Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Para Sensibilizar
26/05/2005 (Nº 13) A semente
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A semente
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Por Clarissa Tag, abril de 2005

Da redação Consciência.Net
 
Semear, esparramar, propagar, derramar, deitar sobre a terra, a vida e a morte. Para ser, é preciso nascer; para viver, é preciso começar. Começamos todos como sementes, terminamos todos deitados na terra, da mesma forma, sementes. O ciclo é o mesmo para quase todos os seres. O princípio e o fim encontram-se através dos intervalos no tempo a eternidade efêmera e contínua.

Do caroço solitário nasce o abacateiro, árvore com flores femininas e masculinas que chega a 20 metros de altura. As abelhas, os pássaros e os ventos participam do namoro entre os pés de milho macho e fêmea. Tartarugas marinhas enterram seus ovos na areia durante o verão, e em dois meses pequenas tartarugas correrão cambaleantes em direção ao mar. Para os seres humanos, os passos da dança podem ser mais complicados mas nem por isso diferentes.

O ovo, a célula materna, só é fecundada por outra célula, o sêmen paterno. A semente colocada na terra, em condições favoráveis à vida, é capaz de gerar outra vida. O óvulo fecundado é formado pelo embrião e por uma porção de alimento, uma reserva de energia necessária ao desenvolvimento. Seja peixe, seja feijão. Sempre foi assim, basta ser semente.

E afinal, o que sabemos sobre sementes?

Pequenos grãos capazes de germinar na terra molhada, capazes de, com o tempo, transformarem-se em pequenos arbustos e frondosas árvores. Meu pai costumava plantar cebola e me disse que a semente de cebola não dava para reproduzir, então ele comprava a semente na loja. A semente de cebola é tão pequena que não parece semente, parece um pozinho. Eu nunca vi uma, mas foi o que ele me disse. E a batata?

Minha avó materna é quem plantava batata. Segundo ela, "a batata a gente tira dos olhos, cada olho vira outra planta com mais batata", mas "tem de ser da batata semente, não pode ser qualquer uma, senão nasce batata feia".

Meus pais foram produtores antes de eu nascer. Pelos anos 50 e 60, compravam as sementes em lojas e sementeiras. Até sabiam fazer das mudas, novas mudas, dos frutos, novas sementes.

Porém as sementes das lojas eram as melhores, afinal era isso que os consumidores queriam: alimentos melhorados e modernos.

Era o início da mecanização da agricultura, a Revolução Verde.

Com o slogan “agricultura moderna para acabar com a fome”, grandes empresas estrangeiras desceram em direção à América Latina para vender seus adubos, fertilizantes, inseticidas, maquinaria e sementes melhoradas aos agricultores pobres do Novo Mundo, suas antigas colônias, terras onde um maravilhado Pero Vaz de Caminha descreve como "em se plantando tudo dá".

Produzir alimentos tornou-se cada vez mais um negócio complexo e caro. Não era mais ter algumas galinhas, um pouco de leite, hortaliças e um pouco de feijão para trocar pelo arroz do vizinho. Era preciso plantar muito, para ter quantidade para levar à cidade e vender muito barato, para poder continuar vendendo e poder comprar a semente e os fertilizantes, porque só assim agricultores tinham crédito no banco. Em todo o planeta agricultores viram suas tradições serem transformadas, na maioria das vezes de maneira imposta.

Estudos agroecológicos demonstram que o solo tratado com agrotóxicos apenas adoece, chegando à desertificação devido à salinização causada por adubos químicos ou devido à retirada em excesso das fontes de água. A agricultura moderna depende de muita irrigação, pois solo enfraquecido gera raízes enfraquecidas e incapazes de retirar umidade suficiente das camadas mais profundas de terra.

Alienação e esquecimento

Muitos, inclusive meus pais, deixaram o campo no início dos anos 70. Os motivos foram vários: dívidas, muitas pragas, fatores climáticos, e enorme pressão psicológica.

Ser “gente do campo” era, e ainda é, considerado ser de categoria inferior. Os saberes da terra aos poucos foram, e continuam sendo, esquecidos, substituídos por pacotes de insumos e sementes da mesma maneira que o pão dessa padaria tem o mesmo gosto daquela. A mistura para pão, bolo e biscoito só necessita acrescentar água.

Mas não é apenas a facilidade que impõe o pão único de cada dia. A diversidade da vida está sendo ameaçada por condições de mercado maiores que as que vemos na correria das cidades. Agricultores do mundo inteiro estão sendo condicionados a esquecer sua autonomia, seu direito de escolher o que comer, o que plantar e para quem vender. O presidente provisório iraquiano Paul Bremer, em uma de suas ordens, instituiu a Lei 81 que proíbe agricultores iraquianos de guardar suas próprias sementes, e assim eles devem comprar sementes a cada nova safra.

O problema maior é que o mercado mundial de sementes é atualmente controlado por apenas cinco grandes empresas.

Quando a origem da vida começa a ser imposta, controlada e mercantilizada, mesmo que sejam sementes de grãos e hortaliças, não deixam de ser sementes. Nós seres humanos estamos decidindo, por outros seres humanos e não-humanos, aquilo que devem ser, no intervalo de tempo entre o princípio e o fim. Na tensão econômica, a corda também arrebenta do lado mais fraco.
 
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Clarissa Tag trabalha com alimentos agroecológicos e é editora de ECOLOGIA da Revista
Consciência.Net (www.consciencia.net)
Fonte:
http://www.consciencia.net/2005/mes/08/asemente-clarissa.html

Ilustrações: Silvana Santos