Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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15/03/2022 (Nº 78) O PAPEL DO PROFESSOR NA CONSTRUÇÃO DAS APRENDIZAGENS: POR UMA ESCUTA SENSÍVEL NA EDUCAÇÃO INFANTIL
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O PAPEL DO PROFESSOR NA CONSTRUÇÃO DAS APRENDIZAGENS: POR UMA ESCUTA SENSÍVEL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Raquel Barbosa Rocha1



RESUMO: Este artigo tem por objeto a relação pedagógica entre professor e crianças na Educação Infantil. Nessa relação, o professor atua como observador, que acompanha as descobertas das crianças, com a intencionalidade de sustentar suas aprendizagens, oferecendo contextos significativos e desafiadores, utilizando múltiplas linguagens expressivas, escuta sensível, afetuosa e solidária, e atenção à cultura da infância. O objetivo é analisar o papel do professor no processo de construção de aprendizagem das crianças, no contexto da Educação Infantil. Aqui apresentamos uma investigação teórica e qualitativa, com base em uma revisão de literatura, tendo em perspectiva a abordagem Reggio Emilia de educação infantil. O referencial teórico do texto destaca Garcia, Pagano e Prandi (2018), Hoyuelos e Riera (2019), Vecchi (2017) e Edwards, Gandini e Forman (2016). Dentre os resultados obtidos pela investigação destacamos que a escuta sensível favorece a aprendizagem da criança, uma vez que ela possibilita o protagonismo da criança no processo de construção de conhecimento. O professor por sua vez ao observar, interpretar e refletir as estratégias e práticas pedagógicas promove o protagonismo das crianças.

Palavras-chave: Educação Infantil. Aprendizagem. Escuta Sensível.

  1. INTRODUÇÃO

Este artigo analisa o papel do adulto na construção do conhecimento das crianças. A tentativa se dá tendo em vista modos de participação de professores em atividades de observação das crianças nos diferentes ambientes da escola, ou seja, a forma como o adulto se posiciona e media o processo de aprendizagem delas, ao ter uma escuta sensível, afetuosa, solidária e a observação respeitosa da cultura da infância. É importante destacar que não se pretende realizar comparações entre a abordagem educativa realizada em Reggio Emilia, uma cidade situada ao norte da Itália, com as abordagens existentes em nosso país, Contudo, se mostra necessário ampliar a visão frente à construção das aprendizagens das crianças, considerando os apectos atitudinais do professor, ao relacionar-se com elas nos ambientes e no cotidiano da escola.

Escutar a criança, observar, construir o olhar que capte e interprete o que fazem, como fazem e por que fazem são atividades fundamentais ao professor da educação infantil. É preciso se dispor a compreendê-las, uma vez que as narrativas das crianças são carregadas de sentimentos e sentidos, gestos, imaginações, ações e criações. O professor que está acostumado a falar e ser ouvido, estará diante de uma pedagogia que aponta para uma nova função, a pedagogia da escuta, que vem ao encontro de uma prática pedagógica voltada à valorização e atenção à expressão infantil, postura bem diferente do método prescritivo que ainda permeia algumas práticas educativas. Apesar de ouvirmos falar, ou ainda, estudarmos a abordagem educativa de Reggio Emilia, não é possível transplantar um contexto cultural ao outro, por isso, não pretendemos propor mudanças nos paradigmas contidos nos conceitos ou programas existentes e, sim, buscar um ponto convergente entre a abordagem de Reggio Emilia e a de nossas escolas da infância. Os princípios teórico-metodológicos que nortearam esta pesquisa bibliográfica proporcionaram a reflexão dos processos formativos do papel do professor entre teoria e prática, abrindo espaço para as sensibilidades e potencialidades criadoras dos adultos e das crianças. Para tal temos como fundamentos teóricos como Garcia, Pagano e Prandi (2018), Hoyuelos e Riera (2019), Vecchi (2017) e Edwards, Gandini e Forman (2016). Que esse artigo possa servir como ponto de reflexão evidênciar uma abordagem educativa para os novos tempos, onde considera a criança como sujeito de direitos e potencialidades.

Como sinalizam diversos autores, entre eles Garcia, Pagano e Prandi (2018) e Garcia (Org. 2016), há riqueza nas relações entre adultos e crianças. Contudo, não se pode subestimar a complexidade que envolve o universo da educação infantil, como afirma Morin (2001) é preciso, mesmo num mundo em transformações, (re)ligar os saberes e não separá-los.

A estrutura desse artigo situa as transformações e mudanças nas aprendizagens ocorridas na Educação Infantil das escolas de Reggio Emilia, num primeiro momento, ressaltando a necessidade de posicionamento de nosssas escolas da infância a romper com paradigmas que consideram a cultura do adulto frente a cultura da criança, demarcando o adulto como autoridade hierarquizada, uma vez que ainda termos forte influência e algumas práticas educativas tradicionais, em que os adultos são interpretados como controladores e a chave para permitir, ou não, as ações das crianças no ambiente escolar.

Na sequência a demonstração do papel do adulto na construção da aprendizagem da criança, numa nova postura reflexiva que vai ao encontro de uma pedagogia que se apoia na escuta sensível, afetuosa e respeitosa, considerando a criança dotada de uma cultura própria e que a utiliza para criar, imaginar, questionar o mundo, a sua volta e construir o conhecimento. Sendo assim, a pedagogia da escuta, um dos elementos que é fonte de inspiração para a abordagem educacional de Reggio Emilia, que se apoia na observação atenta e objetiva do professor, que compartilha e interpreta com os outros adultos, as ações das crianças diante de contextos provocativos e carregados de possibilidades. Ainda tratamos sobre os aspectos formativos que leva o professor a refletir criticamente suas ações numa perspectiva de valorização da percepção diante do novo, e do relacional.

Por final, discorremos sobre a dimensão da estética e a multiplicidade de linguagens, na preparação de ambientes que favorecem a atuação do adulto na relação com a criança, evidenciando que o papel do adulto está na observação como foco que contribui na elaboração de estratégias para construção das aprendizagens das crianças. Aqui registramos Hawkins (1913-2002) - uma fonte de inspiração para Loris Malaguzzi2 - importante professor de filosofia na Universidade do Colorado que analisa dois conceitos fundamentais para os aspectos formativos do professor, sendo o primeiro: o professor como aprendiz e o segundo: a ênfase dos ambientes de aprendizagens com materiais que permitam as exploraçoes e investigações das crianças.

Este caminho que propomos trilhar visa responder à nossa questão problema central: analisar o papel do professor no processo de construção de aprendizagem das crianças, no contexto da Educação Infantil.

  1. TRANSFORMAÇÕES E MUDANÇAS NAS APRENDIZAGENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

A educação vive incertezas durante todo o percurso, é fato que não temos o controle do devir, contudo, a escola é ainda, o local instituído, estruturado e organizado para promover a aprendizagem intencional.

Há muito, já fomos, como professores, alertados de quê é preciso educar as crianças e os jovens a aprenderem de uma forma diferente, pois a conexão desta criança e deste jovem, além dos muros da escola, sofreu mudanças e transformações significativas, como sinaliza Rinaldi in Zero,

Tudo isso nos leva, inevitavelmente, a perguntarmo-nos se, nas nossas escolas e nos outros lugares educativos, estamos nos ocupando suficientemente de como educar uma nova geração de crianças e de jovens capazes de enfrentar as oportunidades que terão pela frente, não somente com o uso da tecnologia, mas, também, com o uso da mente e das sensibilidades. (ZERO, 2014, p. 32)

Sobretudo, há inúmeros escritores, pensadores e pesquisadores que apontam para essa direção de transformações sobre a forma de interpretar a criança e suas formas de pensar. É importante ressaltar que, as pesquisas nesse campo educacional são recentes, considerando que a intenção aqui descrita são as crianças da Educação infantil e o papel do adulto na escuta sensível, com o foco no papel do adulto que se sensibiliza e aproxima-se delas com a intenção de compreender, analisar e ouvir o que pensam e o que fazem e como fazem como compartilham e refletem as suas ações e constroem as aprendizagens nas multiplicidades de contextos.

Há uns cinco anos, essa pergunta se fez presente em nosso contexto profissional e, porque não dizer pessoal, quando numa viagem de estudo à Reggio Emilia, muitas coisas saltaram aos olhos, mas essa indagação permanecia latente por muito tempo, mesmo após o retorno ao Brasil.

Essas buscas, profissional e pessoal, levaram a contextos variados e leituras diversas, no intuito de achar uma resposta, como pedagoga pesquisadora da infância reconhecendo que a Educação Infantil é complexa, seus acontecimentos e elementos (Pais, Professores, Crianças, objetos, etc), são complexos e se entrelaçam, surgindo uma rede de conhecimentos.

A abordagem educativa de Reggio Emilia se destaca por ser uma constante em transformação e por princípios norteadores bem definidos em relação ao protagonismo da infância, seus direitos e suas potencialidades, mas também como são a relação e o papel dos adultos que fazem parte do processo de construção da aprendizagem na educação infantil. Nesse sentido é importante ressaltar que o papel do pedagogista em Reggio Emilia é realizado em conjunto, ou seja, de forma coletiva e expressa um sistema interligado numa ação, que favorece a responsabilidade de todos dentro da escola e fora dela, promovendo uma troca de conhecimento que valoriza diferentes saberes e promove constante transformação e crescimento profissional, como aponta (EDWARS, GANDINI, e FORMAN. ORG. 2016, p 145):

O sistema difuso de desenvolvimento profissional não foi criado para transmissão linear de cima para baixo, e sim para desenvolver muitas zonas colegiais de criação e troca de conhecimento, onde as competências são aprofundadas e ampliadas em um fórum que, idealmente, promove a aprendizagem entre gerações mais velhas e mais novas, entre categorias de trabalhos, em torno de questões pedagógicas. Esse novo sistema amplia tendências dos últimos anos e itensifica ênfases iniciais, além de também revelar a capacidade do sistema infantil de Reggio Emilia de evoluir e se adaptar as novas condições e a novos desafios.

Envolver-se profundadamente nas questões centrais de Reggio Emilia, permite vislumbrar uma abordagem que permeia de fato a participação ativa de todos os envolvidos no processo, de tal forma que se harmonizam entre a escuta, no momentos de troca de experiências entre os educadores, de observação, nas situações de aprendizagens das crianças, revelando a escola como um organismo vivo, onde o respeito a história e a cultura e são fonte inspiradora.

2.1 O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Segundo, Hoyelos e Riera (2019, p. 25), a escola de educação infantil, é uma organização complexa porque ela que nos permite a não simplificar. Nesse contexto a relação, a organização, o cuidado, o tipo de conexão afetiva, os objetos, as cores, as luzes, os sons etcs, são elementos indissociáveis que coexistem.

Essas premissas sinalizam às transformações e mudanças que constituem a identidade e a complexidade na Educação Infantil. Segundo Morin (2001), a complexidade tem como princípio o pensamento que busca (re)ligar saberes, que durante muito tempo foi ensinado como fragmentos. Assim também, como frisa o mesmo autor, conhecer o ser humano, é antes de tudo, situá-lo no universo e não separá-lo dele.

Nesse sentido o desafio da complexidade está no ato de reconhecer esse ser humano, no caso as crianças, e compreender a essência de sua beleza interna, de suas interrogativas para compreender o universo que está a sua volta. De acordo com Malaguzzi cada criança que nasce é um ponto de interrogação (HOYUELOS e RIERA, 2019, p.31). Segundo Morin (2001), essas incertezas são presentes no cotidiano da escola infantil, o que supõe navegar num oceano de incertezas com alguns arquipélogos de certezas. Partindo desse princípio, as perguntas geram novas relações e novos âmbitos de discussões, pressupondo uma pedagogia de escuta recíproca, ou seja, de ambos os lados.

Segundo Vecchi,

É importante, para a sociedade que as escolas e nós, como professores, tenhamos clara consciência de quanto espaço deixamos para as crianças terem um pensamento original, sem levá-las a restringi-lo a esquemas predeterminados, que definem o que é correto, segundo a cultura escolar. O quanto apoiamos as crianças que têm ideias diferentes das ideias dos outros e como habituamos a argumentar e a discuti-las com os colegas de classe? Estou bem convencida de que uma maior atenção para os processos, em vez de unicamente para o produto final, nos ajudaria a ter maior respeito pelo pensamento independente e pelas estratégias de crianças e jovens. (2017, sp)

Nessa visão Vecchi (2017), sinaliza à uma aprendizagem que considera os novos pensamentos, às novas ideias, e às novas perspectivas, onde são levados em conta uns dos fundamentos do trabalho pedagógico que realiza sobre os modos de pensar das crianças, uma pedagogia onde a escuta afetuosa, atenta, respeitosa e solidária compõe a intencionalidade do professor no trabalho com a criança.

Dito isso, conscientemente, esclarece Vecchi, (2017) as escolas devem ter um posicionamento sobre “qual conhecimento pretendem apoiar”, segundo a autora, a clareza de decisões de natureza política e ética evidenciam a escolha e o posicionamento entre um ensino que opta em transmitir “verdades”, ou construir contextos que permitem explorar as ideias e hipóteses das crianças, discutindo com amigos e professores.

Se vivemos momentos de profundas mudanças em todos os âmbitos da sociedade, é notório perceber que as distâncias não existem mais, como existiram, contudo, é preciso desvelar que enquanto a escola fragmentar o pensamento, subtraindo as diferentes culturas que nela residem, ou enquanto apontarmos o leme para um horizonte definido pelo adulto, sem escutar afetivamente às crianças, usaremos a racionalização sem considerar as emoções ou a empatia e o respeito, para atracarmos num porto sem emoção e sem dar a voz e vez para a criatividade e a imaginação, retirando das crianças a capacidade de superação aos novos desafios da humanidade.

Nesse sentido Vecchi (2017, p. 29), ressalta que vários filósofos falaram sobre o tema em que se coloca em zona de limite de tensão e de aproximação entre o racional e o imaginativo, entre o cognitivo e o expressivo. Para a autora, essa tensão e essa aproximação levariam a uma zona de maior completude do pensamento. Ainda, frisa Vecchi (2017), de acordo com os autores que fundamentam seu pensamento, a evidência das relações que se fortalecem num conjunto sistêmico de partes que se interagem.

2.2 O PAPEL DO PROFESSOR E A ESCUTA SENSÍVEL

O professor ao escutar a fala da criança, ao dar a importância, valorizando a percepção dela diante do novo, do inesperado, ou ainda de sua observação sobre o objeto observado, está ele, considerando essa criança como sujeito único que se apropria de maneira pessoal de um contexto, numa perspectiva relacional. Assim como destaca Garcia, Pagano e Prandi:

Os professores acompanham as crianças no processo de aprendizagem. Com essa expressão desejo evidenciar que o papel do professor não é somente ser um guia que leva a criança a conquista do conhecimento. Ele é também, e acima de tudo, é aquele que “celebra” o processo de conhecimento de cada criança: sabe, de fato, que cada criança é um sujeito único e se apropria do conhecimento de maneira pessoal, irrepetível e diferente de qualquer outra pessoa (2018, p. 37).

Assim, por intermédio da escuta sensível dos processos das crianças, o professor pode autorregular suas ações pedagógicas avançarem na construção da aprendizagem. A observação atenta e contínua indica elementos para que o professor possa fazer essa regulação.

Nessa direção, Garcia, Pagano e Prandi (2018, p. 40), destaca que a atitude de escuta do professor caminha para uma abordagem que se estrutura a partir de indagações acerca das curiosidades que as crianças demonstram sobre o contexto. É a partir dessas indagações, de acordo com os autores, que o professor alinha os elementos, as ações, as metodologias e as estratégias práticas que vão ao encontro da construção do conhecimento.

Desse modo, o professor reflete sobre a fala da criança e além de celebrar, como sinalizou Garcia, Pagano e Prandi (2018, p. 38) ele deve indagar, observar, interpretar e documentar. Tornando-se um caminho estratégico e indispensável para a escola da infância e para que a criança seja a protagonista de sua aprendizagem, e não mera reprodutora de conceitos previamente decididos pelos adultos. Dito isso, o combustível dessa proposta pedagógica reside na forma como o professor enxerga seu papel de observador e como o aproxima da realidade das crianças, sem interferir, ou seja, com certa parcialidade sabendo delimitar sua própria observação. Numa relação estreita com o contexto e com a criança.

A experiência das escolas de Reggio Emilia que sofreram grandes transformações foi amplamente descrita no livro As cem linguagens da criança (EDWARDS, GANDINI e FORMAN. 2016), esse livro destaca além de inúmeros aspectos de uma pedagogia progressista, no cerne de Reggio Emilia está o ensinar e o aprender, portanto, o papel do professor no apoio da aprendizagem é um tema central e duradouro, de acordo com Edwards, Gandini e Forman:

O papel do adulto como professor complementa o papel da criança como aprendiz, como disse Malaguzzi (1994, p.52): ‘a sua imagem da criança: onde o ensino começa’. Ao criar um significado compartilhado da natureza, dos direitos e das capacidades da criança em idade escolar, membros de uma comunidade também podem vir a concordar com que tipo de professor é necessário para educar e auxiliar essa criança (2016, p. 155).

Para o autor e pedagogista Garcia, Pagano e Prandi (2018, p. 46), a observação é uma atitude de escuta que, consiste, essencialmente, em uma disposição pela qual os professores procuram significados nos gestos e nas expressões das crianças, para compreendê-los sob uma nova perspectiva.

O universo infantil é rico em possibilidades e oportunidades, assim como destaca Garcia (Org),

No cotidiano escolar, as crianças encontram oportunidades para interagir e aprender com diferentes adultos e com seus pares – tenham estes a mesma idade ou não. E nesse cenário de convivência com iguais e diferentes em idade, a criança experimenta um processo mais complexo de socialização e desenvolvimento pessoal. A criança – como ser humano- se constitui através da relação com o outro, e ao mesmo tempo, produz a si mesma (2016, p. 42).

Essa convivência com multiplicidades de ideias e pensamentos, favorece que a observação da criança, torna-se um terreno fértil para observação dos professores.

Como enfatiza, Garcia, Pagano e Prandi (2018), uma única observação não é suficiente para demonstrar, descrever ou interpretar um contexto específico. Segundo o autor, para que a observação seja ainda mais rica, é necessário que mais pessoas participem do processo, o que enriquecerá o ponto de vista do professor, pois permitirá o compartilhamento de intersubjetividades: “Uma visão sobre a realidade é construída através de uma lente específica de observação, estritamente ligada a um contexto, a um tempo e à determinadas pessoas” (GARCIA, PAGANO e PRANDI, 2018, p. 47).

Nesse sentido, a observação levará à oportunidade de documentar aquilo que se observa, num propósito de narrar os acontecimentos realizados pela criança e que foram interpretados pelos professores. Essa tarefa carrega intencionalidades entre as quais de levar a êxito a fala da criança, suas hipóteses, sua imaginação acerca do contexto que está inserida.

Segundo Garcia, Pagano e Prandi (2018), todo o processo de observação, interpretação e documentação, é circular e cada adulto é um contribuinte para as reflexões a cerca do trabalho com a criança.

O fato de que a documentação, oriunda da observação, afirma Garcia, Pagano e Prandi, (2018), não é uma tarefa ou uma atividade a ser executada, e sim, um comportamento constante que o professor deve ter e manter, sem perder as intencionalidades durante toda jornada escolar.

Os espaços de observação dos professores acerca das ações das crianças, estão espalhados em todos os ambientes da escola, como foi evidenciado por Garcia, Pagano e Prandi (2018) uma única observação que não dá conta de interpretar o pensamento infantil e do mesmo modo que não será um único ambiente que comunicará esses pensamentos.

Nessa mesma direção sinaliza Garcia, Pagano e Prandi (2018), quando teve a oportunidade de visitar escolas em Reggio Emilia, na Itália,

Ao entrar no ambiente distinto das escolas de infância de Reggio Emilia, os visitantes experimentam algo que marca sua viagem. Trata-se de uma experiência estética que envolve um estado mental incomum e que pode ser provocada por determinados objetos, cenas e eventos (MARKOVIC, 2010). A experiência estética parece relacionada à percepção de relacionamentos, do modo como objetos, formas espaços e contexto, por exemplo, nos parecem significativamente conectados. Essa resposta a “padrões que conectam”, para umas termo de Gregory Bateson (1979), envolve elaboração, compreensão nos torna capazes de olhar e perceber significados. Não saímos iguais do encontro com o belo (p. 22/23).

Esse encontro com o belo, com a estética desencadeia uma série de desdobramentos, significados e relações que permitem à criança expandir seu olhar diante do exposto.

2.3 A OBSERVAÇÃO E AS INTENCIONALIDADES PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS APRENDIZAGENS

O ato de observar nos aproxima das crianças e permite compreender, interpretar melhor o que pensam, além de servir de evidências para uma análise diagnóstica e avaliativa de modo a proporcionar ao professor redirecionamento para que a criança avance gerando mudanças na sua aprendizagem. Diante disso, o observar com intenção compõe uma função do professor no campo observacional.

Segundo, Hoyelos e Riera (2019, p.80), Malaguzzi sinalizava que a observação depende de nossa formação, de nossa cultura, de nossas intenções e da imagem de criança que construímos.

Desse modo, os aspectos formativos devem possibilitar ao professor, refletir sobre suas práticas educativas e compartilhá-las com outras pessoas. Como destaca Garcia, Pagano e Prandi (2018)

Um dos aspectos que mais qualifica o trabalho na educação é a capacidade de termos consciência do nosso próprio papel. Aqueles que ingressam no mundo da Educação muitas vezes não refletem o suficiente sobre suas práticas, reduzindo seu próprio trabalho a tomar conta de criança, sem considerar sua dimensão educacional mais ampla e a responsabilidade envolvida em sermos professores (p 60).

A formação do professor é fundamental para fortalecer suas potencialidades e também seu desempenho na atuação com as crianças. Contudo, o professor, assim como as crianças, precisam ser ouvidos, compartilhar com outras pessoas suas observações, interpretações acerca das crianças, para que avance e transforme suas dificuldades, dúvidas ou anseios, em competências geradoras de êxito na sua função de professor.

Diante disso, o professor deve ser constituído por uma formação reflexiva que considere as competências que resultem em diferentes saberes. Assim, como Garcia, Pagano e Prandi (2018), evidencia:

O professor, assim, é um profissional que observa, pensa, reflete, escolhe e testa suas ideias. Atua como pesquisador no contexto de experiência em que trabalha e no qual adquire conhecimentos, valendo-se também do seu saber teórico. É um adulto que dá suporte às crianças, sem fornecer soluções prontas, mas sim, oferecendo possibilidades, contextos, oportunidades para que elas construam o saber de forma compartilhada ( p. 63).

A sinalização de Garcia, Pagano e Prandi (2018) revela uma prática didática reflexiva que relaciona teoria e prática a partir de um contexto reflexivo que desenvolve ações e procedimentos num compromisso ético educacional.

A dimensão reflexiva está na prática de ação–reflexão-ação, como afirma Liberali (2010), um professor capaz de refletir e reorganizar sua prática pedagógica com atitudes e procedimentos durante o processo de construção das aprendizagens das crianças.

Outro ponto de relevância desta prática reflexiva do professor está associado a uma formação crítica na perspectiva sócio-histórica-cultural, assim como assinala Liberalli (2010),

Na perspectiva sócio-histórica-cultural (Vygotsky, Leontiev, Bakhtin), os sujeitos constituem-se e ao demais na relações com os objetos/mundo mediados pela sociedade. Esse processo de constituição de si, dos demais e da própria sociedade é de fundamental importância ao considerarmos a formação crítica de educadores (p.19)

Nesse sentido, torna-se fundamental analisar o processo de (re)construção referente ao papel do professor, ou seja, através da forma como discutem e como percebem os efeitos de suas ações na formação de seus alunos. Assim, como evidencia Liberali (2010),

Refletir criticamente é um processo de rever a sua ação de maneira informada. O que significaria rever sua ação de maneira informada? Em primeiro lugar, em uma perspectiva vygotskiana, seria entender seu cotidiano, levantar a sua autopercepção. Percepção do que conhece sobre a sua própria ação, principalmente, para sustentar as opiniões formas sobre determinado fato (p.38).

A forma como o professor se planeja e reflete seu papel, tem relação com as condições organizativas de como atua e trabalha com as crianças, uma vez que a disposição dos elementos que constituem o ambiente: os materiais selecionados e a disposição dos móveis revelam a intencionalidade pedagógica, se as crianças podem se mover com liberdade, manusear objetos partilhá-los e explorá-los, permite converter em possibilidades e construção de conhecimento.

Dessa maneira, Hoyelos e Riera (2019) narra que a profissão do professor exige, nos aspectos formativos, conhecimento reflexivo de si.

Acredito que nossa profissão exige responsabilidades e, também que a relação se constrói com “nos” reflexivos que nos comprometem do ponto de vista ético. Todavia, lamentavelmente, existem muitas – como dizia Emi Pikler – doces violências que é necessário evidenciar para bani-las (p. 180).

Ao situar as responsabilidades educativas para papel do adulto em relação à criança, esperançamos converter as possibilidades presentes que existem no cotidiano escolar, em uma pedagogia da escuta de Malaguzzi.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto mais rica for a interação do professor com a criança que se apresenta a sua frente, maior será a relação de afeto, encantamento e sensibilidade sobre o que observa, contempla e aprende. Esta é uma das diversas considerações que postulamos após a investigação do objeto de pesquisa que nos acompanhou durante as reflexões e análises. A compreensão do lugar do professor e o reconhecimento deste como um agente, cuja função deve ser consciente e, portanto, reflexiva, é fundamental para o reconhecimento e promoção de uma cultura da infância.

A Pedagogia da escuta traz a narrativa de uma escola que respeitosamente dá à criança o seu lugar e a reconhece como cidadã cheia de direitos, sem cair na superficialidade e na hierarquização. Como ponto de partida para essa pedagogia, está a premissa que o professor precisa desenvolver observação respeitosa, considerando que isso requer um planejamento cuidadoso que intensifica a relação entre os materiais selecionados e as crianças promovendo ações que garantam a atenção delas, discussões e narrativas, conectando os aspectos cognitivos, afetivos e simbólicos.

Neste sentido, a formação do professor é interpretada enquanto um adulto que compreende e se relaciona com a criança numa perspectiva de escuta atenta e profunda, vislumbrando o desenvolvimento de estratégias que respeitem o espaço da criança, promovendo ambientes favoráveis, significativos, provocativos e desafiadores.

Um exemplo concreto disto é quando a professora considera a narrativa da criança acerca de sua experiência em um projeto. Tomemos como referência um projeto sobre fenômenos da natureza. A professora considera as narrativas das crianças, suas hipóteses, o que permite elaborar novas estratégias, desafios e provocações, sem previamente determinar qual fênomeno pesquisar e nem tampouco um planejamento pedagógico previamente elaborado pelo adulto, permitindo que avancem na construção de novas aprendizagens,

No entanto, sabemos que para que essas possibilidades se efetivem nos processos educativos é necessário um olhar atento e profundo para que, sem temor, toda estrutura escolar esteja preparada para uma abordagem que considera a riqueza e a completude nas narrativas das crianças, nas suas interações com os objetos, com os ambientes e com seus pares.

Certamente não é uma tarefa simples porque são muitas variáveis que compõem o universo infantil e os adultos que se entrelaçam nesse processo precisam exercitar a sua capacidade de escuta atenta da criança, necessitam potencializar os espaços através das múltiplas linguagens para que as atividades levem as crianças à resolução de problemas.

É necessário compreender que a seleção de materiais seja numa perspectiva que considere a dimensão da estética e que a forma como observam as ações e as relações das crianças em interação com ambiente escolar, seja composta de afeto, descobertas, desafios e levem ao extraordinário que encanta e sensibiliza, dando lugar a um adulto que reflete as narrativas infantis acreditando nas potencialidades e nos direitos que elas tem quando vão para a escola da infância, ou seja, uma da pedagogia da escuta.

Quando o professor prepara o ambiente antes de a criança chegar, por exemplo, seleciona canetas coloridas harmoniosamente separadas pela cartela de cores em um espaço, em outro canto, do mesmo ambiente, separa brinquedos não estruturados, com texturas e tamanhos variados ainda, em um outro canto, estão dispostos papeis e carvão, num aspecto harmonioso permitindo à criança ao adentrar esse ambiente se encantar e se sentir provocada para explorar cada canto, numa postura imaginativa, criadora e criativa, entrelaçando descobertas e narrativas. Dessa forma proporcionam ao adulto além de observar, escutar suas narrativas levando-o avançar em seu planejamento pedagógico a partir do que vê e do que escuta.

Lembrando que para Barbier (2002), é uma escuta sensível que autoriza que participantes de um processo manifestem a impressão sobre o objeto de discussão. A partir dessa proposta as crianças serão capazes de interpretar, esclarecer e evidenciar contradições. Esse tipo de escuta pode favorecer a melhoria das condições de aprendizagem na educação infantil.



REFERÊNCIAS

BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Plano, 2002.

EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. (org.). As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação. Volume 2. Porto Alegre: Penso, 2016.

GARCIA, Joe (org.). Convivência na escola: diferentes olhares de pesquisa. Curitiba: UTP, 2016.

GARCIA, Joe; PAGANO, Andréa; PRANDI, Roberta. A reinvenção da Educação Infantil: uma experiência de Reggio Emilia. Curitiba: UTP, Coopselios, 2018.

HOYUELOS, Alfredo; RIERA, María Antonia. Complexidade e relações na educação infantil. 1 ed. – São Paulo: Phorte, 2019.

LIBERALLI, Fernada Coelho. Formação Crítica de educadores: Questões fundamentais. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 3. ed. – São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001.

VECCHI, Vea. Arte e criatividade em Reggio Emilia: explorando o papel e a potencialidade do ateliê na educação da primeira infância. 1 ed - São Paulo: Phorte, 2017.

ZERO, Project. Tornando visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo / Reggio Children. 1. ed. – São Paulo: Phorte, 2014.



1 Mestre em Educação. Professora do Colégio Maria Imaculada, Curitibanos SC. Email: Raque.rocha@hotmail.com

2 Loris Malaguzzi, deixa um legado que contribuiu e continua contribuindo para a construção de sistemas educacionais progressistas para crianças pequenas.


Ilustrações: Silvana Santos