Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

Claudia Moraes Silveira Tavares[ii]

Cláudio Tarouco de Azevedo[iii]

Chanaísa Melo[iv]

Junto com o tempo, o espaço é o primeiro elemento do universo que percebemos, e é no ambiente, negociado com um momento determinado, onde nossas percepções nos relacionam com a realidade. Os espaços nunca foram, nem serão, neutros. Eles resultam de uma forma de estar no mundo, modos e mentalidades que escrevem nossa história sobre o planeta azulzinho.

Figura 1: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

Um desses locais, de convivência, de passagem e de pesquisa, é o Cassino (figura 1), uma praia oceânica que forma a maior faixa litorânea contínua da América do Sul. A Praia do Cassino configura-se como uma extensa costa desértica, habitada por milhares de aves nativas e migratórias, repleta de lagoas conectadas ao mar, e com uma grande faixa de dunas que abrigam um rico ecossistema.

Na medida em que nos afastamos do Balneário de mesmo nome, localizado a 18 quilômetros do centro da cidade do Rio Grande (RS), é possível encontrarmos as marcas de uma convivência hostil. O ambiente inóspito, também conhecido como "Cemitério de Navios", é pontuado por restos de naufrágios resultantes da ação do vento sul e do mar violento. Os cascos de antigos navios repousam sobre a areia como pálidas lembranças da vontade humana de dominar a natureza. Atualmente eles servem como poleiros para as aves migratórias (figura 2), abrigando crustáceos e moluscos que se multiplicam livremente (figura 3).

Figura 2: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

Figura 3: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

O reconhecimento de que a dimensão imaginária e simbólica da cultura está presente nas inúmeras instâncias da interação social, nos leva a questionar: - o que seria do homem sem a apreciação do olhar?

Uma saída de campo para fotografar estimula o pensamento a buscar no ambiente aquilo que aguça o interesse e salta aos olhos. Por mais gratuito que seja um click, não se consegue um disparo imparcial. Uma imagem guarda em si sentidos diversos. O fotógrafo detém a escolha de privilegiar seu recorte do ambiente. Sobrepondo a discussão às questões técnicas, quando efetuado, o disparo autoriza um pensamento, uma opção, a luz que retrata e elege um ângulo, deixando de fora as infinitas possibilidades que não foram à do instante “congelado”.

Mas o que seria do olhar sem a capacidade de pensar?

As paisagens resultam de nossa convivência com o meio, são reflexos de nossas relações, nem sempre ecológicas, com a realidade imediata. As imagens fotográficas traduzem o olhar e o pensamento de quem as concebeu, apresentando, acima de tudo, novas formas de questionar a veracidade do visto. A cada imagem novas realidades, indícios latentes no seu nascedouro, que libertam mentes e imaginários na busca da consciência de alguma coisa (SARTRE, 2008).

Suporte de múltiplas funções, a linguagem fotográfica como corpo do pensamento incorporou-se ao terreno da arte e vem no bojo de um fenômeno mais amplo que é a própria mudança de paradigma. Como artefato da cultura, é um objeto diversificado com existência social em si, que cria ambigüidades por deslocamentos de contexto, direcionando seus questionamentos para o plano cultural.

A relação entre Arte e Fotografia, do ponto de vista histórico e crítico, vai além das questões formais (DUBOIS, 1984). A imagem fotográfica deixou de ser somente um objeto histórico e/ou estético, e adquiriu estatuto de objeto teórico: uma ferramenta de desconstrução da própria realidade. A câmara fotográfica e o regime de visualidade que ela engendra, congelando o tempo e suas qualidades transitórias, nos falam da qualidade moral de nossa sociedade.

Nossos pensamentos e nossos atos reverberam-se nos espaços, sejam internos ou externos, individuais ou coletivos, reais ou virtuais:

Pela Internet podemos até fazer amor, sem o perigo das doenças contagiosas. A imaginação nunca foi tão desenvolvida e ao mesmo tempo formatada. Arte difundida, a fotografia é o meio, a mensagem, a comunicação, a informação, e é também a negação da realidade. (Andrade, 2002, p.117)

Figura 4: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

... e paulatinamente nossas câmeras desvelaram que nem tudo é vida no Cassino! Ao longo da orla é possível comprovarmos a ação predatória do homem. Fruto do desrespeito, grandes tartarugas repousam inertes, como marcos da ambição de predadores humanos que com suas redes avançam as fronteiras da vida em busca da mercadoria, do produto (figura 4).

O olhar que olha, que percebe além do visível e se sensibiliza com o outro, denuncia a gratuidade da vida frente ao descaso alheio. Num lugar de todos, imagens de abandono e desrespeito; uma relação de estranheza para com a extensão de nossa própria rede corpórea.

Figura 5: Cláudia Tavares

Fotografia digital, 2008.

Nas dunas, as ruínas de um antigo hotel inacabado testemunham que nem sempre é possível dominar a natureza (figura 5). Nesse caso a areia venceu a batalha! Elemento indomável, em seu incessante exercício de desenhar e redesenhar os contornos de uma paisagem mutante, as areias das dunas da praia do Cassino preservam histórias: de turistas ocasionais, desavisados passantes, e de moradores apaixonados pelo isolamento desse pedacinho do mundo (figura 6).

Figura 6: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

Também nas dunas, o encontro com outro tipo de ruína, desta vez marcas de um ser magoado, desacreditado, desrespeitado por seu caráter distinto: – um eremita que por muitos anos fez desse local a sua moradia, como forma de afastamento da convivência agitada e violenta do mundo civilizado (figura 7). Na verdade o que hoje contemplamos não lembra, nem de longe, o seu antigo lar. Cansado da violência que foi ao seu encontro nos confins do Brasil, destruiu tudo o que havia construído ao longo dos 21 anos que lá permaneceu. Como incômodos avisos permanecem nas paredes suas palavras de revolta, indignação e tristeza, por ter que abandonar espaço e esperanças de um ser/viver distante das relações de poder. Como escreveu na fachada: - Eremita, sim, Cassino, nunca mais!

Figura 7: Cláudia Brandão

Fotografia digital, 2008.

O que seria do pensar sem os questionamentos? O que seria do cotidiano sem a imaginação? Observar, analisar, pensar e registrar são exercícios tipicamente humanos. As imagens impulsionam reflexões e sensibilidades para com a vida que emerge e se transforma a cada instante. Percebemos que não somente as palavras se fazem ouvir, também o silêncio do que fica, perturba e atormenta com sua quietude ensurdecedora.

Os lugares que visitamos apresentam uma beleza contrastante entre a natureza e o homem. Nas imagens que capturei tento mostrar um pouco desse contraste, nas quais os vestígios humanos se integram à paisagem, como o navio Altair, por exemplo, encalhado na beira do mar desde 1975, e que hoje é um ponto turístico da praia. Entretanto, o que mais ressalta é o que restou da casa do Eremita do Cassino e suas palavras de indignação devido à violência que o atingiu. Essa cena me comoveu bastante, pois mesmo num lugar bem afastado da população a violência se fez presente. O passeio para mim foi um momento de observação, exploração, reflexão e registro de um ambiente rico em sua diversidade. (Chanaísa Melo)

Figura 8: Chanaísa Melo

Navio Altair.

Fotografia, 2008.

As imagens aqui apresentadas falam de beleza, de imensidão e de vida, dialogam sobre o que está posto como acabado e, mais, anunciam a capacidade de transcendência do ser humano diante do estabelecido. A construção e desconstrução de visões e verdades estabelecidas são de um valor singular para a libertação do olhar e a posterior transformação da relação humana com o meio.

Figura 9: Cláudio Azevedo

Fotografia digital, 2008

A cruz que repousa absoluta na areia é um marco deixado pelo Eremita (figura 9). Sua presença imponente e estática fomenta as discussões sobre as relações do homem com o meio e induz o debate sobre um espaço revelado pela imagem fotográfica no qual se plasmam indícios de relações deterioradas.

No entendimento de que é possível fazer e saber mais sobre o humano e suas relações, o PhotoGraphein segue com suas pesquisas. Acreditamos que impulsionar o desenvolvimento cultural pelo viés da sensibilidade ao visível é colaborar para a captação e maior entendimento da constituição do ser como parte integrante de um mundo de efeitos globais.

Buscar a humanização do humano parece um contra-senso, mas não é.

Para além do abandono, oriundo da falta de conexão estabelecida entre os seres e os ambientes ao redor, ou do desconhecimento sobre as realizações históricas, verifica-se a presença do olhar que não vê, dos sentidos adormecidos que não correspondem às imagens refletidas na retina.

Os registros imagéticos são formas de armazenamento do presente, aproximando os olhares dos fatos que nos constituem cidadãos. Como instrumentos de potencialidades reflexivas, eles destacam a importância da mediação das linguagens artísticas na construção simbólica da realidade concreta, unindo Arte e Ambiente na configuração de uma nova humanidade (MORIN, 2002).

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Rosane de. Fotografia e Antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade; EDUC, 2002.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1984.

MORIN, Edgar. O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre, RS: Sulina, 2002.

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.



[i] Mestre em Educação Ambiental, professora do CEFET-RS, e líder do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, FURG/CNPq.

[ii] Mestranda em Educação Ambiental (FURG), pesquisadora do PhotoGraphein.

[iii] Mestrando em Educação Ambiental (FURG), pesquisador do PhotoGraphein.

[iv] Arte/Educadora, pesquisadora do PhotoGraphein.