Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
Da memória ao
desencantamento, as evidências do cotidiano – Sobre as
fotografias que não fiz. Profª MSc. Cláudia Mariza
Mattos Brandão[i] Resumo: A crise ecológica remete a um colapso global -
social, político e existencial - que se configura como uma situação histórica
peculiar, colocando a subjetividade como um parâmetro diferenciador na
constituição das individualidades emergentes. O
pensamento ecológico tem vários aspectos que o constituem. O ético, por
exemplo, nos leva a questionar sobre o tipo de relacionamento que nós, humanos,
mantemos com o mundo. A
crise ecológica remete a um colapso global - social, político e existencial -
que se configura como uma situação histórica peculiar, na qual o
esvaziamento das antigas ideologias, das práticas sociais e das políticas
tradicionais colocam a subjetividade como um parâmetro diferenciador na
constituição das individualidades emergentes. Hoje
em dia a problemática ecologista da forma como está posta nos permite
articular a questão urbana com a questão ética, o público com o privado, o
social, o ambiental e o mental. E para caminharmos nesse sentido deveremos
experimentar novas instâncias de análise. A cidade é uma galáxia
a mover-se desigual... (...) que em seu girar
arrasta nossas vidas, nossas casas, nossas caixas de
lembranças cheias de papéis velhos e fotos doidas. De olhos que nos fitam
de tempo algum Agora que são apenas
manchas E não obstante falam
ainda na poeira do cemitério doméstico. Galáxia,
Ferreira Gullar. Desde
1995 fotografo sistematicamente o cotidiano da cidade do Rio Grande, tenho um acervo de aproximadamente três mil imagens.
Ao longo desses dez anos minha câmera
revelou muitas surpresas, desde as mais belas paisagens daquela que é o berço
da colonização lusitana no estado do Rio Grande do Sul, até bizarras combinações,
que mostram um espaço ultrajado, desconsiderado e desrespeitado por seus
habitantes e pelo poder público. O
que começou como um exercício do olhar
transformou-se em pesquisa. Essa prática despertou em mim uma sensação de estranhamento, que, por sua vez, abriu meus olhos para a dimensão
ética do relacionamento dos seres humanos entre si e com a natureza,
determinando minha inserção na área da Educação Ambiental.
Sobre as fotografias... algumas foram elaboradas, outras capturadas como
flagrantes, e muitas permanecem somente na memória... Entretanto, todas remetem
à singular questão da degradação nas relações sociais, políticas e
naturais do homem urbano ocidental.
Para escrever, geralmente o faço conduzida por imagens visuais, porém,
as mentais, que só existem na minha memória, também são inspiradoras. Dentre
as muitas fotografias que não fiz, uma em particular teima em re-aparecer, presentificando o
vivido: - É a imagem de uma faixa, colocada no terceiro andar de um belo prédio,
comemorando o sucesso de um vestibulando. A faixa era mais bonita do que as
convencionais - geralmente confeccionadas em tecido de algodão branco com
letras manuscritas. Essa era de papel resistente e brilhante, fundo colorido com
os tons da pátria (verde e amarelo), impressa em computador: - Um banner,
daqueles que costumamos apresentar nos eventos acadêmicos. O texto saudava: -
Valeu, Dani!! Medicina, UCPel (Universidade Católica de Pelotas, RS), 2006.
Até aí, tudo bem! É normal nessa época do ano vermos estampada nas
fachadas de casas e apartamentos, a saudação de familiares e amigos,
reverenciando a conquista de seus estudantes. Contudo, um detalhe chamou minha
atenção: a linda “faixa” trazia no canto direito a logomarca do Governo do
Estado do Rio Grande do Sul e no esquerdo, a logomarca do Banco do Estado do Rio
Grande do Sul!! Pasmem, o povo patrocinou a comemoração do ingresso desse
jovem em uma Universidade particular... e a família não teve o menor pudor em
expor sua condição de “privilegiado”.
Minha filha também passou no vestibular para uma Universidade Federal,
porém o orçamento familiar não possibilitou nem a faixa de algodão, quanto
mais um banner!
Ninguém precisa ir à escola para
conhecer os estragos causados por comportamentos individualistas e egocêntricos,
característicos de uma mentalidade que dissolve culturas,
que lança os indivíduos numa luta desprovida de valores... que fragmenta e
separa. O desafio é entender as origens
dessas mazelas e a melhor forma de combatê-las.
Tarefa hercúlea, diria minha querida mestra Judith Cortesão... e muitas
vezes por demais frustrante, eu acrescentaria. Às vezes me sinto impotente e
irada contra os podres poderes! Creio
que como nunca é necessário o aconchego da Arte, em suas diferentes manifestações,
para iluminarmos um mundo tão sombrio. Conheces o quente
progresso debaixo das estrelas? Sabes que existimos? Terás esquecido as
chaves do reino? Terás nascido já & será que estás
vivo? Reinventemos os deuses,
todos os mitos das eras Celebremos os símbolos
das anciãs florestas profundas [Terás esquecido as lições da guerra antiga] Uma oração americana,
Jim Morrison.
País das diferenças, dos descalabros políticos e dos escândalos homéricos,
das verdes matas (queimadas!) e das nascentes (contaminadas!), da fome e do
Carnaval, da miséria e do Futebol: - Somos assim! E essa verdade que muitas
vezes choca e indigna esta estampada na epiderme da cidade, configurando nosso
imaginário.
Penso que não estamos sabendo administrar a herança deixada pela era
industrial e, como não conseguimos por
ordem na casa, empurramos a responsabilidade para as próximas gerações (-
e para a Escola!), sem ao menos refletirmos criticamente sobre as implicações
de nossas próprias atitudes.
A vida cotidiana é feita de crenças silenciosas e da aceitação tácita
de evidências que geralmente não questionamos, por nos parecerem naturais. Os
sujeitos muitas vezes são compelidos a repetirem normas e comportamentos
estabelecidos, sem se aperceberem que isso implica numa submissão precoce a um
mundo de outros, que ainda não é o
seu próprio mundo.
Perceber a realidade, é
observar e refletir! O sentido de pertencimento e responsabilidade sócio-ambiental
está relacionado ao entendimento da
identidade como algo que deve ser
descoberto em sua eterna condição de inconclusão.
Precisamos atuar no sentido de
desencadear centelhas criativas que engendrarão tomadas de consciência capazes
de novas perspectivas construtivas. Outras formas de ver e “fazer” o mundo,
de aprender e de criar, que têm nas infinitas possibilidades da imaginação
criadora, um poderoso instrumento para a tomada de consciência acerca dos
fatores subjetivos da história... e da necessidade de uma (re)fundação das práticas
políticas.
O imaginário – Esse tecido
de imagens encantadoras! – tanto pode ser utilizado como máscara para ocultar
a verdade, justificador do mundo como ele parece ser, como pode inventar o novo
em todas as áreas do conhecimento, considerando os elementos afetivos,
intelectuais e culturais. A imaginação criadora gera uma outra realidade para
re-apresentar o cotidiano em suas contradições e despertar em nós o desejo de
mudança.
Enquanto o imaginário reprodutor opera com ilusões, a imaginação
criadora opera com a invenção do novo e da mudança graças ao conhecimento do
presente.
O conhecimento do mundo no nível da consciência coletiva é possível
através da análise do imaginário urbano, encaminhando à compreensão e visão
de que a existência do homem não tem fim em sua própria pessoa e esfera
particular. A realidade existe fora de nós e é possível percebê-la e conhecê-la
tal como é, diferenciando o real da ilusão.
Figura
1: Cláudia Brandão
Fotografia digital, 2006.
Esta é a minha cidade: - a Noiva
do Mar!, um palimpsesto onde
cotidianamente apagamos e re-escrevemos nossa presença no mundo.
Sinto por essa linda Noiva tão
desprestigiada... que encontra tantas dificuldades para cativar patrocinadores!! Bibliografia: ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CHAUÍ,
Marilena. Convite à Filosofia. 13ª
ed. São Paulo: Editora Ática, 2003. MORRISON,
Jim. Últimos escritos. Lisboa,
Portugal: Assírio & Alvim, 1993. [i] Arte-educadora, mestre em Educação Ambiental, é coordenadora do PhotoGraphein: Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, grupo de pesquisa CNPq/FURG. attos@vetorial.net |