Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
14/12/2006 (Nº 19) Rio Grande: uma cidade, múltiplos olhares.
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Rio Grande: uma cidade, múltiplos olhares.

 

Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Michelle Marthe Coelho[ii]

 

 

 

 

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, uma outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolverem-se como sonhos... (Calvino, 1990:19)

 

Nosso século é marcado pela tirania da eficiência, do máximo desempenho e da lógica do mercado e do consumo, assumindo uma mentalidade totalizadora que molda os imaginários individuais, impondo códigos, condutas e comportamentos, e agravando o processo de afastamento entre o homem e o meio. A globalização é um símbolo que reflete o nível superficial das relações jurídicas e institucionais que se intensificam pelo planeta conectando os interesses e estreitando relações e dependências entre sociedades e pessoas. Entretanto, a imagem epidérmica do processo não capta a dimensão humana dos atores que movimentam as engrenagens sociais, políticas e econômicas.

 

Construir outros olhares e conhecimentos sobre uma cidade mais viável do ponto de vista da constituição da cidadania, promove o senso de identidade e a responsabilidade sócio-ambiental nas populações envolvidas, valorizando o urbano como um espaço relacional em suas diferentes dimensões e colaborando para a reconstrução da memória local. Discorrer sobre o viver cotidiano é falar sobre vivências que se entrelaçam e modulam a ação dos homens sobre o meio, numa interação que se dá através da comunicação em suas múltiplas possibilidades.

           

Na busca de discutir-se a questão fundamental da identidade dos vários atores sócio-culturais que co-habitam o espaço urbano e a nossa vulnerabilidade diante dos processos antagônicos e incontroláveis assolam nossas cidades, a fotografia apresenta-se como recurso e meio para uma educação mais crítica voltada à conscientização dos problemas ambientais, que ela possibilita a aproximação do Outro ao nosso próprio olhar, e assim, a produção de provocações e reflexões.

 

Fotografias não são verdades absolutas, elas são apenas visões parciais de um sujeito que filtra realidades a partir das suas vivências pessoais. Fotos resultam ainda de pré-conceitos artísticos, estéticos e técnicos, mas ainda assim revelam realidades e sensibilizam na medida em que tornam próximo aquilo que muitas vezes fazemos ser distante. Contudo, a imagem fotográfica tem o valor intrínseco de favorecer o reconhecimento do real e ampliar a consciência humana para os problemas que existem no mundo por nós partilhado. Revelar e revelar-se é um exercício coletivo sempre transformador e construtivo, e para tal, precisamos de outros olhares para enxergar e perceber, constatar e encaminhar proposições.

 

Compreender a cultura urbana pelo viés da arte é colaborar para a captação e maior entendimento da constituição do ser urbano contemporâneo como parte integrante de um mundo de efeitos globais. A partir da dimensão estética e do fazer artístico, é possível exercitar-se a conscientização cidadã, ampliando o sentido de pertencimento e o entendimento das questões ambientais tais como se apresentam em nossos dias. A valorização da dimensão visual em nossa relação perceptiva com o real, e sua elaboração alegórica em registros fotográficos, permite ir além da percepção estabelecida pelos meios formativos que estruturam nossa consciência acerca do mundo.

 

As informações geradas pelos imaginários urbanos, suas percepções e representações estruturam a compreensão do ambiente urbano, elas possibilitam aos cidadãos reconhecerem a capacidade de apoderarem-se do cotidiano e daí extraírem o substrato para sua construção identitária.

 

Se tivermos a pretensão de ensinar o olho humano a ver de uma forma diferente, é necessário mostrar-lhe os objetos cotidianos e familiares sob perspectivas, ângulos e situações inesperadas. A linguagem fotográfica possibilita a construção de microcosmos simbólicos, dentro e fora de uma conjuntura analógica da vida, que permitem perceberem-se as inter-relações entre os acontecimentos e seus detalhes.

Em seuEnsaio sobre a cegueira”, Ítalo Calvino (1995) nos mostra que a percepção não é somente uma operação de captação da realidade exterior. Se podes olhar, . Se podes ver, repara, aconselha o mestre. O urbano é a concretização do espaço existencial, e como tal deve ser percebido. Perceber o ambiente como espaço de externalidade dos novos atores sociais que emergem da reafirmação de identidades... e da reinvenção do ser, faz da linguagem fotográfica um eficiente instrumento para estimular e aprimorar a percepção dos sujeitos. Mais que tudo, ela promove a aproximação entre diferentes áreas do conhecimento, permitindo a integração de pontos de vista distintos na construção informal da Educação e de uma ciência mais interativa e includente.

 

Eu não sou eu nem sou o outro

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro.

(Sá-Carneiro, 1974:75)

 

O município do Rio Grande é o berço da colonização lusitana no Rio Grande do Sul: - é portuguesa comcerteza! A mais antiga cidade do estado do Rio Grande do Sul teve sua origem na fortificação Jesus-Maria-José, edificada como apoio ao projeto português de consolidação de suas possessões no extremo sul brasileiro. Apesar do referencial histórico, da nítida influência na arquitetura, na culinária e no folclore, dentre outras características, foi nas últimas décadas que Rio Grande e região passaram a dar mais importância às questões culturais e suas raízes como fator constitutivo da identidade comunitária.

 

Em nosso mundo globalizado, mais do que nunca, os sujeitos vivem numa busca contínua pelo que lhes assegure existências próprias. Se por um lado, a convivência numa sociedade que privilegia a cultura de massa gera uma sensação de mal-estar, pois representa mais uma possibilidade de dissolução para os sujeitos, por outro, desperta a necessidade de se prolongar tradições compartilhadas, assumindo a intervenção da história na constituição das identidades.

 

Ligada ao continente por uma estreita faixa de terra, o município possui características muito peculiares. Em meio à riqueza arquitetônica que remonta às origens coloniais, destaca-se uma convivência cultural dividida entre as atividades pesqueiras e às voltadas para a agricultura e a pecuária.

 

Essa dupla vocação amplifica as influências oriundas das múltiplas raízes sociais, apresentando a cidade como uma construção simbólica que pertence ao domínio da afetividade, da sociabilidade e do imaginário (figura 1).

 

Figura 1: Cláudia Brandão

              Fotografia, 2002

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A diversidade de formas, hábitos e costumes, que se sobrepõem no espaço urbano rio-grandino, permitem o restabelecimento de significações ocultas ou esquecidas. Nesse sentido admitir o jogo constante de identificação projetiva e introjetiva, que faz da cidade uma parte do sujeito e deste, por sua vez, uma parte da cidade, num entrecruzamento de troca infinita, possibilita o entendimento de que a realidade concreta não se reduz a um conjunto de dados materiais ou de fatos isolados.

 

Em Rio Grande, o setor da pesca, por ser o mais tradicional e constituir-se em sua atividade industrial típica, merece destaque no contexto econômico do município, no entanto, é visível no município a influência das tradições regionais sul-rio-grandenses oriundas das práticas ligadas à vida no campo, principalmente quando enfocamos locais como a Vila da Quinta. Esse bairro rural (figura 2) possui uma relevante parcela da comunidade envolvida com o Tradicionalismo, um movimento que busca preservar a memória cultural e histórica, cultivando hábitos e costumes das regiões pampeanas do extremo sul americano, como forma de preservação da identidade cultural.

 

 

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Figura 2: Michelle Coelho,

               Fotografia, 2006.

 

Valorizar a observação do cotidiano significa reconhecer nele o substrato das atitudes sociais – os modos de vida e de pensar –, as relações e inter-relações que constituem a vida social. Refletir criticamente sobre as relações do homem do pampa com o meio ambiente é um tema que principalmente hoje, tendo-se em vista as modificações provocadas pela eminência do “desertos verdes”, revela-se de suma importância para os estudos em Educação Ambiental.

 

As imagens da vida cotidiana na Vila da Quinta (figura 3) nos apresentam um passado / presente em vias de desaparição, e nos remetem às origens do povo gaúcho. As tradições ainda estão vivas em algumas chácaras e em ranchos, que parecem perdidos no tempo, onde vivem gaúchos que conservam os costumes de laborar no campo, ou em uma mangueira - grande curral de pedra ou madeira construído junto à casa da estância. À noite os homens ainda se reúnem próximos a um do fogo de chão para tomar chimarrão e contar seus causos

 

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Figura 3: Michelle Coelho.

              Fotografia, 2006

 

 

O jovem precisa ser aceito em seu meio, identificar-se com algum tipo de “tribo”, garantindo dessa forma sua maneira de vida e constituindo-se como cidadão. Comparando a juventude da Vila da Quinta com a de outros bairros da cidade, é possível percebermos que dentre as tantas “tribos” existentes, como a da cultura hip-hop, do rock, do funk, entre outras fortemente influenciadas pela mídia, destaca-se o número crescente de adolescentes que optam por inserir-se na cultura gauchesca, elegendo como vestimenta do seu dia-a-dia, a bombacha, a boina, elementos da pilcha gaúcha, e preservando as práticas culturais relacionadas ao Tradicionalismo (figura 4).

 

Foto 4 - Clique aqui

 

Figura 4: Michelle Coelho.

              Fotografia, 2006.

 

Unir-se ao mundo pela contemplação ressalta a importância da atividade simbólica para a compreensão de determinada agregação social. A Arte não explica, porém, como suporte da reflexão, ela descreve contornos e possibilita a constatação de características fundamentais no processo de apreensão e compreensão do mundo, confirmando que o presente é mais do que aparenta ser.

 

Elaborar uma interpretação das contradições e dos contrastes, das ofertas simbólicas desconexas que a cidade do Rio Grande nos oferece, é um recurso para a aceitação do passado, elaborando-se não uma identidade auto-suficiente, mas sim, um tecido social envolvente a partir dos vínculos heterogêneos que fundam nossa cultura. A arte traduz as inquietações, as instabilidades dos conflitos existenciais, instaurando e comunicando as diferenças, conectando vida e ciência, e tornando visíveis as tensões que se estabelecem entre a memória histórica e a trama visual do espaço urbano.

 

A educação dos sentidos é o elemento chave no processo de mudança de mentalidades, hábitos e comportamentos, em direção a uma consciência ecológica que se manifeste, principalmente, como compreensão sensível do mundo. A fotografia como renovação ritual da identidade, provoca o distanciamento crítico e a re-elaboração lúdica. Como lugar de fusão da ciência e da criação artística, do presente com o passado, ela organiza o mundo sem abdicar da história.

 

O urbano rompe os limites geográficos da cidade e a desterritorializa, gerando um efeito imaginário que nos afeta e nos concebe, estreitando os laços entre os povos. Compreender o significado da cultura urbana pelo viés da produção artística é uma forma de, embora reconhecendo as influências mundiais, dizer mais de nossa história comum e da temporalidade, possibilitando redescobrir-se a Educação Ambiental em suas dimensões culturais.

 

   

BIBLIOGRAFIA

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CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BURKE, Peter. A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: EUEP, 1992.

GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto (org). Nós os gaúchos. Ed. universidade/ UFRGS, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

JACKS, Nilda. Querência: cultura regional como mediação simbólica - um estudo de recepção. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.

______________ Fotografia e História. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. Todos os poemas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.

 


 


[i] Professora Mestre em Educação Ambiental, líder do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, grupo de pesquisa FURG/CNPq; professora formadora do Centro de Artes e Educação Física da UFRGS.

attos@vetorial.net

[ii] Arte/Educadora, especialista em História do Rio Grande do Sul, pesquisadora do PhotoGraphein, linha de pesquisa  “Artes Visuais, Educação e Ambiente”. msalort@ibest.com.br

 

Ilustrações: Silvana Santos