Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Arte e Ambiente
24/09/2004 (Nº 10) Algumas questões sobre identidade, cultura e arte...
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Algumas questões sobre identidade, cultura e arte...

Cláudia Mariza Mattos Brandão[1]

Ilse Jochmann[2]

 

 

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido ao passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Walter Benjamin, “Sobre o Conceito de História”)

 

 

Quando Walter Benjamin (1892/1940) evocou a imagem de um anjo impotente para refletir criticamente sobre o paradigma ético predominante na sociedade industrial, ele estava tomando a obra de Paul Klee (1879/1940) como a imagem de um mundo em guerra: o retrato de uma realidade de violência, dor e desesperança.

 


 

 

 

                            Figura 1: Paul Klee

                                           Angelus Novus, 1932.

 

Contemplar uma obra de arte é estabelecer um diálogo privilegiado com o passado. Quando o artista cria, e através da janela da alma re-cria o mundo, ele nos inicia num processo de aprendizagem significativa da História. Benjamin e Klee em suas obras traduziram a sensação de fragmentação, efemeridade e mudança caótica, introduzidas na vida cotidiana pela Modernidade, demonstrando a inquietação dos artistas com a esvanecência de um mundo, até então tido como concreto.

 

 

  1. Um pouco de arte e história.

 

A Modernidade consagrou a idéia do ser humano superior e do ambiente natural como um recurso inesgotável a ser explorado, e impôs uma ordem humana ao mundo natural “desordenado”. No mundo renascentista tudo encontrava identidade e lugar numa realidade pseudo-ordenada.

 

Identificamos entre o Humanismo Renascentista e o Iluminismo, o nascimento do indivíduo soberano, que colocou em funcionamento o sistema social da Era Moderna. Este novo sujeito buscava na arte o registro de uma nova forma de individualismo, com uma nova concepção de identidade, que rompeu com a ordem divina e secular das coisas. A sociedade que daí emerge, tem uma concepção naturalista e científica do mundo, utilizando a obra de arte como uma síntese científica, metódica e totalitária da natureza.

 

Em obras como a de Rafael Sanzio (1483/1520) (figura 2), é possível observar que o artista utiliza-se de uma técnica apurada para mesclar a arte da individualização com uma característica tendência à idealização, bem a gosto de uma sociedade que tinha a convicção de que deveria haver uma correspondência profunda entre a perfeição física e a espiritual.

 


 

 

 

                             Figura 2: Rafael Sanzio

                                            Retrato de Leão X com dois cardeais, óleo s/ tela, 1515.

Representações fidedignas e idealizadas aos poucos cederam lugar a formas que demonstram uma reflexão mais profunda por parte do artista sobre as relações do homem com seu contexto sócio-histórico e natural.

 

Entre os séculos XVIII e XIX, a utilização do carvão como fonte de energia, em substituição à energia animal, humana e eólica, foi um fenômeno de profundas conseqüências. Verificou-se num curto espaço de tempo, no mundo ocidental, uma grande migração do meio rural para o meio urbano em processo de industrialização, e as cidades transformaram-se em pólos de atração e pontos de convergência, centros da ordem social, cultural e política. O crescimento das cidades e a especialização do espírito cientificista estabeleceram uma crise nos valores e nas expressões artísticas.

 

Os primeiros anos do século XX demarcaram decisivamente as feições da Modernidade. O desenvolvimento capitalista de sociedades até então estáveis dissolveu culturas, lançando abruptamente os indivíduos numa luta desprovida de valores e comunidade. O homem foi afastado do conjunto de referências que constituía sua identidade cultural,  numa sociedade que não oferecia segurança para o indivíduo... que se protegia na solidão do anonimato:

 

... para a sociedade burguesa (...), a moradia se torna uma espécie de cápsula. Concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando, assim, os seus vestígios, como a natureza preserva no granito uma fauna extinta. (Benjamin, 1991:43).

 

A fossilização das relações humanas é a expressão de um isolamento cada vez mais profundo do indivíduo em seus interesses privados. Para os atores sociais sob cujo signo instaurou-se a Modernidade, não havia mais espaço para valores absolutos, e o homem voltou-se para si próprio, através do saber científico racional, na tentativa de encontrar novos significados para a realidade.

 

A Arte Moderna reflete a idéia da metrópole e surge como expressão do conflito existencial do ser humano ao confrontar-se com o crescimento desordenado do espaço urbano e o progressivo isolamento social do indivíduo.

 

Francis Bacon (1910-1992), um dos grandes pintores figurativos do século XX, construiu sua obra com uma carga emotiva obtida através de um escasso repertório temático, utilizado para expressar fúria e horror: “as coisas parecem cruéis na arte porque a realidade é cruel”, dizia. Uma de suas telas mais famosas é a releitura de um clássico de Velázquez “Papa Inocêncio X” (figuras 3 e 4). Nela Bacon subverte o tratamento dado pelo pintor espanhol ao modelo, transformando seu rosto numa carranca horripilante que transmite a sensação de irracionalidade e angústia, e registra a relação de interação do artista com o mundo.

 


 

 

                       

                             Figuras 3:  Diego Velázquez

                                               Papa Inocêncio X, óleo s/ tela, 1650.

 


 

 

 

                          Figura 4: Francis Bacon

                                         Papa Inocêncio X, óleo s/ tela, 1953.

 

A busca da identidade, da marca diferenciadora, do ver e ser visto... do perceber e ser percebido... parece ser a via crucis de nossa civilização.

 

 

  1. No mundo da Matrix.

 

Estou ligado a cabo a tudo que acaba de acontecer (...)

Propaganda é a arma do negócio

No nosso peito bate um alvo muito fácil

Mira a laser... Miragem de consumo

Latas e litros de paz teleguiada

Estou ligado a cabo a tudo que eles tem pra oferecer (...)

Na hora exata, na encruzilhada, na highway da superinformação...

(“A promessa” - Humberto Gessinger)

 

Século XXI... marketing, propaganda, extinção da identidade... “Matrix”! Este foi o primeiro nome que esta rede mundial de computadores recebeu quando foi criada. E com todas as novidades surgiam... acesso ilimitado a todo o tipo de informação, enquanto se  piscam os olhos. E ela é  rápida, como a informação que chega até nós, de fácil compreensão, e a cada dia evolui mais adotando novas características, chegando como leitura fácil e objetiva.

 

Com o desenvolvimento da sociedade surgiu com ela o desejo por informações. Informação instantânea mais consumo instantâneo, e a globalização do pensamento, do mercado, das pessoas. O indivíduo sente-se atraído, seduzido pelo show de imagens que chegam ate ele pela tv, e mais recentemente pela internet. Entre funções, explorando todos recursos que o computador pode oferecer... corta, recorta, constrói, destrói, aumenta, diminui, muda a cor...  cria-se uma atmosfera convidativa... quase sufocante. E sem perceber, quanto mais as possibilidades de expansão global aumentam, a individualidade é esquecida. O homem não mais se diferencia,  as digitais e o DNA não importam mais... isto é substituído por uma nova identidade: o código de barras.

 

Pasteurizando o público, deixando de lado as características culturais e sociais, extingue-se o individual. Somos aglutinados aos  demais de diferentes culturas; na tela, entre linhas e colunas, somos reduzidos a um pixel, e o pensamento crítico individual torna-se irrelevante, restrito aos “achismos” e juízos de gosto pré-estabelecidos. O indivíduo e suas características são descartáveis, e o slogan mais comum é: “por que ser você, se você pode ser mais do que você é?”

 

“Pane no sistema alguém me desconfigurou

Aonde estão meus olhos de robô?

Eu não sabia, eu não tinha percebido

Eu sempre achei que era vivo

Parafuso e fluído em lugar de articulação

Até achava que aqui batia um coração

Nada é orgânico é tudo programado

E eu achando que tinha me libertado

Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vou fazer:

Reinstalar o sistema

Pense, fale, compre, beba

Leia, vote, não se esqueça

Use, seja, ouça, diga

Tenha, more, gaste e viva

Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor...

(“Admirável chip novo” – Pitty)

 

O mercado vende suas imagens, e nós consumimos seus produtos... e qualquer coisa que necessitemos, está a venda, no hipermercado mais próximo.  E por falar em hipermercado, qual é mesmo o seu código de barras?

 

 


 

 

                     Figura 5: Ilse Jochmann

                                    Infogravura, 2004.

 

 

  1. Eu, código de barras??

 

Chegamos à contaminação das fontes de água potável... à desertificação... ao aquecimento global... e aos “códigos de barra” (!), como conseqüência da cisão do homem com relação ao real. 

 

Vivemos em tal estado de alerta, visando antes de tudo à própria sobrevivência, que não nos permitimos olhar demoradamente para nenhum ponto do mundo que nos circunda. Estamos acostumados a ver... e não, a olhar. Nesse processo dinâmico de afastamento entre homem e realidade, pouco restou... A tradição, um meio de lidarmos com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, ficou para trás. Perdemos a memória e substituímos a tradição pela mudança estrutural imposta por nossa sociedade cibernetizada, que permite a refração da personalidade em múltiplos eus, fragmentando e deslocando as identidades culturais.

 

Olhar exige percepção... que exige envolvimento... que exige tempo: - Tempo que não temos! Shakespeare alertou... o olho a si mesmo não se enxerga, senão pelo reflexo em outra coisa.

...e no tempo da virtualidade o ser humano segue buscando descobrir quais podem ser seus caminhos como singularidade, e expressando suas inquietações através do objeto estético.

 

 

BIBLIOGRAFIA

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Editora Relogio d'agua, SP: 2000.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas; v.1). 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BERGER, John.  Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

Diccionario del Arte y los Artista. Barcelona: Ediciones Destino, 1995.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

IRWIN, Willian. Matrix: Bem-Vindo ao Deserto do Real. Madras, SP: 2002.   

YEFFETH, Glenn. A Pílula Vermelha.  Publifolha, SP: 2003.

 


 

[1] Mestre em Educação Ambiental, professora do curso Artes Visuais – Licenciatura, FURG, RG, RS.

[2] Acadêmica do curso Artes Visuais – Licenciatura, FURG.

Ilustrações: Silvana Santos