Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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04/09/2014 (Nº 49) PLANEJAMENTO E GESTÃO AMBIENTAL EM ESCALA DE BACIA HIDROGRÁFICA: PRINCIPAIS DIFICULDADES NO MANUSEIO DE FERRAMENTAS COMPUTACIONAIS
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Uso de Sistemas Soporte a la Decisión en Planificación y Gestión Integradas de Recursos Hídricos

PLANEJAMENTO E GESTÃO AMBIENTAL EM ESCALA DE BACIA HIDROGRÁFICA: PRINCIPAIS DIFICULDADES NO MANUSEIO DE FERRAMENTAS COMPUTACIONAIS

 

Prof. Marcio Ricardo Salla

Doutor em Hidráulica e Saneamento, Faculdade de Engenharia Civil/Universidade Federal de Uberlândia

mrsalla@feciv.ufu.br

 

Profª Maria Lígia Chuerubim

 Mestre em Ciências Cartográficas, Faculdade de Engenharia Civil/Universidade Federal de Uberlândia

marialigia@feciv.ufu.br

 

 

RESUMO

 

As ferramentas de auxílio ao planejamento e gestão ambiental, mais especificamente com relação aos recursos hídricos em escala de bacia hidrográfica, sofreram um imenso avanço na capacidade de tomada de decisões nas últimas décadas. A interdisciplinaridade inerente à implementação e aplicação dessas ferramentas suportes dificultam seu correto manuseio, cujos manuais técnicos apresentam uma linguagem complexa e direcionada a profissionais experientes. Os usuários iniciantes apresentam déficits de conhecimentos básicos de hidrologia, hidráulica fluvial, geoprocessamento e cinética de reação, cujos tópicos foram discutidos neste artigo. Também foram apresentadas técnicas para compilação e tratamento dos dados ambientais de entrada para as modelagens matemáticas, relacionados à dados históricos associados à precipitação, a quantidade e a qualidade de água superficial, inconsistentes em todo o território brasileiro. Observa-se que, para o adequado planejamento e gestão ambiental, o usuário deve ter pleno conhecimento sobre a situação real na bacia hidrográfica e, a partir daí, definir prognósticos. Paralelamente, enfatiza-se que o entendimento dos manuais técnicos, vinculados às ferramentas computacionais, é fundamental para o uso integral das potencialidades dessas ferramentas.

 

Palavras-chave: Planejamento e gestão ambiental, ferramentas computacionais, recursos hídricos e bacia hidrográfica.

 

1. Introdução

 

            Nas últimas décadas, em função do aumento na capacidade de processamento dos computadores, as ferramentas de auxílio ao planejamento e gestão ambiental, mais especificamente com relação aos recursos hídricos em escala de bacia hidrográfica, sofreram um imenso avanço na capacidade de tomada de decisão. Em todo o mundo existem muitas ferramentas computacionais, com complexidades matemáticas distintas e úteis à gestão de múltiplos usos da água, tais como Hec-Ras (Fan et al., 2009), Modflow (Xu et al., 2012), Topmodel (Chen & Wu, 2012), Aquatool (Paredes-Arquiola et al., 2010), Wargi-Sim (Sechi & Sulis, 2009), entre outros. 

            A partir da década de 30, o comprometimento da qualidade da água superficial nos municípios com elevadas densidades populacionais impulsionou o surgimento dos primeiros modelos de qualidade da água que, com o passar do tempo, tornaram-se cada vez mais completos (De Paula, 2011). Atualmente, os modelos com maior aceitabilidade são Qual2E e Qual2K (Chapra et al., 2008), Wasp (Yenilmez & Aksoy, 2013), Aquatox (Mamaqani et al., 2011) e Gescal (Paredes-Arquiola et al., 2010).

            A implantação de planos de recursos hídricos em escala de bacia hidrográfica impulsionou a incorporação de ferramentas de Sistema de Informação Geográfica (SIG) aos modelos de planejamento e gestão ambientais, com destaque para trabalhos desenvolvidos por Argent et al. (2009), Zhang et al. (2011) e Sulis & Sechi (2013).

            Na implementação e aplicação dessas ferramentas suportes atuam profissionais de diversas áreas do conhecimento, tais como programadores computacionais, ambientalistas, engenheiros hídricos, geógrafos, engenheiros cartógrafos, químicos, biólogos, entre outros. Focando-se no usuário iniciante, seja aluno de iniciação científica, mestrado, profissional ou recém-formado, esta enorme interdisciplinaridade pode dificultar o manuseio correto das ferramentas.

            De uma forma geral, os usuários iniciantes apresentam déficits conceituais com relação ao tema cinética de reações. Engenheiros Civis possuem conhecimentos limitados sobre ferramentas de geoprocessamento e suas aplicações em recursos hídricos. Geógrafos não apresentam conhecimentos mínimos de hidráulica fluvial e hidrologia em escala de bacia hidrográfica. São frequentes e numerosos os questionamentos de ordem conceitual feitos pelos alunos de diversas áreas, em consequência da inexistência de tais assuntos nas grades curriculares dos referidos cursos de graduação.

            O objetivo deste artigo é auxiliar estes usuários, principalmente de regiões nas quais existem limitações de dados quantitativos e qualitativos monitorados por órgãos públicos e privados, na utilização de ferramentas computacionais de suportes à decisão em recursos hídricos. Nesta perspectiva, são elencados e discutidos conceitualmente temas aos quais os usuários apresentam dificuldades, tais como hidrologia, hidráulica fluvial, geoprocessamento e cinética de reação.

            Também são apresentadas algumas metodologias para correta compilação de dados de entrada requeridos pelas ferramentas de gestão integrada de recursos hídricos.

 

2. Desenvolvimento

 

            As ferramentas computacionais de suporte à gestão ambiental, especificamente relacionadas aos recursos hídricos, de uso livre ou não, possuem manuais que, na maioria dos casos, apresentam uma linguagem complexa e direcionada à profissionais experientes.

            Para que o usuário iniciante consiga compreender o conteúdo informativo e relacionar os dados mínimos necessários à modelagem, o mesmo necessita de alguns conhecimentos básicos de hidrologia, hidráulica fluvial, geoprocessamento, cinética de reação e de técnicas para compilação e tratamento dos dados, que são descritos na sequência.

 

2.1 Hidrologia

 

            A hidrologia procura estabelecer as relações dos recursos hídricos superficial, subsuperficial e de base em uma bacia hidrográfica, levando-se em consideração a variabilidade temporal e espacial. Aqui é dado enfoque à principal variável envolvida na modelagem quantitativa e, consequentemente, na modelagem qualitativa em cursos de água naturais: a vazão superficial. Dentro da modelagem de qualidade da água em rios, a vazão superficial ou precipitação efetiva é a que possui a maior importância devido à sua elevada velocidade de transporte e diluição das substâncias poluentes. Neste contexto, o usuário deve possuir conhecimentos básicos sobre a determinação da vazão superficial em campo, vazão de referência, regionalização de vazão e descarga específica.

 

Vazão superficial em campo

            A falta de dados de vazão superficial é um empecilho ao adequado planejamento e gerenciamento dos recursos hídricos. No Brasil, devido ao alto custo de implantação e manutenção, existem deficiências de dados fluviométricos históricos (SALLA et al., 2013).

            Em uma estação fluviométrica, indiretamente, a vazão é obtida por meio da relação entre o nível líquido na seção transversal e sua correspondente vazão média, relação esta chamada curva-chave. A estação fluviométrica é uma instalação hidráulica, situada às margens da seção transversal de interesse, onde são instaladas réguas linimétricas ou linígrafo para medição da variação temporal do nível líquido. As Figura 1(a) e 1(b) ilustram, respectivamente,  uma instalação típica de estação fluviométrica e um exemplo de curva chave.

 

 

            Na escolha da seção transversal deve-se considerar alguns aspectos: facilidade de acesso, proximidade com uma unidade de estudo que garanta constante supervisão, geometria da seção transversal bem definida e trecho de rio retilíneo com escoamento bem tranquilo (preferencialmente com número de Froude (Fr)  inferior à 1).

            Na prática, o método área-velocidade é o mais utilizado na determinação da vazão média. Neste método, simplesmente multiplica-se a velocidade média do escoamento pela área da seção transversal do curso de água natural. De acordo com Salla et al. (2013), o traçado da seção transversal pode ser obtido com equipamentos específicos, como teodolito e ecobatímetro.      Adicionalmente, a velocidade média do escoamento pode ser determinada por medições diversas e pontuais com equipamento molinete ou pela medição instantânea da varredura da seção transversal com o equipamento Acoustic Doppler Current Profiler (ADCP). Todavia, a escolha do equipamento está diretamente relacionada com a disponibilidade financeira e técnica. Desta forma, se por um lado o equipamento molinete é o mais barato e não necessita essencialmente de mão de obra especializada, por outro, o equipamento ADCP, além de apresentar um alto custo, deve ser utilizado por uma equipe técnica previamente treinada. Além disso, os resultados alcançados com a utilização do ADCP são mais precisos. Apesar das limitações práticas quanto à utilização do equipamento molinete em cursos de água com elevada seção transversal, ainda assim é muito utilizado em regiões com poucos recursos.

            Na sequência é apresentado um roteiro prático para à determinação da vazão média com a utilização do equipamento molinete.

- tendo-se como base um cabo de aço demarcado, fixam-se algumas verticais fictícias distanciadas a cada 1 metro, e que formam subáreas transversais (Figura 2);

 

 

 


- a partir destas subáreas transversais, são obtidas as velocidades pontuais em pontos específicos de tais verticais, cuja quantidade de pontos é função da profundidade de cada subárea;

- a vazão total é a soma das vazões nas subáreas, calculadas pela multiplicação da velocidade média por sua correspondente subárea.

 

Vazão de referência

            A vazão de referência é definida a partir do objetivo da modelagem de qualidade da água (VON SPERLING, 2007). Considera-se:

- Escala diária ou mensal da vazão média, em um determinado período, para calibrar e validar os coeficientes integrantes das formulações matemáticas;- A vazão média anual ou vazão média em meses chuvosos ou em meses de seca para simular uma situação específica;

- A vazão mínima é utilizada no planejamento dos recursos hídricos, para definir a liberação ou não de outorga para captação de água e de lançamento de efluente tratado e para determinar processos e eficiências mínimas de tratamento em estação depuradora. Para isso, realiza-se o estudo da capacidade de autodepuração do curso de água diante da situação mais crítica possível, em que a capacidade de transporte e diluição de poluentes é mínima. A capacidade de autodepuração é avaliada a partir da conformidade ou não dos parâmetros ambientais com os valores limites definidos pelos órgãos governamentais. No Brasil, as Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA 357:2005 e 430:2011 são, respectivamente, responsáveis pela classificação dos cursos de água no território nacional e pelas condições e padrões de lançamento de efluente.

 

            As vazões mínimas de referência mais utilizadas no planejamento de recursos hídricos no Brasil são Q90, Q95 e Q7,10. As vazões de referência Q90 e Q95 são, respectivamente, as vazões nas quais 90% e 95% dos dados históricos são iguais ou superiores a ela. Já a vazão de referência Q7,10 compreende a vazão mínima, em  7 dias consecutivos, para um período de 10 anos de dados históricos. As metodologias de cálculo destas vazões de referência são apresentadas detalhadamente em Von Sperling (2007) e Chapra (2008).

 

Regionalização de vazão e descarga específica

            O território nacional é deficitário na quantidade de estações fluviométricas em operação, onde as prioridades situam-se em outros setores da administração pública. Esta situação não permite que a vazão mínima ou crítica seja calculada a partir de dados históricos e, consequentemente, acarreta na necessidade da regionalização da vazão.

            Na regionalização de vazão, a maneira mais simples, porém menos precisa, de associar dados quantitativos entre bacias hidrográficas distintas é por meio da descarga específica, em hm3.mês-1.km-2 ou m3.s-1.km-2. Este procedimento deve ser aplicado em bacias hidrográficas que possuem características similares quanto ao clima, cobertura do solo, tipo de solo, topografia, entre outras. Existem duas possibilidades para a regionalização da vazão, que depende do local onde existem os dados quantitativos. Na Figura 3(a), os dados quantitativos existentes estão situados na foz de uma sub-bacia vizinha, enquanto que, na Figura 3(b), os dados existentes situam-se na foz da bacia hidrográfica cuja sub-bacia sem dados está inserida.

 

 

 


            Primeiramente, deve-se calcular a vazão específica no ponto com dados existentes (em hm3.mês-1.km-2 ou m3.s-1.km-2). Na sequência, a vazão em outra bacia hidrográfica sem dados de referência é estimada por meio da multiplicação de sua área de drenagem (em km2) pelo valor da vazão específica.

 

Hidráulica fluvial

            A modelagem de qualidade da água, realizada por meio de ferramentas computacionais, possibilita que um trecho de curso da água seja discretizado em vários subtrechos, cujas características hidráulicas podem assumir valores diferentes em função das variações geométricas na seção transversal, na declividade e no tipo de material de fundo e do talude.     Para a maioria das ferramentas existentes atualmente, o escoamento nos subtrechos é considerado permanente e uniforme, nos quais as relações hidráulicas da velocidade média v, do nível líquido h e da largura de superfície L em função da vazão Q podem ser obtidas pela equação de Manning ou por relações potenciais. Independente da equação utilizada o usuário deve, inicialmente, para cada trecho ou subtrecho de estudo, definir a forma geométrica da seção transversal. Usualmente, em regiões onde não existentes dados de campo, utiliza-se a forma trapezoidal com inclinações dos taludes similares.

            Com relação à equação de Manning, os dados de entrada são: coeficiente de rugosidade de Manning η (m-1/3.s), largura b da base do canal (m), declividade de fundo I (m/m) e declividade α dos taludes (graus). A partir dos dados de entrada, a ferramenta relaciona internamente o nível líquido h, a velocidade média v e a largura da superfície L com a vazão Q. Iterativamente, a profundidade média h é obtida diante da igualdade da função do escoamento (que depende da vazão Q, da declividade de fundo I e da rugosidade das paredes η) com a função geométrica da seção transversal (que depende da largura da base b, declividade do talude α e da profundidade média h), cuja formulação matemática está ilustrada na equação [1].

 

                (Q.η)/I1/2 = [(b.h+h2.cotgα)5/3]/{b+2.[h2.(cotgα+1)1/2]}2/3                                      [1]

           

 

Na prática, em função da baixa declividade longitudinal existente em um curso da água natural, estima-se a declividade de fundo como a diferença entre as cotas topográficas iniciais e finais do trecho dividido pela distância longitudinal. Já as rugosidades das paredes são tabeladas e podem ser consultadas em Von Sperling (2007), Vianna (2007),  Netto et al. (1998), entre outros.

A relação da largura de superfície L com a vazão Q é obtida pela equação [2]. E, de acordo com a equação da continuidade, a relação da velocidade média v com a vazão Q é obtida por meio da equação [3].

 

L(Q) = b+2.h(Q).cotgα                                                               [2]

v(Q) = Q/(b.h(Q)+h2(Q).cotgα)                                                          [3]

                                                                                                            

No tocante às relações potenciais, as mesmas podem ser utilizadas somente quando, em um determinado trecho de rio, existem dados históricos de nível líquido h. A relação potencial         h = α1.Qβ1 pode ser obtida diretamente no software Excel, no qual as constantes α1 e β1 são ajustadas por linha de tendência potencial ou por outro método de otimização (por exemplo, Solver). As relações hidráulicas entre a vazão média Q com a velocidade média v           (v = α2.Qβ2) e com a largura de superfície L (L = α3.Qβ3) são obtidas da mesma forma, em função dos pares de valores v,Q e L,Q, calculados por meio das equações [2] e [3], respectivamente.

 

 

2.2. Geoprocessamento

 

            A escolha de ferramentas de geoprocessamento, úteis no planejamento e gestão ambiental em escala de bacia hidrográfica, compreende uma questão extremamente complexa, embora seja uma premissa do sistema de gestão educacional na formação de profissionais da área. Esta constatação causa grandes e graves implicações, dentre as quais a desmotivação e alienação da equipe técnica envolvida em determinado projeto.

            Com base nesta problemática, deve-se refletir sobre os métodos de trabalho e teorias de ensino, adequando-as aos avanços tecnológicos. Segundo Valente (1993), utilização de recursos computacionais no ensino não significa que o aluno vá aprender essencialmente sobre determinada ferramenta computacional, mas destaca a relevância da utilização destes recursos como um meio didático interdisciplinar.

            De acordo com Câmara et al. (2001), geoprocessamento é uma tecnologia interdisciplinar, que permite a convergência de diferentes disciplinas científicas para o estudo de fenômenos ambientais e urbanos, auxiliando efetivando ao processo de tomada de decisões, que corresponde, na prática, a um conjunto de geotecnologias que utilizam uma “linguagem comum” para as diferentes áreas do conhecimento como, por exemplo, nos cursos de Engenharia Ambiental, Engenharia Civil, Arquitetura e Geografia, Agronomia, Zootecnia, dentre outros.

            As ferramentas computacionais de geoprocessamento, dentre as quais se destacam os Sistemas de Informações Geográficas (SIG), os sistemas de posicionamento por satélites artificiais (GNSS - Global Navigation Satellite System), Sensoriamento Remoto, dentre outras, embora aplicáveis. Apresentam uma dicotomia conceitual, ou seja, embora sejam interdisciplinares, a utilização destas ferramentas demandam conhecimentos conceituais e técnicos específicos. Como exemplo, os SIGs culminam na redução dos conceitos de cada disciplina à algoritmos e estruturas de dados utilizados para armazenamento e tratamento dos dados derivados de diferentes fontes e formatos (MONICO, 2008; JENSEN, 2002; CÂMARA et al., 2001).

            O uso dessas ferramentas possibilita a integração interdisciplinar, além de contribuir ao entendimento e compreensão de fenômenos socioambientais, políticos e culturais, essenciais ao desenvolvimento e seu compartilhamento com a sociedade.

 

2.3. Cinética de reação

 

            Nos principais modelos de qualidade da água existentes na literatura, as constantes ou coeficientes de reações assumem cinética de primeira ordem. De acordo com Von Sperling (2007), os usuários iniciantes frequentemente se deparam com dois questionamentos:

 

O que é uma reação de primeira ordem?

            Imagine um composto reagente C em processo de degradação a partir de um ponto de mistura qualquer (no tempo t = 0). Assumindo-se uma reação de primeira ordem, a taxa de reação (dC/dt) é diretamente proporcional à concentração do composto reagente C, na qual dC/dt = -K.C1. Assumindo-se C = Co em t = 0, resulta que           C = C0.e-k.t. Por meio da última equação, ajustam-se os dados observados de C à curva exponencial, mediante a calibração da constante ou coeficiente K. A unidade de K depende da escala temporal adotada nas simulações (por exemplo, assume dia-1 quando a escala for diária).

                                                             

Como interpretar o coeficiente de reação de primeira ordem?

Basicamente, o coeficiente retrata a proporção de contaminante removida no tempo. Adotando-se k = 0,15 dia-1,  interpreta-se este valor como um decréscimo de 0,15 mg/L.dia para cada 1,0 mg/L de contaminante remanescente. Por exemplo, para uma concentração de contaminante de 5,0 mg/L no tempo t = 0, após um dia de percurso, seria removido 0,15.5,0 = 0,75 mg/L, que resultaria em uma concentração remanescente de 4,25 mg/L. Já no segundo dia de percurso, seria removido 0,15.4,25 ≈ 0,64 mg/L, com concentração remanescente de 3,61 mg/L. Para que este raciocínio tenha lógica para um valor de k ≥ 1,0 dia-1, deve-se transformar dia-1 em hora-1 ou em qualquer outra fração temporal que resulta em        k (T-1) ≤ 1,0.

 

2.4. Compilação dos dados de entrada

 

            As ferramentas de suporte à decisão em recursos hídricos  podem ou não trazer restrições quanto às séries temporais dos dados de entrada. Muitas dessas ferramentas foram desenvolvidas, inicialmente, para aplicações em países localizados no hemisfério Norte e consideram os dados de entrada a partir do ano hidrológico, que possui como data inicial o primeiro dia da estação chuvosa e como data final o último dia da estação seca. Como exemplo, para uma modelagem que engloba os anos de 2000 a 2008 para a calibração e 2009 a 2012 para a validação, os períodos mensais serão: outubro de 2000 até setembro de 2008 para a calibração e outubro de 2008 até setembro de 2012 para a validação.

            No processo de modelagem quantitativa e qualitativa da água, a etapa mais trabalhosa e mais demorada refere-se à coleta e organização dos dados de entrada, uma vez que exige a participação direta de outros profissionais da área de recursos hídricos. Nesta fase, o usuário necessita de muitos dados, coletados em locais distintos e em diferentes épocas, o que conduz a necessidade de buscar informações e/ou dados em diferentes setores da sociedade civil, como em órgãos privados e públicos, tais como autarquias de água e esgoto municipais e estaduais, empresas responsáveis pelo gerenciamento de centrais hidrelétricas, comitês de bacias hidrográficas, instituições de ensino e pesquisa e órgãos estaduais e nacionais relacionados com a área ambiental.

            Transcorrido o período de coleta dos dados, inicia-se a etapa, não menos trabalhosa, referente à organização desses dados. O usuário deve se preocupar com a possibilidade de ausência, repetição ou duplicação dos dados e, principalmente, com sua consistência regional. Estas verificações demandam uma quantidade de tempo considerável em todo o processo de modelagem.      Neste contexto, seguem algumas recomendações:

            - Devido à importância dos dados de qualidade da água na calibração e validação do modelo, deve-se certificar sobre sua procedência;

             - Os dados de vazão e nível líquido faltantes podem ser estimados. Para isso, quando a simulação é feita em escala mensal, por exemplo, a estimativa para um mês faltante pode ser obtida pela média dos valores deste mês em anos diferentes e dentro do período de simulação. O problema da duplicidade ou repetição de dado deve ser tratado com cautela, no qual o órgão responsável pelo fornecimento destes dados deve ser consultado para melhores esclarecimentos sobre o ocorrido;

             - A ausência ou falha de registro de precipitação, em períodos variados, pode ser preenchida por diversos métodos estatísticos, tais como método de ponderação regional, método de regressão linear e método de ponderação regional com base em regressões lineares. Em função da facilidade no manuseio e aos bons resultados, o método de regressão linear apresenta elevada aceitação, o qual correlaciona os dados falhos de precipitação de um posto de monitoramento com dados existentes de um posto vizinho por meio de equação linear;

            - É necessário também analisar a consistência dos dados de precipitação de um posto de monitoramento frente aos dados de um posto vizinho (ou seja, verificar a homogeneidade regional). Os dois métodos mais conhecidos são: método da dupla massa e método do vetor regional;

            - Os dados de entrada de precipitação em uma bacia hidrográfica são obtidos a partir de estações pluviométricas existentes dentro da bacia em estudo e de sua vizinhança mais próxima. Estes dados podem ser calculados de duas maneiras.  Na primeira, estima-se a precipitação média na bacia hidrográfica considerando-se uma lâmina de água uniforme em toda a área para um determinado período de tempo, cujos métodos mais usuais e com distintas peculiaridades são: método da média aritmética, método de Thiessen e método das isoietas. Já na segunda, estimam-se os dados de precipitação em um único ponto na bacia hidrográfica, que pode ser o centróide ou um outro ponto representativo, a partir dos dados existentes em estações pluviométricas vizinhas. Para isso, são frequentemente utilizados os modelos determinísticos locais, cuja representação matemática da equação de interpolação está ilustrada na equação [4].

 

 

                                                                 [4]

           

 

Em que:  Pi refere-se ao o valor da precipitação no centróide ou em outro ponto representativo i, Pj  compreende  a precipitação em uma estação pluviométrica vizinha j e fij é um fator de ponderação. As alternativas com relação aos interpoladores são: vizinho mais próximo, média simples e média ponderada.

            A interpolação por vizinho mais próximo é pouco utilizada, pois considera que o valor da precipitação no centróide ou em um ponto representativo na bacia hidrográfica é igual ao valor da estação pluviométrica mais próxima, sem interpolá-lo. A interpolação por média simples considera que o valor da precipitação no centróide ou ponto representativo é igual à média simples dos valores encontrados nas estações mais próximas. Neste caso, o fator de ponderação fij assume valor igual a 1/n, sendo n o número de estações pluviométricas vizinhas. A interpolação por média ponderada é a mais utilizada, na qual o fator de ponderação fij assume valor igual a 1/dij2, denominado como inverso do quadrado da distância. O termo dij é a distância entre o centróide ou ponto representativo i e a estação pluviométrica vizinha j, obtida por meio de plataforma SIG. Existem outras funções de ponderação mais complexas e realísticas. Com exemplo, têm-se os estimadores de densidade não paramétricos ou Kernel estimators, que generalizam o princípio de média móvel local produzindo dados mais suaves. Outros métodos de interpolação mais sofisticados devem ser consultados na literatura da área;

            - A modelagem de qualidade da água em rio pode ser dividida em diversos subtrechos no curso de água, definidos a partir da variabilidade das entradas, demandas e estações fluviométrica e de qualidade da água. Normalmente, a existência de dados de níveis líquidos está vinculadas aos de vazão em uma seção transversal. Isso faz com que o usuário iniciante depare-se com um dilema, que é: Devo considerar as relações hidráulicas potenciais no subtrecho a montante dessa seção transversal, no sub-trecho a jusante ou em ambos os subtrechos? Normalmente, nesta situação, considera-se a metade da distância do trecho de montante mais a metade da distância do trecho de jusante para as mesmas características hidráulicas potenciais;

            - Frequentemente, em bacia hidrográfica com elevada disponibilidade hídrica superficial, a variabilidade da vazão transportada ao longo do rio principal faz com que seja inviável o monitoramento de nível líquido no médio e baixo curso de água (em função dos elevados níveis líquidos). Com isso, é usual utilizar as relações hidráulicas potenciais no alto curso de água e a equação de Manning no médio e baixo curso de água;

            - As ferramentas permitem que a demanda superficial seja introduzida de forma fixa ou variável ao longo do ano. As demandas outorgadas para o consumo humano, usos industriais e irrigação são introduzidas de forma fixa (ou seja, valores fixos em todos os meses do ano). Na existência de central hidrelétrica, a demanda turbinada deve ser introduzida de forma variável.

 

3. Conclusões

 

De uma forma geral, a utilização satisfatória de qualquer sistema de suporte à decisão requer que o usuário conheça os atributos e as limitações da ferramenta computacional. No caso de planejamento e gestão de recursos hídricos, o usuário deve ter pleno conhecimento sobre a situação real na bacia hidrográfica e, a partir daí, definir prognósticos. Os autores enfatizam que o entendimento dos manuais técnicos é fundamental para o sucesso na utilização dessas ferramentas computacionais.

 

4. Referências bibliográficas

 

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Ilustrações: Silvana Santos