Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
27/09/2019 (Nº 69) SERÁ QUE O COTIDIANO CONFIGURA UMA ESTÉTICA DA DECOMPOSIÇÃO AMBIENTAL?
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SERÁ QUE O COTIDIANO CONFIGURA UMA ESTÉTICA DA DECOMPOSIÇÃO AMBIENTAL?

Cláudia Mariza Mattos Brandãoi



RESUMO: O artigo problematiza algumas imagens fotográficas divulgadas via internet, como propulsoras de discussões acerca dos comportamentos contemporâneos e as possíveis características de uma “estética da degradação ambiental”. Isso, na intenção de refletir acerca da emergência de pensamentos como os de Rubem Alves, visando a educação dos sentidos.

Há algum tempo eu presto atenção às imagens divulgadas nas redes sociais no dia 1º de janeiro, após as celebrações da virada de ano. Esse, um período no qual são comuns discussões acerca da queima de fogos de artifício, em cidades que ainda mantém essa prática – em Rio Grande (RS), onde moro, isso está proibido desde 2016. Entretanto, notícias mais críticas sobre os restos que repousam nas orlas do país eram mais raras, uma situação que mudou em 2019. Refletindo sobre essa postura das mídias hegemônicas, não sei se isso se deve a uma efetiva consciência crítica ou à visibilidade incontestável de comportamentos danosos.

Ao ler a frase que norteia a 69ª Edição da Revista Educação Ambiental em Ação, “Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão”, de Manoel de Barros, impulsionando o tema “Educação Ambiental é educação para reaprender a viver”, lembrei dealgumas imagens divulgadas na virada de 2018 para 2019.



Figura 1: Print screen do facebook



No dia 1º de janeiro de 2019 começou a circular, principalmente via facebook, reportagens e imagens de diferentes cidades praianas e suas orlas, cenários recorrentes para as festividades da virada. Diferentes meios de comunicação, como o jornal O Povo (Figura 1) e o portal G1ii, divulgaram o aumento de lixo descartado no Aterro da Praia de Iracema, em Fortaleza (Ceará), durante a celebração do Ano Novo. O aumento significativo da quantidade de embalagens plásticas, garrafas e pedaços de isopor, substituíram as “coisinhas do chão” da praia, como as conchas, a flora e a fauna características desses locais, pelos despejos humanos.

Na mesma linha editorial, encontrei notícias sobre a Praia de Boa Viagem, lugar frequentado por muitos turistas que visitam a capital pernambucana, Recife, como a divulgada no blog da FUNVERDEiii, uma ong sem fins lucrativos. Soma-se a essa, a do portal G1iv, dentre outras, referenciando o lixo que ocupou a orla, as calçadas e as ruas. E isso estabelece uma visão ímpar da paisagem contemporânea desses locais (Figura 2), principalmente no referido período, na qual banhistas, turistas e transeuntes disputam o espaço com o lixo.



Figura 2: Marlon Costa/Pernambuco Press

Fonte:Portal G1.



Percebam que não citei a Praia de Copacabana (Rio de Janeiro), local privilegiado para a observação do show pirotécnico (de horrores) dos fogos, sobre o qual não li textos críticosnas mídias hegemônicas. Embora as mídias alternativas questionem a utilização dos fogos de artifício nas celebrações da virada de ano,assim como o lixo que repousa nas areias de Copacabana, parece que para as demais é importante preservar a “pedra de toque” do turismo nacional, um dos “baús” que, assim como o carnaval, alimentam o mercado do turismo.Por isso, busquei afastar o foco dessa cidade, símbolo de uma imagem nacional (atualmente denegrida) e sinônimo de insumos financeiros.

Escolhi pesquisar sobre outros lugares/cidades geralmente não abordados tão enfaticamente até 2019, assim como a orla do rio Guaíba, em Porto Alegre, selecionando artigos da Zero Hora, do Correio do Povo e do Portal G1v, veiculados no dia 1º de janeiro de 2019. Não se trata de uma orla marítima, mas sim, o entorno do rio Guaíba, que margeia Porto Alegre, a capital gaúcha. Como é possível verificar (Figura 3), o acúmulo de dejetos é o mesmo encontrado nas capitais do Ceará e Pernambuco.



Figura 3: Orla do Guaíba, 1º de janeiro de 2019

Fonte: gauchazh.clicrbs.com.br



O conjunto de imagens apresentadas até aqui, incluindo as disponíveis nos links referenciados, apresentam alguns “predicados” comuns,que nos permitem pensar sobre uma “estética da degradação ambiental”, como referi no título. Trata-se do acúmulo de “restos” que se repete nas imagens, assim como desbotadas presenças anônimas que avançam agressivamente sobre as paisagens urbanas contemporâneas, não somente no primeiro dia de cada ano.As imagens nos revelam enquadramentos fotográficos cuja estética particular apresenta um amontoado de objetos, geralmente embalagens plásticas, sem forte contraste de cor ou luz, mas com considerável contraste ético: somos nós impondo à natureza a nossa incômoda presença.

Estas imagens não se constituem como meros registros do agravamento de uma situação que se repete ao longo do tempo. Mais do que isso, elas simbolicamente (re)apresentam aos olhares o resultado de mentalidades e comportamentos, que reproduzem uma visão de mundo utilitarista, para a qual o meio ambiente, natural ou urbano, está disponível para o uso humano.

Dentre todas as fotografias analisadas, uma em especial me instiga e intriga (Figura 4), detonando reflexões sobre a visualidade registrada e os posicionamentos éticos que indica. Nela vemos muitos banhistasem atitudes comuns a tantos outros em qualquer praia, não numa situação de disputa com o lixo circundante, mas, sim, numa convivência aparentemente “pacificada”. São muitas pessoas posicionadas ao sol, descansando e se bronzeando, curtindo o feriadão. Alguns estão acomodados em suas cadeiras, com suas lancheiras ao lado, como se o lixo ao redor fosse invisível, ou fosse mais um componente vital do ambiente.

Figura 4: Praia de Iracema, 1º de janeiro de 2019.

Fonte: opovo.com.br



Confesso que essa imagem me surpreende, sendo ela o estopim de vários questionamentos que agora compartilho com vocês, leitor@s, numa tentativa de estabelecer diálogos que possam reverberar positivamente, transfigurando atitudes: Por que essas pessoas não estão catando o lixo ao redor, limpando a orla? O lixo não as incomoda? Será que se sentem parte integrante desse imenso lixão a céu aberto?

Tais questões me remeteram à reflexão de Jean Baudrillard, desenvolvida no livro “A Arte da Desaparição” (1997), em especial quando nos diz que:



A fotografia é nosso exorcismo. A sociedade primitiva tinha suas máscaras, a sociedade burguesa, seus espelhos, nós temos nossas imagens. Nós acreditamos forçar o mundo pela técnica. Mas pela técnica é o mundo que se impõe a nós, e o efeito de surpresa devido a essa reverberação é considerável (BAUDRILLARD, 1997, p. 30).



Baudrillardaborda o que chama de “orgia das imagens”, referenciando os simulacros que permeiam e caracterizam o mundo pós-moderno, inclusive, no âmbito das artes. Ele destaca que para muitas pessoas não é mais necessário refletir sobre o que se apresenta ao olhar, num contexto de encenação do banal como uma estética do insignificante. O autor elabora uma crítica profunda e irônica sobre a ilusão de realidade catártica que muitas vezes as obras/imagens assumem, destacando que “O desejo de fotografar talvez venha dessa constatação: visto da perspectiva de conjunto, do lado do sentido, o mundo é bastante decepcionante. Visto no detalhe, e de surpresa, ele é sempre de uma evidência perfeita” (Id., p. 34).

Talvez a discussão proposta pelo autor nos ajude a melhor entenderas fotografias apresentadas neste texto e seus sentidos,sendo quemuitas vezes elas se impõem a olhares banalizados pela cotidianidade do que apresentam. Essas imagens, embora representativas decomportamentossurpreendentes, muitas vezes não reverberam empessoas que já introjetaram isso a partir de uma suposta “normalidade”. Entretanto, “Pela imagem, o mundo se impõe a sua descontinuidade, seu esfacelamento, seu inchamento, sua instantaneidade artificial” (id., p. 31) e isso encaminha outras questões: O próprio real, para além de suas (re)apresentações bidimensionais,não se impõe pela violência do que apresenta?Será que estamos nos acostumando, talvez como seres anestesiados e alienados, a conviver com o lixo, assim como os urubus nos lixões? Qual será a origem dessa “passividade”, que colabora para o encaminhamento da extinção da espécie humana, além de outras tantas?

Muitas são as indagações provocativas que podemos apreendera partir da análise dessas imagens, mesmo sem identificar respostas objetivas. Porém, a reverberação silenciosa e atemporal das fotografias possibilita a permanente atualização das questões que suscitam. E é isso que este texto busca problematizar.



Figura 5: Lixo invadiu Parque de Lavras em Salto. Anderson Cerejo/TV TEM.

Fonte: Portal G1



Embora apresentadas reiteradas vezes,as nefastas consequências dos comportamentos aqui problematizados, creio ser importante citar uma reportagem do Portal G1vi, publicada em 18 de fevereiro de 2019. Ela versa sobre o transbordamento do rio Tietê (Figura 5), como consequência das fortes chuvas que atingiram a capital paulista no período, no trecho que passa pela cidade de Salto (São Paulo), formando um rio de águas escuras e mau cheirosas, abarrotadas de lixo, principalmente, garrafas pet. Mais uma vez temos um exemplo da “estética da degradação ambiental”, invadindo o Parque de Lavras, impedindo a circulação e impondo a palidez de suas cores e o excesso de dejetos à paisagem. E tal situação, pode ser entendida como uma consequência “natural” do despejo de lixo durante as comemorações da virada.

Ao reunir e refletir sobre essas notícias,uma sensação de vaziome invadiu, como se a “batalha” estivesse vencida. Porém, no mesmo momento pensei na arte/educadora e nos compromissos assumidos como uma agente de transformação que sou.Sim, acredito que através da arte e da educação posso/podemos (trans)formar mentalidades e comportamentos. E, nesse sentido, frente à imagem desse caudaloso rio de lixo, decidi reconduzir Manoel de Barrosvii à conversa:



O rio que fazia uma volta

atrás da nossa casa

era a imagem de um vidro mole...



Passou um homem e disse:

Essa volta que o rio faz...

se chama enseada...



Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás da casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.



A imagem poética do rio como “uma cobra de vidro”, que remete a umacosmovisãoinfantil, se transformou - na discussão aqui entabulada - num registro da realidade, de estética empobrecida, do rio como um “mar de pets”.Se o poeta fosse vivo, provavelmente concordaria com o fato de que “se o nome empobreceu a imagem”, nós estamos “empobrecendo” o mundo em geral!

A situação está posta e múltiplas são as respostas para a passividade das pessoas frente à estética da degradação ambiental,uma questão complexa que admite diferentes perspectivaspara análises. Entretanto, escolho focar nas possibilidades da arte/educação eno estímulo ao desenvolvimento de olhares reflexivos e críticos sobre os fatos e as imagens, cotidianamente compartilhados através das redes sociais.

É indiscutível que as novas tecnologias ampliaram sobremaneira o acesso à informação, por outro lado, o excesso de imagens que permeia as redes pode provocar a banalização dos olhares e o “empobrecimento do conhecimento”. Logo, é importante considerarque “há muitas pessoas que nada veem” (ALVES, 2005), embora dotadas de visão:



Por isso, porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver, eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar para os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana (Id., p. 25).



Em “Educação dos sentidos e mais”, Rubem Alves (2005) propõe uma metáfora para o olhar, indicando um trajeto possível para práticas em prol de uma pedagogia do olhar (BRANDÃO,2012). Trata-se de admitirmos que: “O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. E na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de brinquedos” (ALVES, 2005, p. 9). Assim, Alves destaca a importância de analisarmos o visível a partir de um ponto de vista que considere a razão e a sensibilidade, ou seja, o que as imagens denotam e o que conotam. Essa é uma postura que permite olhares imaginativos e criativos sobre a realidade, ultrapassando os limites da racionalidade, e, mais do que isso, inviabilizando a internalização de visões naturalizadas.Entendo que essa é uma via para que as pessoas, futuramente, não se contentem em compartilhar o espaço com o lixo, buscando, ao contrário, colaborar espontaneamente com a limpeza – o que não é uma responsabilidade exclusiva do poder público. Como nunca antes necessitamos repensar nossos hábitos e suas reverberações nocivas, assumindo a parcela de responsabilidade de cada um para com o processo de degradação ambiental.

O processo de reação à passividade, à naturalização, frente à questão ambiental pode ser lento, mas com certeza isso passa pela educação e seus processos, não só para “reaprender a viver”, mas também, para “reaprender a olhar”. Dificilmente as imagens que circularão através das redes, em 1º de janeiro de 2020, mostrarão pouco lixo nas orlas de Fortaleza, Recife, Copacabana e Porto Alegre, dentre outras cidades, entretanto, se colocarmos “os nossos olhos na caixa de brinquedos”, talvez vejamos circular imagens de banhistas catando na areia “coisinhas que não são próprias do chão”, como diria o poeta. E assim iniciaremos um processo de poetização do mundo através da imaginação criativa, instaurando o sonho como utopia e colorindo uma estética desagradável ao olhar e ao planeta, que invadiu a vida em sociedade.

Referências:



ALVES, Rubem. Educação dos sentidos e mais. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/N-Imagem, 1997.

BRANDÃO, Cláudia Mariza Mattos. Entre Photos, Graphias, Imaginários e Memórias: a (re)invenção do ser profess@r. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012. Disponível em:

http://repositorio.ufpel.edu.br:8080/bitstream/123456789/1678/1/Claudia%20Mariza%20Mattos%20Brandao_Tese.pdf





iDoutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do curso de Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, do Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). attos@vetorial.net

Ilustrações: Silvana Santos