produção de alimentos e, principalmente, o que acontece no período decorrido entre a presença do animal vivo no processo produtivo e a sua chegada à mesa dos consumidores.

Deste modo, os habitantes das grandes cidades, especialmente as crianças e adolescentes, ignoram os meandros da passagem dos animais pelo frigorífico, assim como os demais procedimentos ocorridos até a embalagem do produto que descansa sobre as prateleiras no comércio, pois estes processos não possuem a visibilidade que possuíam na cultura da ruralidade que havia em décadas passadas.

Em uma cultura voltada cada vez mais para a urbanidade, prosseguimos construindo um olhar distinto para a nossa relação com os animais, com reflexos contundentes sobre as questões concernentes à Educação Ambiental.

 

REPRESENTAÇÕES DE ANIMAIS E SENSIBILIDADES CONTEMPORÂNEAS

 

Os animais se inserem em nossas vidas de forma complexa, pois alguns são criados com o máximo de zelo, como se fossem membros da família, outros são apenas tolerados diante da sua importância para o ecossistema, assim como há aqueles animais que exterminamos por serem fruto do desequilíbrio que criamos ao transformar o cenário urbano com nossas construções e devastações, e ainda temos aqueles que desenvolvemos exclusivamente para nossos fins, e que são destinados para o abastecimento da nossa população. Em meio às diferentes possibilidades de inserção dos animais em nossas vidas, fazemos as nossas escolhas: defendemos o cuidado dos animais que são importantes para nós, olhamos para alguns com maior interesse do que para outros e, fundamentalmente, absorvemos as representações cuja ressonância com nossos valores proporcionam maior engajamento com os discursos que circulam no tecido cultural, inclusive a necessidade que temos em utilizar produtos de origem animal para nossa alimentação. Diante da profusão de significados e representações de animal veiculados nos discursos aos quais estamos submetidos, escolhemos aquilo que mais nos faz sentido, aquilo que tem ressonância em nossos valores e na nossa história, incluindo as narrativas que ouvimos desde criança a respeito dos animais, assim como as atividades escolares, e as representações locais/regionais de onde crescemos e de onde estamos. Muitas vezes, os atributos que conferimos aos animais deslizam entre o dócil e o perigoso, entre o que deve ser cuidado e o que deve ser eliminado, colocando o ser humano em posições distintas deste embate, conforme a espécie e o significado atribuído a ela no contexto cultural em questão. (DAL-FARRA, 2003. p. 5).

Em relação aos animais de produção, este aspecto se torna ainda mais decisivo já que a criação de bovinos, ovinos, caprinos, suínos, entre outros, impulsiona a economia de cidades brasileiras, gerando uma teia de representações destes animais que emergem de significados muitas vezes ambíguos em relação ao que fazemos e ao que deveríamos fazer com eles.

A uma ruralidade já acostumada com os processos de obtenção de produtos de origem animal em um país com extensas fronteiras a serem abertas, segue-se, especialmente a partir da segunda metade do século XX no Brasil, uma cultura mais urbana, e cada vez mais destacada de práticas como, por exemplo, o abate de animais.

As histórias infantis na literatura Ocidental têm as suas próprias representações de animal de fazenda, sendo que os textos destinados às crianças remetem para a presença de propriedades rurais em horizontes bucólicos, onde os animais passeiam livremente em campos verdejantes sob um sol acalentador, harmonicamente relacionados ao ambiente e às práticas rotineiras do local.

Em matéria da revista Recreio1, as chinchilas são apresentadas como animais de companhia, havendo apenas uma leve referência a possível utilização para obtenção de peles como demonstra o texto: “por causa de seu pêlo macio e quentinho, as chinchilas já foram muito caçadas para fazer casacos de pele. Atualmente, com o seu jeito fofo e manso, são comuns como bichos de estimação e vivem no mundo inteiro”.

Mesmo apresentando consistentes informações a respeito dos animais, apoiadas por elaborada produção fotográfica, a referida revista possui dificuldade para vincular os animais aos seus produtos, algo que é possível observar também em outras publicações.

Para Franklin (1999, p. 34) quatro temas chave podem caracterizar a relação animal-ser humano no início do século XX: a sentimentalização em relação aos animais, o papel do Estado Moderno na regulação desta relação para assegurar um comportamento “civilizado” do ser humano em relação a eles, a demanda pelos direitos animais, e um incremento da importância dos animais nas atividades de lazer do ser humano.

Segundo Harvey (1992, p. 257) nas décadas de 70 e 80, a compressão espaço-tempo teve grande impacto sobre a vida cultural e social, proporcionando que a sensibilidade contemporânea conduzisse a um olhar mais simpático a movimentos culturais e filosóficos, mesmo que estes se apresentassem confusos. Para o autor (idem, p. 258-259), as transformações rápidas que a sociedade têm experimentado favorecem as quebras de consenso e a diversidade de valores nas pessoas.

De forma semelhante ao que ocorreu a partir da década de 70 do século XX em relação aos movimentos ecológicos, as últimas décadas foram marcadas por profundas mudanças nas relações sociais, se constituindo em momento histórico profícuo para o impulso de movimentos em defesa das mulheres, contra a discriminação étnica e demais ações pró-direitos humanos, provavelmente como prolongamentos de tentativas de valorização das especificidades dos grupos a partir do reconhecimento de(as) diferença(s), e de maior visibilidade dos prejuízos causados pelas conseqüências de as desconhecermos.

Em relação ao presente tema, a própria Declaração dos Direitos dos Animais foi lançada em Bruxelas justamente em 1978, o que pode ser considerado, de certa forma, como uma extensão deste processo de reconhecimento das necessidades do “outro”. Para Harvey (1992, p. 19) tal preocupação com a ética e com a dignidade do outro neste período assinala uma ampla e profunda alteração nos sentimentos das pessoas, surgindo novas sensibilidades contemporâneas.

Discorre Franklin (1999, p. 127), entretanto, que nos últimos tempos, um olhar - altamente centrado no urbano - de sentimentalismo em relação aos animais vem sendo acompanhado pelo que pode se considerar seu oposto, ou seja, a tendência de exploração dos animais para a produção cada vez mais intensiva, industrialmente controlada, de carne, ovos e de leite, longe do olhar sensível das pessoas.

Este tema é de vital importância no Brasil, país no qual a divisão de fronteiras agrícolas e de áreas de preservação ainda esbarra em uma teia burocrática de grandes dimensões, gerada pela dificuldade de controlar um território imenso e rico em biodiversidade animal e vegetal.

No entanto, é notória a contribuição da agroindústria no abastecimento das cidades cada vez mais populosas, com a crescente dissolução das áreas rurais pela expansão da construção civil em áreas anteriormente destituídas de habitações humanas. Um estado como São Paulo, e os seus mais de 40 milhões de habitantes, possui uma demanda elevadíssima de quantidade de alimentos, traduzindo-se em uma imensa área necessária para tal produção. E na condição em que o país se encontra, com mais de 200 milhões de bovinos, ou seja, um número maior do que o de habitantes, este setor representa um aspecto fundamental da economia do país.

Ao lado desta preocupação está a necessidade de confrontarmos esta perspectiva com os princípios da Educação Ambiental, considerando que a inserção da pecuária em determinadas regiões tem sido alvo de preocupação em relação à preservação dos biomas brasileiros.

Em momentos de crise na produção de alimentos para uma crescente população, de barreiras sanitárias que se constituem em entrave para a exportação, e de desequilíbrios econômicos existentes entre várias partes do mundo, emergem as discussões a respeito da preservação de ambientes naturais e da manutenção da sustentabilidade de comunidades.

 

DILEMAS NA SALA DE AULA

 

A professora é um amor. Na sala, estampas coloridas mostram animais de todos os feitios. É preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve toda a fauna, protegendo-a. Eles têm direito à vida, como nós, e além disso são muito úteis... devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo?

- Entendi. A gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pêlo, o couro e os ossos (Extraído do texto “Da utilidade dos animais” de Carlos Drummond de Andrade).

Neste texto de Drummond, vemos explicitado o dilema da inserção dos animais de produção na escola, especialmente no Ensino Fundamental.

Nas salas de aula deste continental país, caracterizado como um mosaico de climas, topografias, solos, meios de produção e principalmente, condições culturais, sociais e econômicas, tratar deste assunto de forma destacada da cultura da região em que os alunos estão inseridos e descontextualizada da inserção deste setor na economia do local em que se encontra, trará inúmeras dificuldades para o docente, assim como não atenderá aos objetivos da escola como espaço de aprendizado significativo, principalmente pela evidente escassez de produções tratando desta problemática, em que pese a importância da mesma.

Para que as práticas pedagógicas se tornem efetivas, precisamos compreender a relevância destas atividades na vida das pessoas, especialmente para professores que atuam em escolas com alunos oriundos do ambiente rural, sabendo que as práticas de campo que os mesmos participam, estão inseridas culturalmente de forma muito arraigada, pois o sustento de suas famílias depende delas. No meio urbano, as crianças conhecem os produtos e os animais, mas poucas vezes observam os processos que ocorrem neste hiato representado pelos métodos de tecnologia da carne, desde o abate, até a chegada dos animais à nossa mesa.

É importante que o professor compreenda que o aluno está influenciado por influências sócio-culturais que o constituem, e que as suas experiências estão inerentemente associadas com os seus modos de perceber, vivenciar e interpretar o mundo (OLIVEIRA, 1997, p. 10-11). Em relação ao ambiente, a escola tem desempenhado um papel fundamental na tomada de consciência que gradativamente tem atingido os demais recantos da sociedade contemporânea.

A partir da década de 70 do século XX, muitas pesquisas foram realizadas demonstrando algumas limitações dos livros didáticos, chegando até a avaliação institucional de 1994 das publicações distribuídas nas escolas públicas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), cujos resultados podem ser observados através do aprimoramento destas publicações, especialmente no âmbito conceitual e metodológico (DELIZOICOV et al., 2002, p. 37-38).

Nélio Bizzo (1996) relata, em artigo publicado na Revista Ciência Hoje, a avaliação de livros de Ciências utilizados nas escolas realizada no período. Devidamente ilustrado, o artigo apresenta uma consistente lista de erros encontrados nas publicações, desencadeando uma grande reformulação destes materiais, e contribuindo para o aprimoramento deste recurso de ensino e aprendizagem.

Mesmo que o professor não deva considerar o conteúdo do livro didático como autoridade absoluta, sabemos que a repercussão deste recurso na veiculação de saberes reveste de grande importância o processo de escolha das publicações utilizadas na escola (KRASILCHIK, 2004, p. 65-67). Hoje, o livro didático se constitui em adequado material de apoio para consultas pelo professor, somando-se aos demais materiais que o auxiliam na construção do seu trabalho (BIZZO, 2002, p. 66).

Em prospecção realizada em 17 livros didáticos de Ciências destinados a alunos de 1ª. a 4ª. Séries, publicados entre 1998 e 2003, foram analisados conteúdos versando sobre os animais de produção, cujos resultados indicaram as dificuldades em conciliar as práticas da agroindústria com as questões da educação ambiental e do bem estar animal, em vista de uma abordagem que tende a apresentar os animais de produção, ou animais de fazenda, em representações próximas a uma ruralidade afeita a pequenas propriedades, com produção para subsistência, e que desvincula o animal de seu produto. Há nestas publicações, um hiato entre a criação dos animais e a utilização de seus produtos para o consumo, caracterizado pela ausência de menções aos processos de abate e destino das partes da carcaça dos animais (DAL-FARRA, 2007). Tal constatação não se constitui em crítica às produções didáticas, tendo em vista a dificuldade em conciliar estes aspectos, especialmente em produções que se destinam às crianças. Entretanto, a problematização destas questões permite que possamos tratar este assunto dentro de uma abordagem sistêmica, o que pressupõe um diálogo constante entre os posicionamentos diversos que constituem a sociedade.

Portanto, este tema perpassa diferentes conteúdos ministrados no Ensino Fundamental e Médio, estando vinculado ao desenvolvimento de todas as regiões do país, que precisam de projetos consistentes de médio e longo prazo para o desenvolvimento sustentável de acordo com as suas peculiaridades. E sabemos que tal investida não pode prescindir da formação de alunos que entendam a questão de forma ampla, para então desenvolver caminhos sólidos no âmbito econômico, e seguros do ponto de vista ambiental.

O intenso trabalho de Educação Ambiental que tem sido feito no Brasil precisa lançar as suas bases nos mais amplos domínios das atividades humanas, conciliando necessidades imediatas com a visão de futuro, e a convivência com os animais de produção e a sua inserção na vida diária dos brasileiros torna imprescindível a discussão desta temática em nossas escolas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

As questões a respeito da defesa do bem estar animal e da proteção do ambiente, têm sido postas em choque com as demandas relacionadas com a produção de alimentos de origem animal, suscitando a necessidade de realizar um amplo debate sobre o assunto na cultura contemporânea, embora o mesmo não esteja sendo contemplado em sua plenitude, especialmente pela necessidade de construirmos processos pedagógicos que resgatem as questões da comunidade em que a escola está inserida, para então, podermos abordar questões tão complexas como os animais de produção.

É imprescindível reconhecer que estamos imersos neste nosso tempo, em que observamos alterações nas relações do homem com os animais, mas também agimos nestas transformações e somos tocados por elas. Não somos apenas agentes, mas também pacientes, não apenas espectadores, mas também atores, sem deixar de sermos nós mesmos.

Nós mesmos que diante de nossas origens culturais estamos tão longe e tão perto dos animais. Nós, seres urbanos, que moramos uns sobre os outros, vivemos distantes de florestas, transportamos nossas coisas em máquinas, assim como nós mesmos e, quando olhamos para o lado, lá está um animal, assim como no momento em que abrimos a geladeira e encontramos o seu produto. Da mesma forma, ao olharmos no espelho todas as manhãs, nos deparamos com um outro animal, que, aliás, freqüentemente julgamos conhecer muito bem, mas que ainda possui um longo processo pela frente, visando restabelecer um equilíbrio entre os diferentes aspectos que o constituem, assim como atenuar, e até mesmo dissipar as contradições que o tornam um sujeito complexo diante de si mesmo e de todos com os quais convive.

 

Notas

1 - “Ligeira e muito fofa” – Revista Recreio – 4/4/2002.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ilustrações: Silvana Santos