Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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08/12/2007 (Nº 22) A LINGUAGEM E A CONSTRUÇÃO DOS SIGNIFICADOS ACERCA DE TEMAS AMBIENTAIS NO ENSINO DE CIÊNCIAS
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Educação Ambiental em Ação 22

A LINGUAGEM E A CONSTRUÇÃO DOS SIGNIFICADOS

ACERCA DE TEMAS AMBIENTAIS NO ENSINO DE CIÊNCIAS

 

Márcia dos Reis

Mestre em Ensino de Ciências da Saúde e do Ambiente/UNIPLI

Professora da SEE-RJ

Antonio Carlos de Miranda

Doutor em História e Filosofia da Ciência/UNICAMP

Professor do Curso de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências da Saúde e do Ambiente/UNIPLI

e-mail: mirantam@ig.com.br

Luiza Rodrigues de Oliveira

Doutora em Educação/USP

Professor do Curso de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências da Saúde e do Ambiente/UNIPLI

e-mail: luiza.oliveira@unipli.com.br

Endereço para correspondência: Rua Visconde do Rio Branco, 123 – Centro- Niterói- RJ

CEP: 24020-000

 

   

RESUMO

Este artigo relata os resultados de uma pesquisa que tinha como finalidade entender como diálogo constituído em sala de aula pelos atores escolares pode favorecer a aprendizagem. O referencial teórico apresentado é o discurso vigotskiano e seu conceito de linguagem, em sua interface com o Ensino de Ciências. Para tanto, apresentamos algumas falas de alunos do segundo segmento do Ensino Fundamental, de uma escola pública da cidade do Rio de janeiro, com a finalidade de levantar e analisar, por meio da Análise do Discurso de tendência crítico-social, qual o significado das palavras relacionadas à temática ambiental e  sua relação com  situações do cotidiano dos alunos. Concluímos que o universo lingüístico e textual apresentado pelos alunos está interligado ao mundo que os rodeia e que este universo é, portanto, necessário para identificar seus valores e conceitos em relação ao meio ambiente. Assim, esses conceitos, muitas vezes, cristalizados pelo seu uso lingüístico poderão ser discutidos, identificados e confrontados com os apresentados em Educação Ambiental , resultando não apenas mais clareza, melhor entendimento, mas, principalmente, construindo com mais profundidade as relações dos alunos com o meio ambiente, transformando-os em cidadãos eticamente responsáveis pela sua preservação.

 

Palavras-chave: Linguagem; Meio Ambiente; Escola; Análise do Discurso.

 

1. INTRODUÇÃO

 

O objeto de estudo deste artigo é a análise de como o diálogo mantido na sala de aula pode favorecer a aprendizagem que, segundo Vygotsky (1987), ocorre quando o aprendiz  torna seu, internaliza o discurso alheio, em interações sociais e interpessoais. Ao mesmo tempo, o professor deve proporcionar ao aluno um saber prático sobre a linguagem, como aponta Rangel (1988). Logo, a linguagem constituída deve ser adequada à realidade e ao interesse do aluno. A partir dela, será produzido um conjunto de conceitos, categorias, termos e classificações que vão possibilitá-lo distinguir os fatos, falar e pensar sobre eles. Nesse sentido, esta investigação objetiva trazer à tona os conceitos lingüísticos construídos, a partir do contexto cultural e social, pelos alunos, de temas ambientais[1] e da linguagem científica.

Para tanto, realizamos uma descrição do conceito de linguagem, a partir da teoria de Vygotsky, buscando uma interface possível com o Ensino de Ciências. Após a inserção teórica, apresentamos algumas falas de alunos do segundo segmento do Ensino Fundamental, de uma escola pública da cidade do Rio de janeiro, com a finalidade de levantar e analisar, por meio da Análise do Discurso de tendência crítico-social, qual o significado das palavras relacionadas à temática ambiental e  sua relação com  situações do cotidiano dos alunos.

           

2. O CONCEITO DE LINGUAGEM E O ENSINO DE CIÊNCIAS

            É a partir da análise da relação de poder estabelecida na Modernidade, que M Bakhtin constrói o seu conceito de linguagem. O significante é também determinante para Bakhtin e Vygotsky, porém esse não remete à singularidade de um sujeito existente nele mesmo, mas, sim, ao sujeito social. Bakhtin, filósofo da linguagem, nos permite entender um conceito de linguagem próximo ao de Vygotsky, além de ser o autor referência para a análise das falas que realizaremos mais adiante. Bakhtin (1988), em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, critica tanto o discurso subjetivista – aquele da psicanálise, que adere a linguagem ao sujeito (mesmo que determinado pelo Inconsciente) – quanto aquele, por ele denominado de objetivismo abstrato, que dá prevalência ao significado na construção da linguagem e separa a língua (aspecto social) da fala (aspecto individual), proposta de Saussure. Pois, considera, devido ao seu aporte teórico marxista, que a Linguagem não se constitui fora das condições socioeconômicas objetivas; os seus fundamentos são sociológicos[2].

Segundo Bakhtin, o discurso não deve ser entendido para além da situação concreta em que se constituiu. O enunciado pertence ao universo das relações intersubjetivas, enquanto a palavra é uma unidade da linguagem. Assim, o enunciado se constitui num contexto que é sempre social e é essa compreensão, segundo Bakhtin, que nos permite a “percepção da fala como um todo”.

Para Vygostsky (1987), a linguagem é a principal mediadora entre o sujeito e o objeto do conhecimento e, além disso, a palavra tem um sentido dicionarizado e um sentido particular ligado a certos enlaces que vão se fazendo a todo o momento: uma intermediação entre os significados emitidos e os sentidos de cada um. Tais enlaces são as determinações histórico-sociais, a superestrutura, que dá opacidade à linguagem, ao discurso.

           Vygostsky representa para as discussões estabelecidas na área de Ensino de Ciências a possibilidade de ruptura com a teoria piagetiana, que nos anos 70 e 80, foi o grande aporte teórico das práticas em ensino de ciências, mas que evidencia o sujeito da razão na construção do conhecimento; enfatizando um processo de aprendizagem completamente desvinculado do contexto social.

           Durante os anos da Ditadura Militar, como expressão de resistência, e, sobretudo, após a Abertura Política dos anos 80, em que a análise crítica tornou-se referência acadêmica no Brasil, discursos, tais como o de Vygostky, vêm se tornando referência na Educação, ainda que timidamente na área de Ensino de Ciências.

                      O conceito de “zona de desenvolvimento proximal” (ZPD) é estruturante, segundo o autor, do processo que se estabelece entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Segundo Vygotsky,  a ZPD é o intervalo entre o conhecimento já adquirido pela criança, aquilo que ela já é capaz de realizar sozinha e aquele conhecimento que para se efetivar depende da participação do outro mais experiente. Tal conceito valoriza o lugar do professor, não como aquele que deposita conhecimento no aluno, mas como um mediador da construção do conhecimento pelo aluno.

 

O paradigma esboçado sugere, assim, um redimensionamento do valor das interações sociais (entre s alunos e o professor e entre as crianças) no contexto escolar. Essas passam a ser entendidas como condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente aquelas que permitam o diálogo, a cooperação e troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vista divergentes e que implicam na divisão de tarefas onde cada um tem sua responsabilidade que, somadas, resultarão no alcance de um objetivo comum. Cabe, portanto, ao professor não somente permitir que elas ocorram, como também promovê-las no cotidiano das salas de aula (REGO, 2000, p. 110). 

 

                   Logo, torna-se relevante promover uma análise dos conceitos dos alunos com a finalidade de auxiliar a prática do professor que atualmente é questionada sobre a demanda produzida por essa nova relação entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento. Isso posto, o foco dessa investigação centra-se na conceituação construída pelos alunos a partir de palavras relacionadas à temática ambiental, e às diferentes formas de manifestações da linguagem e à sua relação com situações do cotidiano. Esse foco ganha destaque fundamentalmente pelas questões ambientais provocadas pelas mudanças econômicas que ocorreram nas últimas décadas: a ‘terceirização’ da economia, o hiperconsumismo, a revolução na informação tecnológica, a internacionalização da indústria. Consequentemente, reformulando as estruturas de produção e de consumo, e as divisões sociais do trabalho. Resultando danos e agravos ao meio ambiente, poluição, escassez hídricas, fome, conflitos ambientais e fundiários.

 

3. METODOLOGIA

O presente estudo enfocou o papel da linguagem como instrumento de mediação transformadora na vida do homem, que ao dominá-la está preparado para enfrentar as questões sociais, particularmente, as que envolvem o meio ambiente. Teve como público-alvo 35 alunos do Ensino Fundamental, de uma turma de 5a série, do Colégio Estadual Oscar Clark, em São Vicente de Paulo, Araruama, RJ.

A metodologia da pesquisa foi qualitativa de caráter exploratório descritivo e foi organizada por meio de questionários, redações, fotografias e desenhos. Os alunos participaram, formulando os seus conceitos sobre os seguintes temas: Meio-Ambiente, Vida, Ecologia, Biosfera, Natureza, Comunidade. Utilizou-se, em diferentes contextos, a polissemia, estabelecendo-se semelhanças e diferenças de sentido de uma mesma palavra. Levou-se em conta os processos semânticos (denotação e conotação), durante a observação e comparação da estrutura das frases, reconhecendo-se o repertório pessoal de cada um e do grupo no qual estão inseridos.

Essa técnica de análise dos dados é denominada análise do discurso e é a teoria de Bakhtin que fundamenta nossas análises. Para esse autor, os operadores lingüísticos trazem na cena do discurso a relação entre a realidade social e as representações da mesma.

Vygotsky e Bakhtin (...) procuram, pois, na luta contra a alienação, o espaço do sujeito.  Esse espaço foi procurado por Bakhtin através da mediação da linguagem e das questões ideológicas. Seu objetivo foi desvendar as relações entre a realidade (infra-estrutura) a construção dessa realidade no interior da atividade mental dos indivíduos (super-estrutura) (FREITAS, 1995, p. 158).

 

 

O CENÁRIO

São Vicente de Paulo é o 3o Distrito de Araruama. Possui 228 km2 e uma população de 19.000 habitantes. Nele, está situada a Lagoa de Juturnaíba, na divisa com o Município de Silva Jardim. Esta lagoa de água doce é responsável pelo abastecimento de água potável para toda a Região dos Lagos. Transparente, dependendo da estação do ano, possui muitos peixes. “Apresenta uma vegetação conservada. Em suas margens está localizada a Reserva Ecológica de Poço das Antas, habitat natural do mico-leão-dourado, espécie em extinção” (PREFEITURA MUNICIPAL DE ARARUAMA, 1992).

Por ser um distrito rural, onde a população vive em fazendas, chácaras, pequenos sítios e casas humildes, os trabalhadores enfrentam muitos problemas, dentre eles, o pouco acesso a terra. Segundo dados da Secretaria do Colégio (2004), 60% dos pais não completaram o ensino fundamental. O alcoolismo, a carência financeira, a gravidez na adolescência, as longas distâncias dos bairros até o centro, a falta de transporte, a colheita (que acontece nos meses de outubro a novembro) e a tarefa de terem que tomar conta dos irmãos menores, para que os pais possam trabalhar, são fatores que contribuem para que os alunos abandonem a escola, produzindo assim um abismo, que vai distanciá-los da sociedade letrada, impedindo-os de se prepararem para enfrentar os problemas sociais e os ambientais.

Vale assinalar que um dos pressupostos da pesquisa é que a estrutura social e a vida social constroem entendimentos, visões de mundo e revelações dos conceitos ambientais. E, fundamentalmente, a partir da construção desses conceitos, ancorados na estrutura e na vida social, e que ao serem revelados pelo domínio da palavra com seu caráter vivencial tornará explicitas as marcas ideológicas presentes na condução, nos encaminhamentos e nas propostas de soluções dos problemas ambientais.  Nesse quadro, percebe-se a grande importância da linguagem e da materialidade da estrutura e vida social na construção de temas que envolvem as questões ambientais.

Partindo da visão de pesquisadores, entre outros, Ferreira (2003), Porto Gonçalves (2004), Viola (2001), Veiga (2005) e Leis (2001) que analisam o meio ambiente, o desenvolvimento, a “desordem global da biosfera” e os crescentes problemas que afetam o planeta, a pesquisa focalizou os conceitos que os alunos construíram sobre temas ambientais, confrontando-os sob a luz da linguagem científica.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO

A seguir, apresentamos as principais frases dos alunos, em relação aos temas propostos:

 “A natureza é tudo.” “A natureza é tudo pra gente.” “A natureza é uma coisa muito importante para nós (...).”

            As falas acima indicam desconhecimento do conceito, por meio da utilização de pronome indefinido e da palavra coisa, que indica “objeto sem nome ou cujo nome não ocorre, não se quer ou não se pode denominar” (ROCHA e PIRES, 1996, p. 147). O discurso revela a incapacidade de definir o conceito investigado, o que continua sendo reafirmado nas falas seguintes:

“A natureza é como a vida.” “A natureza é o ar que a gente respira, as árvores, o vento, o sol, a chuva, as plantas, animais e flores.”

            Tais frases identificam natureza à vida, conceito também investigado, que é apresentado com conotação religiosa (“A vida é passageira, mas com Deus, eterna”, “A vida é especial para Deus”; “Cada um tem que agradecer um pouquinho a vida que tem e agradecer”), isso justifica a incapacidade de definir o conceito de natureza, pois se ela “é vida, é consequentemente Deus”, o que impede qualquer tipo de definição.

            E trazem, ainda, a idéia de que o ser humano não faz parte da natureza (é o ar, as árvores, a chuva etc. menos o homem), o que também se concretiza no discurso apresentado anteriormente: “É uma coisa muito importante pra nós”, essa frase nos revela a influência que o ser humano sofre da natureza, o que o coloca do lado de fora e submisso a ela e reforça o conteúdo religioso que permeia o discurso dos entrevistados.

 Para exemplificar, analisemos uma outra fala sobre o conceito de natureza: “É uma farmácia de Deus, com remédios muito melhores que os comprados”. Sendo assim, as frases, que indicam a preservação e o cuidado com a natureza, tal como,  Devemos preservar a natureza”, revelam  “temor a Deus”. 

            Numa outra vertente as seguintes falas: “A natureza é muito boa porque preserva os animais”. “É bela. Ela nos dá frutas e comida.” “A natureza é uma coisa que nunca pode ser destruída.” Apresentam a natureza desvinculada da presença dos seres humanos e de suas ações humanas[3], isto é, ‘preservada, provedora e indestrutível’.

Cabe lembrar Porto Gonçalves (2004), quando destaca a freqüência com que são citados, por aqueles que lidam com as questões ambientais, os modelos de relação entre homens e a natureza existentes em comunidades indígenas e sociedades orientais, por exemplo.  Esse procedimento, para esse autor, representa um pensamento utópico ou uma fuga dos problemas concretos dos nossos dias.

Identificamos similaridade dessa interpretação nas falas dos alunos. Nesse caso, natureza passa a significar harmonia ─ uma espécie de paraíso.  Ou ainda uma aproximação com a divindade em sua perfeição: um lugar indestrutível onde há harmonia, beleza, bondade, ‘frutas e comidas’.

É interessante assinalar que o termo ‘natureza”[4], visto como uma categoria em uma das vertentes marxista, representa e ganha significado quando se estabelece uma relação transformadora vinculada ao trabalho humano. Nesse sentido, representa um contraponto ao seu conceito humanista. No caso dos alunos enfocados pela pesquisa é a este conceito que suas falas mais se aproximam. Com uma grande ênfase na conotação religiosa. Além disso, como já foi citado, os alunos situam o ser humano afastado, mas, ao mesmo tempo, submisso à natureza. Nesse quadro, configuram-se semelhanças simbólicas de caráter místico religioso[5] entre a submissão à natureza e a submissão e o temor à Deus, similarmente, o crente deve manter-se afastado respeitosamente da divindade, assim como, da natureza.

            Em um outro momento, o discurso de desconhecimento se repete por meio da utilização de pronome indefinido e da palavra “coisa”, quando o aluno diz: “O meio ambiente é coisa muito importante para a gente.”

Esse desconhecimento pode estar associado as diferentes interpretações que foram forjadas, em relação ao termo ‘meio ambiente’, nas últimas quatro décadas, tais como: ‘recursos naturais’, ‘espaços naturais’, ‘provedor de sustento da vida’. Essas interpretações passam a associar a idéia de que a solução dos problemas ambientais encontra-se na “administração de recursos, o uso criterioso[6] de recursos naturais para que possam prover o máximo de benefício para a humanidade”. Numa outra interpretação: “o ambiente é muito mais do que ‘natureza’; é o mundo social, político, econômico e físico em que vivemos” (GREGORY, MARTIN, SMITH, 1996, pp. 126-7). Pode ainda ser caracterizado, segundo Vieira (1995), como ”o conjunto de componentes físico-químicos e biológicos, associado a fatores socioculturais suscetíveis de afetar, direta ou indiretamente, a curto ou longo prazos, os seres vivos e as atividades humanas no âmbito globalizante da ecosfera” (p. 49).

Em relação ao termo ‘comunidade’, as seguintes falas foram explicitadas pelos alunos: “Comunidade são muitas pessoas”. “Comunidade é a família’. “Uma parte de nós’. “Cidade”. “Várias pessoas que moram no mesmo lugar”. “Comunidade é  harmonia, paz, amar um ao outro, cada vez mais criando coisas, para que o mundo cresça cada vez melhor”.  “A comunidade é uma coisa que é como se fossem todos reunidos”.

            Algumas dessas falas novamente remetem ao discurso religioso[7], pois ‘comunidade’ é sinônimo de viver em harmonia, paz e amor ao próximo[8], discurso produzido pelo cristianismo, embasado numa moral centrada na culpa. Esta é uma idéia constituída na Modernidade, que produz uma subjetividade inteiramente dependente do outro.

 

O Cristianismo teria constituído uma outra concepção de subjetividade e de experiência ética, em cujo fundamento estaria a renúncia. Isso porque o cristianismo teria deslocado o eixo da experiência ética, isto é, a relação entre as figuras do mestre e do discípulo do plano horizontal para o vertical, inscrevendo então a assimetria que marcaria sempre a relação entre essas figuras na verticalidade. Constituiu-se com isso não apenas o mundo da transcendência, para onde foi enviado o diálogo vertical da experiência ética, mas também a separação hierárquica entre dois mundos, o celeste e o terreno, isto é, os reinos de Deus e dos homens (BIRMAN, 2000, p. 82).

 

Observa-se que o conceito de ‘comunidade’, com origem nas ciências sociais, apresenta muitos significados. Para Weber (1999), é o sentimento de ‘nós’ que representa a característica central de uma comunidade. Fundamentalmente, é na relação social que esta a origem do comportamento inspirado num sentimento subjetivo dos participantes no sentido de constituírem um todo. Weber (1999) define ainda ‘comunidade política[9]’ àquela em “que a ação social se propõe a manter reservados, para a dominação ordenada pelos seus participantes, um ‘território’ e a ação das pessoas que, de um modo permanente ou temporário, nele se encontram, mediante a disposição do emprego de força física, normalmente também armada”.

O sentido mais usual seria um grupo de pessoas que compartilham o mesmo espaço geográfico, além disso, podem possuir alguma forma de interdependência entre seus membros que facilitem e estimulem viverem na mesma área. Por outro lado, pode significar um grupo de indivíduos que apresentam características comuns, sem necessariamente viverem no mesmo território. Por exemplo, ‘comunidade acadêmica’, ‘comunidade da saúde’.

É importante assinalar a idéia de ”comunidades oposicionistas” defendida por Stuart Hall, a qual, “permite que os geógrafos trabalhem com a idéia de uma comunidade que é ‘imaginada’ no sentido de não estabelecida ou localizada espacialmente” (GREGORY, MARTIN, SMITH, 1996, p. 173). Esses autores ilustram essa idéia com o exemplo dos jovens que ao subverterem códigos e normas para afirmarem sua independência e individualidade constroem uma comunidade imaginária, em que roupas e estilo passam a ter um papel importante nessa construção.

Contrariamente, em uma outra vertente, defendida por Ferdinand Töennies, ‘comunidade’[10] passa a incluir um forte sentimento de pertencimento e compromisso mútuo entre seus membros, resultante da espontaneidade da vida social, baseada em uma cultura homogênea.  Para ele, como diz Paiva (2003), a convivência entre os membros de uma comunidade, apoiada em uma compreensão e concórdia ocorre pela interação recíproca, envolvendo a ‘participação de cada um na vida dos outros’.  Essa perspectiva de convivência, segundo Paiva (2003), “só pode se efetuar graças à língua comum. A linguagem seria a grande responsável pela expressão do afeto, dos costumes e da fé comum” (p. 69).

 É bom lembrar que esse termo ganhou em nosso país uma maior dimensão, principalmente nas regiões rurais, em razão da criação pela Igreja Católica das Comunidades Eclesiais de Base. Além disso, foi apropriado pelos políticos, gestores, arquitetos, governantes, etc. para legitimarem ações em nome do interesse público, nem sempre com esse fim.

Retornando as falas dos alunos, foi possível perceber ainda que algumas delas têm sempre caráter imperativo, que responde a uma verdade imposta pelo outro: “Devemos preservar a natureza” “Ambiente (...) é coisa muito importante para a gente”.  “Tudo de bom”. ”Devemos ter cuidado com as planta”’. “É como uma natureza que temos que preservar”.  

 Cabe agora ressaltar que as falas analisadas conduzem à idéia de que “toda sociedade toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja a natureza... constitui um dos pilares através dos quais os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim sua cultura.” (Porto Gonçalves, 2004, p. 23). Nesse caso, linguagem, subjetividade e vida social, como diz Marcondes (2001), são indissociáveis, ’já que são aspectos da mesma realidade’.

Nesse sentido, é possível perceber que a forma como os alunos se expressaram e os significados que elaboraram sobre os vocábulos relacionados ao meio ambiente estão interligados às relações que mantêm no seu contexto cultural e social. Escreveram e falaram, adequando a modalidade da língua, coloquial ou formal, às situações por eles vivenciadas.

Por fim, é importante destacar que as questões ambientais estão vinculadas inexoravelmente ao modo de produção econômico. Para ilustrar, lembremos que a degradação do ambiente tem como protagonistas, por um lado, os detentores do poder econômico (empresas de capital nacional e internacional), resultando em atos de exploração predatória dos recursos naturais. Por outro lado, governos (em geral, de países periféricos) que detendo o poder político se aliam a essas empresas a oferecer vantagens tributárias, comerciais e legais. Nesse último item, garante-se uma espécie de ‘salvo-conduto’: uma legislação inócua, inoperante, inadequada, em defesa e na fiscalização do meio ambiente.   

Nesse cenário, a alienação e a falta de informações das classes sociais subalternas dos países periféricos agravam e potencializam o alcance dos danos que os mais pobres, sempre os mais atingidos, sentem ao terem dilapidados  o patrimônio natural[11] e  cultural.  Nesse caso, conceitos em voga como ‘desenvolvimento’ e ‘sustentabilidade’ não “se constitui fora das condições sócio-econômicas objetivas”, como afirma Bakhtin. Em outras palavras, seu entendimento pode estar à ‘serviço’ do grande capital ou da população marginalizada.

            Portanto, a educação ambiental passa a ter um papel fundamental na defesa desses patrimônios e da própria sobrevivência dessas populações. Nesse caso, torna-se importante a melhor compreensão de seus conceitos, e que devem ser analisados sob o entendimento de que os fundamentos e as marcas da linguagem são sociais.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que a língua portuguesa é uma ferramenta fundamental na construção das condições necessárias à desejada formação mais atuante e participativa do cidadão com as questões ambientais. Percebemos que é possível ampliar, nos alunos, a sua capacidade de comunicação, expressão e integração social pela linguagem, a partir de um tema transversal, ao enfatizar o meio ambiente.

            Concluímos que o universo lingüístico e textual que os alunos apresentam está interligado ao mundo que os rodeia, que é necessário identificar seus valores e conceitos em relação ao meio ambiente, representados pelos seus discursos, isto é, a linguagem posta em ação e que ocorre necessariamente entre parceiros reais ou representados, como aponta Benveniste (1976). Assim, esses conceitos, muitas vezes, cristalizados pelo seu uso lingüístico poderão ser discutidos, identificados e confrontados com os apresentados em Educação Ambiental , resultando não apenas mais clareza, melhor entendimento, mas, principalmente, construindo com maior profundidade as relações dos alunos com o meio ambiente, transformando-os em cidadãos eticamente responsáveis pela sua preservação.

            Por fim, nesse contexto, continua atual e é um desafio para todos, (incluindo, evidentemente, os autores), o pensamento de Gramsci (2004) quando diz que o intelectual erra quando acredita que possa ‘saber ‘ sem compreender e sentir-se apaixonado[12]. “O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe: o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’” (p. 221).

 

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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6. NOTAS FINAIS

1Vale lembrar Ferreira (2003) quando ressalta que no Brasil há uma legislação comparativamente avançada, “porém os comportamentos individuais estão muito aquém da consciência ambiental presente no discurso” (p. 107).

2 Bakhtin (1988) nos diz que o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma utilizada mas na nova significação que essa forma adquire no contexto (...) não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial (pp. 92-5).A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a época ou os grupos sociais, conforme o contexto tal ou qual objetivo específico vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora uma variante ora outra (BAKHTIN, 1988, p.147).

3  Nesse caso, numa outra interpretação, Porto Gonçalves (2004)  aponta que “com a agricultura irrigada alguns povos se estabeleceram sobre um determinado território.  Dominar a natureza é dominar a inconstância, o imprevisível: é dominar o instinto , as pulsões , as paixões” (p. 26).

4 Segundo Marx, o avanço da agricultura no sistema capitalista traz a degradação do trabalhador, assim como do solo, trazendo a ruína da sua fertilidade.  (Marx, O Capital, I, cap. XIII). Para maior esclarecimento de como o método do materialismo histórico pode se transformar numa alternativa à análise da crise ambiental, consultar Foster, John Bellamy. (2000). Marx's Ecology. Materialism and Nature. New York : Monthly Review Press. Contudo, cabe lembrar que o Manifesto Comunista presume que a Terra é infinita e a produtividade interminável, no entanto,  como aponta  Boyle (2004),  “a noção de que o dinheiro  aliena os seres humanos  é um aspecto  poderoso da crítica ‘verde’ moderna em todo o mundo,  cujo argumento é de que há coisas mais relevantes”(pág.123).    Embora se afaste dos objetivos desta pesquisa é interessante assinalar que o conceito de natureza para Aristóteles significa ‘geração das coisas que crescem’; ou ainda, ‘substância das coisas que possuem o princípio do movimento em si mesmas e pela própria essência’.

 5 Por outro lado, a crença na impossibilidade na ‘comunicação’ com a divindade ser efetuada pelos ‘caminhos’ racionais, mas, sim, por exemplo, através da iluminação, reforça esse caráter místico religioso.“Tu, Senhor, és minha lâmpada, o Senhor ilumina as minhas trevas”.(2Sm 22,29); “A terra foi iluminada com o seu esplendor” (Ap18,1).  A doutrina da iluminação foi reformulada por Agostinho a partir dos textos do neo-platônico Plotino, nos quais, imagem da luz representa a natureza do Divino. Para maiores detalhes, consultar “A Dimensão do Mito; na cosmologia; na educação ambiental; na história em quadrinhos”.

6 O conceito de desenvolvimento sustentável  estabelece que ambiente e o desenvolvimento não são desafios independentes;  estão inexoravelmente ligados, como aponta o Relatório  da Comissão Mundial  sobre Ambiente e Desenvolvimento, 1987. Como destaca (BAYLISS-SMITH, Owens, 1996, p. 131), “esta é uma instância em que é crucial fazer uma distinção entre diferentes significados de ‘ambiente’: no sentido de sobrevivência, saúde e destruição de recursos renováveis são tipicamente os pobres que mais sofrem com a degradação ambiental e que potencialmente mais tem a lucrar com as melhorias”.

7 O Marxismo refere-se, em seus escritos, ao termo ‘comunidade’, em geral, defendendo que a abolição de classes e da divisão do trabalho seriam pressupostos a uma sociedade comunista, e que isto não seria possível sem uma comunidade genuína, na qual os indivíduos irão conquistar a sua liberdade através de sua associação. Evidentemente, não foi esse o sentido que os alunos construíram em suas falas.

8 Se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens. (...) Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber (Rm, 12, 18).

9 Para maior aprofundamento, ver principalmente o capítulo VIII, volume 2, Economia e Sociedade de Max Weber.

10 Para Töennies, diferentemente , a ‘sociedade’ é o resultado da vontade das pessoas visando à busca de um objetivo que as une, conduzindo-as a intercolaboração.  Töennies resumiu essa diferença na seguinte frase: ‘na comunidade, as pessoas encontram-se, enquanto na sociedade elas entram’.

11 Esses danos, evidentemente, em maior escala pode atingir a sobrevivência da própria sociedade. Pesquisadores apontam que a decadência de várias civilizações foi causada por processos erosivos do solo, com o colapso da base agrícola, consequentemente, empobrecendo e enfraquecendo impérios tornando-os mais vulneráveis aos inimigos nos conflitos bélicos. Os Sumérios, pela salinização do solo, destruindo a cultura do trigo e da cevada. No vale do Indus, além da salinização, a devastação florestal. Na Grécia, o uso excessivo de terras para o pastoreio (4/5 do total) provocou danos ao meio ambiente, levando a criação de uma reforma constitucional proposta por Sólon prevendo o uso do solo para agricultura, décadas depois ocorreram tentativas de recuperação do solo por meio do plantio de oliveira (VEIGA, 2005).

12 Para Gramsci estar apaixonado significa “não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber” p. 221. 

Ilustrações: Silvana Santos