A
semente
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Por Clarissa Tag, abril de 2005
Da redação Consciência.Net
Semear, esparramar, propagar, derramar, deitar sobre a terra, a vida e a morte.
Para ser, é preciso nascer; para viver, é preciso começar. Começamos todos
como sementes, terminamos todos deitados na terra, da mesma forma, sementes. O
ciclo é o mesmo para quase todos os seres. O princípio e o fim encontram-se
através dos intervalos no tempo a eternidade efêmera e contínua.
Do caroço solitário nasce o abacateiro, árvore com flores femininas e
masculinas que chega a 20 metros de altura. As abelhas, os pássaros e os ventos
participam do namoro entre os pés de milho macho e fêmea. Tartarugas marinhas
enterram seus ovos na areia durante o verão, e em dois meses pequenas
tartarugas correrão cambaleantes em direção ao mar. Para os seres humanos, os
passos da dança podem ser mais complicados mas nem por isso diferentes.
O ovo, a célula materna, só é fecundada por outra célula, o sêmen paterno.
A semente colocada na terra, em condições favoráveis à vida, é capaz de
gerar outra vida. O óvulo fecundado é formado pelo embrião e por uma porção
de alimento, uma reserva de energia necessária ao desenvolvimento. Seja peixe,
seja feijão. Sempre foi assim, basta ser semente.
E afinal, o que sabemos sobre sementes?
Pequenos grãos capazes de germinar na terra molhada, capazes de, com o tempo,
transformarem-se em pequenos arbustos e frondosas árvores. Meu pai costumava
plantar cebola e me disse que a semente de cebola não dava para reproduzir, então
ele comprava a semente na loja. A semente de cebola é tão pequena que não
parece semente, parece um pozinho. Eu nunca vi uma, mas foi o que ele me disse.
E a batata?
Minha avó materna é quem plantava batata. Segundo ela, "a batata a gente
tira dos olhos, cada olho vira outra planta com mais batata", mas "tem
de ser da batata semente, não pode ser qualquer uma, senão nasce batata
feia".
Meus pais foram produtores antes de eu nascer. Pelos anos 50 e 60, compravam as
sementes em lojas e sementeiras. Até sabiam fazer das mudas, novas mudas, dos
frutos, novas sementes.
Porém as sementes das lojas eram as melhores, afinal era isso que os
consumidores queriam: alimentos melhorados e modernos.
Era o início da mecanização da agricultura, a Revolução Verde.
Com o slogan “agricultura moderna para acabar com a fome”, grandes empresas
estrangeiras desceram em direção à América Latina para vender seus adubos,
fertilizantes, inseticidas, maquinaria e sementes melhoradas aos agricultores
pobres do Novo Mundo, suas antigas colônias, terras onde um maravilhado Pero
Vaz de Caminha descreve como "em se plantando tudo dá".
Produzir alimentos tornou-se cada vez mais um negócio complexo e caro. Não era
mais ter algumas galinhas, um pouco de leite, hortaliças e um pouco de feijão
para trocar pelo arroz do vizinho. Era preciso plantar muito, para ter
quantidade para levar à cidade e vender muito barato, para poder continuar
vendendo e poder comprar a semente e os fertilizantes, porque só assim
agricultores tinham crédito no banco. Em todo o planeta agricultores viram suas
tradições serem transformadas, na maioria das vezes de maneira imposta.
Estudos agroecológicos demonstram que o solo tratado com agrotóxicos apenas
adoece, chegando à desertificação devido à salinização causada por adubos
químicos ou devido à retirada em excesso das fontes de água. A agricultura
moderna depende de muita irrigação, pois solo enfraquecido gera raízes
enfraquecidas e incapazes de retirar umidade suficiente das camadas mais
profundas de terra.
Alienação e esquecimento
Muitos, inclusive meus pais, deixaram o campo no início dos anos 70. Os motivos
foram vários: dívidas, muitas pragas, fatores climáticos, e enorme pressão
psicológica.
Ser “gente do campo” era, e ainda é, considerado ser de categoria inferior.
Os saberes da terra aos poucos foram, e continuam sendo, esquecidos, substituídos
por pacotes de insumos e sementes da mesma maneira que o pão dessa padaria tem
o mesmo gosto daquela. A mistura para pão, bolo e biscoito só necessita
acrescentar água.
Mas não é apenas a facilidade que impõe o pão único de cada dia. A
diversidade da vida está sendo ameaçada por condições de mercado maiores que
as que vemos na correria das cidades. Agricultores do mundo inteiro estão sendo
condicionados a esquecer sua autonomia, seu direito de escolher o que comer, o
que plantar e para quem vender. O presidente provisório iraquiano Paul Bremer,
em uma de suas ordens, instituiu a Lei 81 que proíbe agricultores iraquianos de
guardar suas próprias sementes, e assim eles devem comprar sementes a cada nova
safra.
O problema maior é que o mercado mundial de sementes é atualmente controlado
por apenas cinco grandes empresas.
Quando a origem da vida começa a ser imposta, controlada e mercantilizada,
mesmo que sejam sementes de grãos e hortaliças, não deixam de ser sementes. Nós
seres humanos estamos decidindo, por outros seres humanos e não-humanos, aquilo
que devem ser, no intervalo de tempo entre o princípio e o fim. Na tensão econômica,
a corda também arrebenta do lado mais fraco.
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Clarissa Tag trabalha com alimentos agroecológicos e é
editora de ECOLOGIA da Revista Consciência.Net
(www.consciencia.net)
Fonte: http://www.consciencia.net/2005/mes/08/asemente-clarissa.html