Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
NAVEGANDO NA FLUIDEZ DA IMAGINAÇÃO
Cláudia Mariza Mattos Brandão[i] Carine Belasquem Rodriguez[ii]Amanda Ribeiro Corrêa[iii] Gustavo Reginato[iv]
RESUMO: O artigo propõe uma discussão acerca das sensações/percepções produzidas durante uma imersão poética vivenciada por integrantes do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq, em rios da região de Pelotas (RS). Dialogando com as ideias de Gaston Bachelard, na obra “A água e os sonhos – Ensaios sobre a imaginação da matéria” (1998), nós buscamos refletir, verbal e visualmente, sobre as relações que os sujeitos estabelecem com o elemento Água.
Em 1780, o português José Pinto Martins, que abandonara o Ceará em consequência da seca, funda às margens do Arroio Pelotas a primeira Charqueada. A prosperidade do estabelecimento, favorecida pela localização, estimulou a criação de outras charqueadas e o crescimento da região, dando origem à povoação que demarcaria o início da cidade de Pelotas. A Freguesia de São Francisco de Paula, fundada em 07 de Julho de 1812 por iniciativa do padre Pedro Pereira de Mesquita, foi elevada à categoria de Vila em 07 de abril de 1832. Três anos depois o Presidente da Província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, outorgou à Vila os foros de cidade, com o nome de Pelotas, sugestão dada pelo Deputado Francisco Xavier Pereira. O nome originou-se das embarcações de varas de corticeira forradas de couro, usadas para a travessia dos rios na época das charqueadas. http://www.pelotas.rs.gov.br/cidade/historia.php
“O devaneio natural reservará sempre um privilégio à água doce, à água que refresca, à água que dessedenta. A água doce sempre há de ser, na imaginação dos homens, uma água privilegiada”, nos diz Bachelard (1998, p. 162/163). E esse foi o cenário escolhido pelos integrantes do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, UFPel/CNPq, para na manhã do dia 21 de abril de 2015 embarcar num passeio de barco e num devaneio poético acerca das águas e de suas potentes reverberações poéticas, embalados pelo pensamento de Gaston Bachelard.
Figura 1: Carine Rodriguez. Sem título, fotografia digital, 2015.
Estávamos no entorno das águas doces do Canal São Gonçalo e do Arroio Pelotas (Pelotas, RS), nas águas privilegiadas que possibilitaram o surgimento das charqueadas (Figura 1), antigas fazendas produtoras de charque. Esse foi o local escolhido para mais uma imersão poética do Grupo, com o intuito de produzir imagens – muitas imagens! – que nos ajudarão a pensar sobre as possibilidades de nossa próxima exposição, a coletiva fotográfica “Círculo das Águas”. A prática de realizar saídas de campo, ou “imersões poéticas” como nós costumamos chamar, já nos acompanha há alguns anos. Isso, por acreditarmos que é fundamental a vivência de uma experiência instigadora que nos ajude a refletir sobre o objeto do nosso interesse, no caso, a água e as inter-relações/percepções de cada um de nós sobre ela. Durante o percurso realizado avistamos os prédios das antigas charqueadas: Costa do Abolengo, São João, Santa Rita e Boa Vista, em uma paisagem que mistura arquitetura século XIX e modernas construções, um modo privilegiado de imersão no ambiente cultural e histórico do povo pelotense (Figura 2). Além de ser fascinante pela beleza, tanto natural quanto arquitetônica, tivemos o privilégio de desfrutar e registrar imagens num local que há séculos atrás foi uma das alavancas da economia do Rio Grande do Sul. Um lugar no qual “a água é, então, um ornamento de suas paisagens; não é verdadeiramente a substância de seus devaneios” (BACHELARD, 1998, p. 6).
Figura 2: Carine Rodriguez. Sem título, fotografia digital, 2015.
Historicamente a cidade de Pelotas se desenvolveu e atingiu grande opulência econômica com a produção e exportação de charque, carne salgada e seca ao sol, produzida nas charqueadas por mão de obra escrava. As charqueadas se localizavam nas margens do Arroio Pelotas e do Canal São Gonçalo, e essa posição era estratégica. A ocupação das terras no entorno dessas águas foi favorecida pela possibilidade de transporte dos escravos e de circulação de produtos. E tais “mercadorias” (pois os escravos também eram assim considerados) circulavam através de típicas embarcações de couro, chamadas Pelota, dando origem ao nome da cidade. Hoje algumas charqueadas ainda são mantidas como exemplares do patrimônio histórico e cultural do município (Figura 3), preservando as características e estruturas de seu tempo de funcionamento, como documentos da memória das raízes do desenvolvimento da cidade. Uma história que mistura a docilidade das águas com a violência da estrutura social que ali se estabeleceu.
Figura 3: Amanda Corrêa. Charqueada Santa Rita vista do Arroio Pelotas, fotografia digital, 2015.
O Arroio Pelotas surge do encontro de outros dois arroios nascentes no município de Canguçu, o Arroio do Quilombo e o Arroio das Caneleiras, desaguando no Canal São Gonçalo, canal que liga a Lagoa dos Patos à Lagoa Mirim. O nosso roteiro contemplou as correntes de água doce que costeiam a conhecida rota das charqueadas, águas estas testemunhas do passado, que com sua doçura fluída se contrapõem a uma história marcada pelo sal do charque, pela rigidez e austeridade de construções erguidas sobre as bases brutais de uma sociedade escravagista. Para quem desconhece as raízes históricas, o ambiente remete a uma paz silenciosa, somente interrompida pelo farfalhar da vegetação e o canto dos pássaros. No caminho alguns pescadores artesanais sinalizam a existência de alimento na região, embora não mais com a fartura de outrora. A beleza natural da região contrasta com as inúmeras ruínas que aos poucos o olhar desvela. Comprovamos que no embate entre Natureza e Civilização se percebe uma reconquista parcial do espaço natural, uma apropriação do tempo em função da falência das atividades mercantis de outrora. A visão do sol, do astro de fogo, emergindo das águas (Figura 4), é uma imagem impactante que aos poucos vai se configurando, como se “a princípio alguma coisa brilhasse no ‘úmido encantador’, no ‘úmido vital’” (BACHELARD, 1998, p. 103). E embalados pelo silêncio e pela inegável beleza fomos registrando a paisagem, recortando-a em imagens para posteriormente reconstruí-la em suas significações mais intrínsecas, quando então “teremos uma nova impressão de liberdade visual” (BACHELARD, 1998, p. 52). Deste modo estamos constituindo caminhos diferenciados para a pesquisa científica, nos quais as escolhas são balizadas pela percepção sensível do entorno e pela interpretação poética/artística dos fatos.
Figura 4: Carine Rodriguez. Sem título, fotografia digital, 2015.
Neste contexto, impulsionados pelas ressignificações subjetivas de cada um, vamos ao encontro da obra de Bachelard, ao buscar “discernir todos os sufixos da beleza, tentar encontrar, atrás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam, ir à própria raiz da força imaginante” (BACHELARD, 1998, p.6) manifestada nestas águas. Em comunhão com o fluxo das correntes, nos permitimos fruir os conteúdos que tais imagens emanam, apreendendo que:
os rios sonorizam com estranha fidelidade as paisagens mudas, que as águas ruidosas ensinam os pássaros e os homens a cantar, a falar, a repetir, e que há, em suma, uma continuidade entre a palavra da água e a palavra humana. (ibd., p.17)
O município de Pelotas em épocas de intensa movimentação comercial teve seu arroio contaminado pelo sangue da produção do charque. O seu tingimento de vermelho influenciou o nascimento de uma lenda urbana que nos fala sobre uma chuva de sangue evaporada das águas do arroio. Temos aí a manifestação do imaginário social comunitário reinventando-se a partir dos sentimentos dos que vivenciaram a história, uma situação peculiar de desrespeito à energia das águas como fonte da vida. Ainda hoje as veias de água que irrigam a terra são negligenciadas pelos habitantes locais, entretanto, o Arroio Pelotas é respeitado pelo seu valor histórico. Em contrapartida, o canal de Santa Bárbara (que teve seu curso desviado e até hoje tenta voltar ao seu leito original, provocando enchentes nas zonas mais baixas da cidade) e outros pequenos afluentes do Canal São Gonçalo sofrem com o despejo indevido de esgotos e detritos sem o necessário tratamento. Devido a sua geografia a região que costeia o Canal São Gonçalo e seus afluentes, é transformada em épocas de cheia: a água modifica os perfis das margens, alaga, invade, e a umidade no entorno é constante. Neste tempo especial de imersão poética no universo fluvial da região de Pelotas, essas águas tão especiais nos confrontaram com o lado “mais negro” do comportamento humano, o descaso com os dejetos, a falta de cuidado com os nossos restos, a apropriação indevida da natureza. Em meio à paz e beleza do local, em vários momentos fomos despertados para as marcas destrutivas de mentalidades e comportamentos (Figura 5), que não percebem que devemos navegar nas águas como se navegássemos em nossos próprios corpos.
Figura 5: Gustavo Reginato. O sujeito é suspeito, fotografia, 2015.
Nós, do PhotoGraphein, consideramos que as imagens fotográficas resultam de atos comunicativos através dos quais os pesquisadores partilham suas visões de mundo. Sendo assim, utilizamos a fotografia como um dispositivo de coleta de dados e uma linguagem expressiva simultaneamente, situados como narradores visuais:
O sujeito torna-se narrador por um choque perceptivo que o afasta do conhecido e o situa, então, como narrador. Fora disso, a descrição pode até acontecer, mas não terá densidade nem consistência. Nesse sentido, a condição inicial da narratividade é sempre passional, empática, afetiva, pessoal. O narrador nasce de um desequilíbrio, o choque que lhe afeta a percepção a ponto de incitá-lo a querer levantar o véu do familiar ou da distância cultural. Esse choque se caracteriza, essencialmente, pela determinação a pôr-se no lugar do outro para melhor senti-lo e descrevê-lo. Porém, o narrador não se cristaliza no lugar do outro. A situação narrativa é sempre dialógica. Depois do estranhamento, deve acontecer o entranhamento (mergulho total no outro) e, finalmente, o retorno a si mesmo (SILVA, 2006, p.84).
Implicados com nossos objetos de estudo e posicionados como narradores que narram “desde dentro” (SILVA, 2006), buscamos descrever/mostrar o estranhamente familiar que em nós gerou um choque perceptivo. E que num futuro breve será traduzido em imagens poéticas das percepções do mundo das águas.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – Ensaios sobre a imaginação da matéria. 2ª. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1998. SILVA, Juremir Machado da. As Tecnologias do Imaginário. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006. [i] Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes/Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). attos@vetorial.net [ii] Arte/Educadora, especialista em ”Artes: Ensino e Percursos Poéticos” (CA/UFPel), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). [iii] Arte/Educadora, especialista em ”Artes: Ensino e Percursos Poéticos” (CA/UFPel), pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). [iv] Acadêmico de Artes Visuais – Licenciatura (CA/UFPel), pesquisador do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). |