Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 43) EDUCAÇÃO AMBIENTAL E CIDADANIA: ANALISANDO UM CAMPO DE SOCIABILIDADES E EXPRESSÕES POLÍTICAS EM UM PROJETO SOCIAL
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educação ambiental E CIDADANIA: analisando um campo de SOCIABILIDADES e EXPRESSÕES POLÍTICAS em um projeto social

 

 

Sérgio Botton Barcellos - Mestre em Ciências Sociais do Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade - CPDA/UFRRJ. Especialista em Educação Ambiental - UFSM. Doutorando em Ciências Sociais do Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade - CPDA/UFRRJ. E-mail: sergiobbarcellos@hotmail.com.

 

                                                              

Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira - Doutor em Educação-UFSM. Professor Associado do Curso de Ciências Sociais-UFSM, do Mestrado em Ciências Sociais-UFSM e do Mestrado em Artes-UFSM. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq "Globalização e Cidadania em Perspectiva Interdisciplinar". E-mail: holgonsi@yahoo.com.br

 

 

RESUMO

 

 

Esse artigo tem como objetivo analisar os limites e as possibilidades da atuação sociopolítica de projetos com cunho social em um contexto de pobreza e manifestação de diversas formas de exclusão social, a partir de um estudo de caso realizado em uma comunidade localizada no município de Santa Maria no estado do Rio Grande do Sul (RS). Essa pesquisa aconteceu junto ao projeto social “Educação Ambiental na Vila Kennedy”, promovido pela Organização Não-Governamental (ONG) - Centro Multidisciplinar de Pesquisa e Ação - CEMPA, que foi desenvolvido na comunidade da Vila Kennedy, em Santa Maria, durante o ano de 2007. Buscaremos elucidar de que modo o projeto influenciou por meio de suas ações educativas, as sociabilidades e as formas de expressão política na comunidade em que atuou. Tendo por base a observação participante, anotações de campo e a realização de entrevistas semi-estruturadas com integrantes da comunidade e do projeto social, nossa análise considera as influências e tensões que as ações desse projeto possam ter gerado no campo social dessa comunidade no tocante às questões políticas, socioambientais e de cidadania. A partir dessa pesquisa foi possível desvelarmos possíveis indicadores de quais limitações e perspectivas sociopolíticas que projetos sociais realizados junto a comunidades, em especial com a temática da educação ambiental, podem apresentar no decorrer da sua dinâmica social. Esse estudo ainda considera este projeto para além do espaço comunitário em questão, no qual observamos suas possíveis interfaces com o desenvolvimento social e político em comunidades de periferias urbanas. 

 

Palavras-chave: projetos sociais; educação ambiental; atuação sociopolítica; cidadania.

 

 

 

 

 

 

 

1.    O Projeto: contextualizando a ação

 

Projetos sociais, com diferentes temáticas e intencionalidades, são desenvolvidos cotidianamente, e em maior número, por instituições governamentais e não-governamentais em diversas comunidades de “risco social” nas cidades brasileiras. Uma das temáticas mais abordadas nestes projetos tem sido a Educação Ambiental junto a comunidades, escolas e grupos de moradores.

A partir de experiências e reflexões vivenciadas na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), por meio de projetos de extensão e iniciativas estudantis, em 2005 iniciaram-se os primeiros contatos com a Unidade de Saúde da Vila Kennedy (USK) por meio do Projeto VER-SUS Brasil.

A vila integra o Bairro Salgado Filho, zona norte do município de Santa Maria. O Comitê Santa-mariense de Combate a Fome e a Miséria, criado em 2003, realizou um levantamento dos bolsões de pobreza, reconhecendo vilas, como Brasília, Nossa Senhora do Trabalho e São Rafael, que são assistidas pela Unidade de Saúde da Vila Kennedy, como zonas em situação de miséria (áreas de risco) no município. Já o VERSUS - Brasil (Estágios e Vivências na Realidade do Sistema único de Saúde). Iniciativa vinculada ao Ministério da Saúde que visava trabalhar com formação política e social de estudantes dos mais diversos cursos de graduação da área de saúde.

 Por meio deste a comunidade, em especial os trabalhadores em saúde da USK, reivindicaram mais participação dos estudantes universitários em ações de assistência e extensão na localidade. Iniciaram-se assim debates e reflexões, em um grupo de estudantes da UFSM, gerando-se a idéia de um projeto, e a perspectiva de desenvolvimento de mais uma iniciativa comunitária no campo da saúde e meio-ambiente.  

Como ponto inicial do projeto, decidiu-se realizar reuniões de planejamento e discussão das metas deste com o Programa de Agentes Comunitárias de Saúde (PACS) da USK e comunidade, com periodicidade mensal. Nesse espaço de encontro e debates, dialogou-se sobre possíveis demandas que surgiriam, sendo estas inerentes as propostas de projeto que foram sendo traçadas. Optou-se então, pelo desenvolvimento de um processo de mobilização com a parceria de estudantes da UFSM, PACS, comunidade e escolas.

A realização de um planejamento participativo definiu os rumos e os objetivos do projeto, oportunizando um processo de definição dos caminhos a serem trilhados, processo oriundo de uma reflexão coletiva da realidade. Sendo assim, diversas reuniões de planejamento visando à realização de ações em Educação Ambiental na comunidade da Vila Kennedy.

As reuniões iniciais contextualizaram a comunidade a cerca do projeto “Educação Ambiental na Kennedy”, bem como, sobre o histórico, objetivos e princípios da iniciativa. Daí a necessidade de procurar abranger e compreender diversas formas de conhecimento e interação de atores, convergindo e debatendo, buscando ações e resoluções com objetivos em comum. Isso possibilitou um valor diferenciado à experiência, sendo que o processo de sensibilização ocorreu cotidianamente e não pontualmente. E, com estas atividades, nossa pesquisa teve como objetivo central, analisar os limites e as possibilidades que permeiam a relação educação ambiental e cidadania. Assim, procuramos elucidar quais os limites e as possibilidades da atuação sociopolítica de projetos com cunho social em um contexto de pobreza e manifestação de diversas formas de exclusão social, por meio de ações educativas interdisciplinares e do estímulo a cidadania.

Tendo por base a observação participante, relatos e a realização de entrevistas semi-estruturadas com integrantes da comunidade e do projeto social, nossa análise leva em consideração a influência que as ações em educação ambiental possam ter originado nas vidas cotidianas das pessoas envolvidas e de que forma promoveram o exercício da cidadania na comunidade.

As seguintes questões: a) ampliação do entendimento da comunidade sobre o tema socioambiental; b) possibilidades e limites que ações sociopolíticas tiveram no projeto em educação ambiental e c) percepção das pessoas e mudanças cotidianas na comunidade, nos oportunizaram desvelar possíveis indicadores cotidianos de limitações e perspectivas que projetos sociais em educação ambiental, realizados em comunidades urbanas em processo de pobreza e exclusão social, podem apresentar no decorrer de seu processo.

 

2. Educação ambiental e O COTIDIANO COMUNITÁRIO

 

As atividades desenvolvidas junto à comunidade, por parte do projeto, buscaram despertar nos envolvidos formas de pensar e agir sobre o meio ambiente comunitário que implicassem na inter-relação de temas como política, organização social e ecologia. Almejou-se desenvolver uma prática de educação ambiental voltada a mobilizar a comunidade, como agentes de sensibilização/instigação das pessoas em relação aos problemas socioambientais da localidade.

            O termo “socioambientais” a que nos referimos neste trabalho, seria relativo às formas de produção e reprodução social, econômica, política e cultural da sociedade em relação aos ecossistemas e biomas.

Desse modo, para apreensão de uma educação e concepção de mundo a partir da complexidade ambiental, segundo Leff (2003), torna-se necessário o desencadeamento de um processo de desconstrução e reconstrução do pensamento; de descobrir e reavivar o “ser da complexidade” que foi esquecido com o surgimento da cisão entre o ser, o sujeito e o objeto. Nesse sentido, compreender a educação como um processo social em construção e disputa, e o ato educativo de forma interdisciplinar, possibilita se avançar na crítica e em uma atuação mais consciente nas estruturas sociais e políticas (Loureiro, 2004).

 No caso do Projeto analisado, sua metodologia foi construída durante a realização da experiência e assim consolidou-se dia-a-dia. Dessa forma quando planeja-se ações com perspectivas de efetividade, participação e envolvimento é imprescindível considerar opiniões dos mais diversos setores de uma comunidade (Gandin, 2001).

Ficou claro, ao longo da experiência, um enfoque de educação ambiental pautado, por parte da comunidade, como uma forma de preservação do meio-ambiente, através de seus aspectos biológicos em destaque, mesmo que o projeto tenha estimulado ultrapassar a adesão a práticas pedagógicas tradicionais de reciclagem e acondicionamento adequado do lixo, da preservação de áreas verdes, plantio de árvores, etc.. 

Mesmo com as iniciativas de formação ambiental realizadas junto à creche, devemos considerar que a “compreensão de mundo” estabelecida hegemonicamente sob um paradigma simplificador-reducionista é permeada de diversos entendimentos entre os indivíduos, limitando a compreensão dos elementos (ambiente, sociedade e pensamento), criando um cárcere e uma incapacidade discursiva (como indivíduos e grupo social) da fala e compreensão de um mundo complexo (Viégas, 2002).

No que tange a abrangência comunitária do projeto, uma das representantes de uma organização política da Vila Kennedy (Conselho de pais da creche da comunidade) considera que as atividades desenvolvidas poderiam ser avaliadas da seguinte maneira: “Bom o terreno baldio no lado da escola ainda continua com as pessoas jogando lixo lá, essa deveria ser a próxima atividade a continuar. O pessoal tem buscado mais coletividade, pois o pessoal está cansado de esperar o poder público, mas a maioria ainda não participa”.

Demonstrou-se, no decorrer do projeto que não houve um amplo processo de mobilização em educação ambiental e cidadania, mas realizou-se o possível, na medida das condições reais e objetivas estabelecidas, levando-se em conta, as limitações estruturais e políticas da comunidade, da creche e da ONG.

            Um fator a ser ressaltado, é o impedimento de uma atuação comunitária mais consistente em torno da iniciativa, devido às atividades cotidianas de trabalho assalariado das pessoas da comunidade. Outras atividades, segundo observações e relatos, estão relacionadas ao cuidado com a família, moradia, estudo escolar e outras demais ocupações, revelaram um cotidiano que pouco permitia e/ou deixava brechas para realização de atividades fora dessa rotina.

            O questionamento e problematização desses fatores limitantes que foram identificados, apontam para a necessidade dos projetos sociais assumirem um papel mais relevante e de maior densidade política perante a realidade.

 

    

 3. O exercício da cidadania: refletindo sobre as implicações do projeto

 

O projeto social em questão nesta pesquisa tinha, como um dos seus objetivos específicos, desenvolver atividades de conscientização ambiental junto a creche e a comunidade escolar envolvida nele, e com esse processo conseqüentemente desencadear a mobilização da própria comunidade, para a superação da realidade social estabelecida e a prosseguir de forma autônoma as ações em Educação Ambiental. Explicitamos a partir de Libâneo (1994), que quando opta-se em relação a determinados métodos educativos, esses não devem reduzir-se a quaisquer medidas, procedimentos e técnicas. Isso quer dizer que, antes de se constituir em procedimentos, o método de ensino tem que estar embasado numa reflexão teórica e prática. Decorrem de uma concepção da sociedade, da natureza da atividade prática humana no mundo, do processo de conhecimento e, particularmente, da compreensão da prática educativa em determinada sociedade.

Avaliando se os objetivos do projeto “Educação Ambiental na Vila Kennedy” foram alcançados, gerando uma possível consciência ambiental, os depoimentos da comunidade escolar envolvida nele, cooperam nesse aspecto, trazendo diversas percepções e opiniões, complementando e fortalecendo nossa análise.

            Um dos membros do conselho de pais enquanto interagia em uma das atividades do projeto com as crianças na creche, questionado se a iniciativa estaria alcançando seus objetivos, relatou que “O projeto proporcionou mudanças e deu orientação e acho que tá na hora da comunidade fazer a sua parte”.

Já a educadora S., opinou que 

 

“[...] as pessoas da comunidade também foram atingidas positivamente com o projeto visto que passaram a dar mais atenção ao terreno abandonado ao lado da escola que muitas vezes os moradores deixavam animais mortos, o mato abrigava cobras, aranhas mosquitos, lixo, também passou-se a ter mais cuidado em não jogar lixo no chão,cuidar das árvores da rua...Tudo isso é reflexo de um trabalho que ultrapassou as crianças e expandiu-se em grande parte de uma comunidade.”

 

As contribuições da comunidade escolar trazem para a análise, importantes considerações, pois ressaltam a importância das atividades desenvolvidas pelo projeto tanto para os educandos da creche, bem como para a  comunidade escolar em si. As ações em educação ambiental realizadas na creche contaram muitas vezes com a participação dos pais e comunidade escolar, tanto em atividades pedagógicas focadas nas crianças como nas mobilizações comunitárias (reuniões e passeatas). 

A partir disso explicitamos a necessidade da politização do debate envolvendo o tema ambiente, bem como, a educação ambiental, pois nestas temáticas, a transformação da natureza pela ação humana e conseqüentemente das relações estabelecidas dos homens entre si são determinantes nesse sentido. Emerge assim, a questão da cidadania, por ser um campo permeado de proposições e ações, desde o âmbito institucional, quanto individual e coletivo, formal e informal, ou como evocava Paulo Freire a necessidade do indivíduo “ser e estar com o mundo”.

Seguindo essa linha, compartilhamos com Freire (1976) a idéia de que as pessoas refletindo sobre sua própria limitação poderão ser capazes de libertarem-se, sendo transformadores de sua realidade condicionada e conformadores de uma prática consciente.

Uma das dimensões talvez a principal, em que o projeto “Educação Ambiental na Vila Kennedy”, procurou atuar foi desenvolvendo um conjunto de atividades direcionadas à relação cidadania e ambiente comunitário.

Desse modo, quando o projeto iniciou suas atividades em educação ambiental, buscou potencializar essa iniciativa como uma relação de “mão dupla”, visando à expansão dessas ações conjuntas entre comunidade escolar e vila Kennedy. Com isso vem à tona uma das questões que norteia nossa análise, ou seja, que não basta apenas questionar e querer transformar a estrutura e as ações educativo-pedagógicas em si, mas também se deve considerar o contexto social que envolve e interage com a estrutura educacional.

A partir dessa relação entre a creche e a Vila Kennedy, constitui-se um campo social que se inter-relaciona sob múltiplas formas de sociabilidade. Sob essa perspectiva não cabe delegar a escola mudar isoladamente alguma realidade social ou seu próprio contexto, bem como, decretar que a mesma seja um ponto central de mudança na comunidade. A transformação do cotidiano comunitário proposta nesse caso (em relação ao projeto analisado), está no fato de constituir a creche como mais um ponto de apoio da comunidade para a elaboração de idéias e propostas comunitárias, usando-se como meio a temática socioambiental.

Sendo assim, observamos, com o decorrer dos acontecimentos, a inviabilidade de atividades calcadas na educação tradicional prosperarem, ainda mais em uma área de periferia urbana com um processo de exclusão social latente, pauperismo entre muitos moradores, trabalhadores formais e informais com alta carga horária de trabalho.

O processo de exclusão social aqui referido tem um sentido multidimensional. A exclusão social, segundo Sposati (1996) seria a impossibilidade tanto pessoal quanto coletiva das pessoas partilharem da sociedade, tendo como cotidiana a privação sob diversos aspectos. Sendo assim trata-se de uma lógica que envolvem várias relações econômicas, sociais, culturais e políticas da sociedade brasileira, incluindo fatores como pobreza, discriminação, subalternidade, não equidade, não acessibilidade e não representação pública. 

Ao olhar a comunidade quando executa-se como estudante, extensionista e/ou agente de ONG um projeto comunitário, deve-se ter em mente que este projeto realiza-se com o intuito de beneficiar também a comunidade, e que nesse contexto podem abrir-se possibilidades de participação, interação e aprendizagem de seus integrantes. O termo beneficiar nesse caso é relacionado como o apontamento de caminhos para a autonomia, cidadania e estímulo a iniciativas endógenas da comunidade escolar, distinguindo-se da cultura paternalista, assistencialista e oportunista que está impregnada socialmente como senso-comum em diversas iniciativas comunitárias.

Segundo COSTA NETO (2004), quando atores de diferentes espaços sociais (comunidade/participantes do projeto) entram em contato, o significado e o valor dos elementos (sejam sociais ou naturais) e as atividades que se propõem a desenvolver juntos, devem ser exaustivamente negociadas para que tais atores compreendam de forma compartilhada o cenário específico em que se movem. Isto implica na formação de processos de transferência de conhecimento (e de transformação) e, portanto provoca a construção e reconstrução social dos espaços socioambientais.

Uma das questões que sempre foram muito debatidas com a equipe do PACS – USK, desde a realização das iniciativas em educação ambiental no âmbito geral da comunidade, seria de desenvolver o projeto, como muitos participantes falavam nas reuniões de planejamento, no “ritmo do pessoal”. Com isso, foi buscado sempre antes de desenvolver as ações do projeto, verificar a disponibilidade da comunidade em participar conjuntamente das atividades, tornando-se uma das formas encontradas para estimular o envolvimento e o sentimento de pertencimento da população em relação à iniciativa.

A metodologia adotada acabou se tornado também uma forma de avaliar a receptividade do projeto junto à população local. Em relação à creche, essa forma de atuar foi muito ressaltada nas reuniões pedagógicas com as educadoras e com os pais das crianças.

Desse modo, quando falamos em cidadania e autonomia, estamos propondo também, no âmbito da educação ambiental, instigar um processo de tensão entre a ação pedagógica escolar atuante na ampliação dos espaços de cidadania junto à sociedade e o atual estado de precariedade, tanto estrutural quanto educativo, da educação pública.

Através do projeto entendemos também que o desenvolvimento de atividades estimuladoras de processos de cidadania (como por exemplo, reunião ampliada com a comunidade), não se trata de um processo “tranqüilo” e não deve ter como objetivo principal “agradar a todos”.Durante as reuniões do projeto e ações com a comunidade escolar para o desenvolvimento de ações voltadas ao exercício da cidadania e da reflexão, provocaram-se desconstruções de comportamentos, questionamento de atitudes tradicionalmente convencionadas e desestabilização de relações de hierarquias locais e sociais legitimadas.

Desta maneira, trata-se de um processo não-consensual, permeado de conflitos e interesses dos mais diversos matizes. Relações sociais amigáveis construíram-se no decorrer desse processo, mas como um dos objetivos do projeto era proporcionar espaços para esclarecer e pensar mudança social, atividades e conversas tornaram-se impraticáveis como concessão de conveniências altruístas em manutenção de um bem-estar e tranqüilidades, incoerentes com a realidade imposta. Portanto, mesmo captando-se todas as dificuldades em desenvolver processos consistentes de mobilização e conscientização da comunidade em relação ao seu ambiente comunitário, e tomando posições políticas polêmicas no decorrer do projeto que poderiam afastar participantes e pessoas, optamos em trilhar caminhos distintos de muitas outras iniciativas. 

Em relação à creche, consideramos que os fatos que ocorriam na comunidade influenciavam diretamente esta, pois estando inserida no entorno comunitário, recebe pressões e coerções sociais das mais diversas formas para ajustar-se em determinado contexto dominante na comunidade.

No projeto em avaliação, destacamos como desafio, a realização de discussões sobre um terreno baldio que era utilizado como depósito de lixo comunitário ao lado da escola. Uma das estratégias iniciais de atuação em relação a este terreno baldio seria de, ao invés de realizar uma simples e resolutiva limpeza, iniciar uma campanha educativa entre a comunidade escolar e os moradores próximos ao terreno. Os debates em relação ao revigoramento deste terreno baldio não surgiram por parte da creche por questões de estética e limpeza, mas sim de saneamento ambiental e ocupação do terreno para atividades públicas e da creche. Portanto acreditávamos que o terreno poderia deixar de ser o “depósito de lixo público” de alguns moradores da localidade.

A função de nossa equipe, conforme planejamento em relação a essa atividade era desenvolver idéias e ações em educação ambiental para atuar frente o caso, e as educadoras teriam autonomia em optar quando acionar e executá-las, de preferência quando houvesse uma conjuntura adequada e um maior apoio comunitário. Justificamos tal opção devido a supostas pressões e/ou retaliações por parte de alguns membros da comunidade não interessados em mudar essa situação relativa ao terreno, ou seja, continuar utilizando-o como depósito de lixo. Desse modo, a cada dia, foram expostos e desvelados os objetivos do projeto social em educação ambiental desenvolvido em conjunto com a creche.

Avaliamos que apenas realizando a limpeza do terreno, sem discutir e debater na comunidade escolar a importância e o protagonismo que esta deveria ter no revigoramento daquele espaço, apenas estaria se reproduzindo mais uma ação automatizada e ineficaz. Atitude esta que não promoveria o devido debate sobre cidadania e a mobilização comunitária necessárias na solução dos problemas inerentes a localidade. Entretanto deixamos claro, que a educação ambiental nesse caso, como em tantos outros, não deve ser concebida como a solução de todos os problemas socioambientais, mas pode constituir-se como um importante meio para enfrentamento destes.

Em seus depoimentos, as educadoras relataram que houve mudanças de alguns hábitos comunitários, enfatizando a diminuição do acúmulo de lixo no terreno localizado ao lado da creche, o qual estava sendo utilizado como um “depósito” de lixo doméstico. Esse acontecimento pontual, que não necessariamente aponta mudança de consciência, para Carvalho, (2004), pode ser um dos caminhos e possibilidades de transformação que desponta da convergência entre mudança social e ambiental.

No que tange a relação existente entre cidadania, meio ambiente e educação, afirmamos que esta relação não vem à tona de maneira gratuita ou como destino, mas emerge de discursos e práticas historicamente construídas, ou seja, como uma preocupação socioambiental elaborada a partir dos desafios da prática social cotidiana.

 

4. Limites QUE INSTIGAM possibilidadeS: CAMINHOS E DESCAMINHOS EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

 

Com base em nosso projeto, afirmamos que um processo de sensibilização da comunidade escolar pode fomentar iniciativas que transcendam o ambiente escolar, atingindo tanto o bairro no qual a escola está inserida como comunidades mais afastadas nas quais residam alunos, professores e funcionários. Souza (2000) afirma, inclusive, que o estreitamento das relações intra e extra-escolar é bastante útil na conservação do ambiente, principalmente do ambiente da escola. 

A relação do projeto “Educação Ambiental na Vila Kennedy” com a educação formal, em especial a creche, além de ter se proposto a atuar em caráter comunitário, teve fortes traços extensionistas. Para os estudantes oriundos da UFSM que participaram das atividades, mesmo a iniciativa não sendo ligada a instituição acadêmica formadora destes, proporcionou-lhes uma intensa experiência de contato e vivência com a comunidade do Bairro Salgado Filho. A extensão entendida como prática acadêmica que interliga a universidade nas suas atividades de ensino e de pesquisa com as demandas da maioria da população, possibilitou uma formação profissional e social diferenciada.

No decorrer do projeto, apesar de suas dificuldades, optou-se em realizar esforços no sentido de promover atividades de extensão não difusionistas e sem imposições, pautando-se em desenvolver conforme Freire (1988) metodologias participativas e dialógicas. As especificidades/dificuldades dos agentes endógenos (comunidade escolar da creche) e exógenos (projeto em questão) eram levadas em consideração. Através dessa forma de diálogo, buscamos evitar o planejamento de ações e discussões do projeto apenas como forma de “cumprir” agenda e/ou que não pudessem ser realizadas de forma coletiva e refletida com a comunidade.

O projeto oportunizou o contato das crianças, comunidade e educadores com o tema ambiental, e isto proporcionou momentos de reflexividade sobre os problemas ambientais enfrentados na comunidade local e na sociedade em geral.

Precisamos também avaliar que, as dificuldades para continuidade das ações, é uma questão comum à comunidade, a ONG e aos participantes do projeto. Ao término do projeto, a ONG não possuía um contingente de pessoas capacitadas e com disponibilidade para levar a frente o trabalho junto a Vila Kennedy e a creche.  

Avaliamos que a temática ambiental é percebida como uma demanda de pouca importância em relação a outras, como geração de renda por exemplo. Dessa forma a educação ambiental corre o risco de gradativamente naturalizar-se como algo alheio à reprodução social e sobrevivência das pessoas. Apesar do reconhecimento social da sua importância, há uma falta de disponibilidade ou motivação tácita para realização de ações educativas na creche e na comunidade.

Assim em um estado de reduzida autonomia, quando seus sujeitos fazem a opção de ausentar-se ou não atuar em relação a temas de seu interesse, o campo social, como pensou Bourdieu (1997), apresenta fracas potencialidades de refratar os conflitos do espaço social geral, como o socioambiental, por exemplo.

            Concluímos reafirmando que a temática “educação ambiental”, desperta nos grupos sociais (comunidade de uma vila e/ou escola) novas formas de compreensão e reflexão. Com isto, abrem-se diversas possibilidades para realização de práticas interdisciplinares, renovação da estrutura escolar, ampliação do olhar da comunidade sobre suas problemáticas, o que leva a uma interferência crítica e responsável sobre a realidade, e conseqüentemente, práticas de cidadania e de construção da autonomia, tanto individual como coletiva.

Nesse sentido cabe chamar a atenção, que junto ao ensino formal é importante o planejamento de ações em educação ambiental ao longo de todo ano letivo, não somente em meses e datas específicas alusivas ao meio ambiente (dia da árvore, água, dos animais, etc.), pois além dessas atividades serem esporádicas e isoladas, tratam a temática ambiental de forma descontextualizada curricularmente e numa perspectiva epistemologicamente empobrecedora.

             Tendo por base as questões que nortearam nosso trabalho e esta análise, podemos dizer que este projeto deve ser observado não como um modelo a ser seguido e reproduzido, mas como um exemplo para estudantes, multiplicadores e trabalhadores em educação, dos possíveis (des)caminhos que as iniciativas em educação ambiental podem ter. Desse modo, instiga-se o desafio da busca de uma atuação calcada na proposição de processos de formação, assumindo-se enquanto educação permanente. 

           

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Ilustrações: Silvana Santos