ENTREVISTA COM FABIANO LOURENÇO CRESPILHO PARA A 89ª EDIÇÃO DA REVISTA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM AÇÃO
Por Bere Adams
Fabiano L. Crespilho – Foto / Arquivo pessoal
Apresentação – Fabiano Crespilho é o entrevistado da 89ª edição da revista. Sua trajetória iniciou na eletrônica. Na faculdade, estudou Ciências Sociais, Economia e formou-se em mestre em economia financeira internacional, o que lhe proporcionou uma base holística para compreender a complexidade humana e os desafios do desenvolvimento econômico sustentável. Atualmente, dedica-se à criação de um telhado verde aquapônico e produtivo, um microcosmo autossustentável com o objetivo de aplicar tudo o que tem aprendido, desde eletrônica à economia, passando pelas ciências humanas à biologia, permacultura e ecologia. Foi quando fundou o HumaHorta, que, segundo ele, “vai além de um mero empreendimento econômico: ele materializa uma vida dedicada ao estudo da ocupação humana na Terra”. Na sequência, pretende experimentar e colaborar com pesquisa acadêmica sobre o tema da eficiência energética de residências e a reintegrar as pessoas a um ecossistema orgânico, em harmonia com funções biológicas.
Bere – Prezado Fabiano, é um imenso prazer tê-lo como nosso entrevistado, muito obrigada por aceitar a este convite de compartilhar, a partir desta entrevista, um pouco da tua jornada e teus conhecimentos. Normalmente inicio minhas entrevistas perguntando: Quando e por que você começou a se dedicar às questões ambientais?
Fabiano – O prazer é todo meu, Bere. Agradeço a oportunidade de repensar minha jornada pessoal e compartilhar o projeto HumaHorta.
Essa pergunta me faz refletir bastante. Geralmente, não me considero exatamente alguém “dedicado às questões ambientais”. No entanto, após recentemente ter lido alguns livros de Edward O. Wilson, um dos maiores biólogos, naturalistas e defensores da biodiversidade do século XX, compreendi que a busca por uma maior conexão com a natureza e a preservação da biodiversidade são causas maiores que nos norteiam a todos, queiramos ou não, devido à nossa tendência inata à biofilia.
Inicialmente, minha motivação consciente para construir uma horta vertical eficiente no telhado da minha casa tinha pouco a ver com uma luta ambiental. O objetivo principal era aproveitar a imensa quantidade de energia e recursos desperdiçados e explorar até que ponto é possível maximizar a produção de alimentos em um espaço limitado, utilizando tecnologias e valores voltados ao desafio dos limites da autossuficiência e as fronteiras da divisão tradicional do trabalho. Eu queria entender quanta produção e independência seria possível em um espaço restrito, gerando não apenas valor econômico, mas também saúde e bem-estar com o movimento do corpo.
Mas, foi durante o trabalho de construção do HumaHorta que comecei a ler e compreender que há mais uma vantagem nesse projeto.
Fotos de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Há uma força invisível que me inspira inconscientemente, é real e tem sido recentemente estudada: Edward O. Wilson a chama de biofilia. Trata-se de uma tendência inata e universal impressa nos cérebros dos seres humanos — presente no nosso DNA, nas nossas emoções e no nosso comportamento, assim como em todos os seres — de buscar harmonia e conexão com toda a vida no planeta, ou seja, com o ambiente natural no qual evoluímos. Essa ligação intrínseca reflete o fato de que somos parte integrante de um planeta vivo e necessitamos de toda a sua biodiversidade para uma existência completa.
Com a construção do HumaHorta, percebo cada vez mais que também desfruto da satisfação associada ao esforço próprio por reestabelecer esse elo na teia da vida. Descobri que, ao recriar um microcosmo natural, estou também reconstruindo um elo perdido entre o humano e a natureza. É uma busca por equilíbrio, não apenas ambiental, mas também emocional e existencial. Hoje entendo que o ambientalismo, para mim, é menos uma bandeira e mais uma prática diária de conexão e responsabilidade. O que começou como um projeto pragmático se transformou em uma jornada de reconexão com a diversidade do planeta, orientada por uma admiração crescente pela vida em todas as suas formas.
Fotos de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Bere – E como a antropologia, a sociologia e a ciência política lhe proporcionaram uma base holística para compreender a complexidade humana e os desafios do desenvolvimento econômico sustentável?
Fabiano – Interessante você perguntar isso, também, Bere. Durante um ou dois anos, quando estudei princípios de antropologia, sociologia e ciência política na Unicamp, confesso que me sentia desanimado. É verdade que essas disciplinas me apresentaram algo da complexidade das dinâmicas humanas e também algumas perspectivas do que entendemos como processo civilizatório. Talvez esteja sendo injusto com seus autores, mas eu sentia uma parcialidade pouco científica e os resquícios de uma ética religiosa que almejava transcender os conflitos, as disputas sociais e as guerras, como se fosse possível viver em um “paraíso” onde a dor e o sofrimento pudessem ser eliminados.
Creio que conflitos e ajustes fazem parte da natureza dos sistemas vivos e ignorá-los prejudica a compreensão dos ciclos que sustentam a existência. Minha frustração vinha do fato de que os valores dessas ciências estavam contaminados por essa ética reducionista.
Quando comecei a estudar economia, essa percepção se aprofundou. A economia parecia tentar simplificar a importância dos ciclos naturais de ascensão e queda, tratando os ciclos econômicos como algo a ser corrigido ou eliminado, em vez de integrá-los aos fluxos naturais da vida. A busca por crescimento sem limites, sem reconhecer os ciclos reais do universo, parecia falha.
Muito pouco nas teorias ou abordagens que eu estudava parecia propor a reintegração de valores mais profundos, holísticos e dinâmicos. Encontrei alguma coerência ao me deparar com poucos autores como Ernst F. Schumacher, em “O Negócio é Ser Pequeno”, e com as ideias do decrescimento econômico e decolonialidade que criticam a obsessão pelo crescimento infinito, defendendo uma economia que respeite os limites ecológicos e priorize o bem-estar humano sobre a acumulação material.
Concluindo, nunca me alinhei às ideias do chamado “crescimento sustentável”, seja ele verde, amarelo, azul ou de qualquer cor, pois acredito que o conceito em si carrega contradições e limitações ideológicas. Para mim, o verdadeiro desafio é reconhecer os limites de qualquer crescimento, especialmente o da população humana e criar uma ciência que incorpore a capacidade ecológica do planeta. Isso exige mudança de valores e uma revolução metodológica. Quem sabe esteja surgindo agora essa ciência coerente com a complexidade da vida - uma ciência multidisciplinar que nos ajude a lidar com os paradoxos da nossa existência e com a inevitabilidade da mudança, ao invés de tentar negar a dinâmica da vida.
Mas não estudei isso nas universidades.
Também quero dizer que o HumaHorta não busca "voltar à natureza" ou um paraíso perdido. Ele é uma ponte entre dois mundos. Ele faz sentido em ambientes urbanos densos, como São Paulo, onde o único espaço disponível para uma horta doméstica pode ser o telhado. Acredito que iniciativas como essa continuarão, por muitos anos, sendo pouco difundidas, restritas a um pequeno grupo de pessoas com recursos para investir em um micro ecossistema natural em suas casas. O HumaHorta é, essencialmente, um esforço de pesquisa prática voltado ao fomento dessa reintegração.
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Bere — E como essa reconexão ocorre no HumaHorta?
Fabiano — Aquaponia é um sistema sustentável que combina a criação de peixes com o cultivo de plantas em um ciclo fechado, onde os resíduos dos peixes são convertidos por bactérias em nutrientes para as plantas, que, por sua vez, ajudam a purificar a água para os peixes. Nosso papel é limitado, como ao verificar se o circuito está equilibrado, mas não temos controle total sobre os nutrientes ou os fluxos, o que traz para dentro de casa — ou melhor, para nosso telhado — a oscilação, a diversidade e a transformação que são características essenciais da vida e do universo. Nesse sistema semi-fechado, celebro os ciclos e movimentos — a interação dinâmica entre plantas, animais e elementos naturais, os fluxos de água, energia e nutrientes. É uma tentativa de resgatar a essência cíclica da vida, integrando-a ao nosso cotidiano e questionando visões limitantes nas ciências e práticas contemporâneas, contribuindo para a construção de um novo paradigma.
Bere – Importante esta reflexão, Fabiano, que mexe com muitas ideias rasas e com certos conceitos que fragmentam e minimizam a importância de se construir um novo paradigma, paradigma este que abrace, que integra, que acolhe a essência da vida em seu amplo contexto. Muito boas, também, as referências trazidas! E como foi o processo, desde as primeiras ideias, para você chegar à criação de um telhado verde?
Fabiano – Grande parte da ciência econômica opera sob a pretensão de otimizar as condições para o bem-estar humano. No entanto, essa premissa é limitada, pois confunde bem-estar material ou econômico com o "verdadeiro" bem-estar humano, ainda tão complexo e misterioso. Com frequência, a maximização da produção e do consumo de bens materiais e serviços, que enriquece alguns, ocorre às custas da dignidade e satisfação dos demais seres, especialmente dos seres humanos.
Meu mestrado, no México, foi sobre o Banco do Sul, uma proposta de banco de desenvolvimento regional voltado para a América do Sul, e parte de um esforço para reduzir a dependência da região aos fluxos de financiamento externo, particularmente dos mercados de capitais internacionais – que também foi tema de minha iniciação científica e monografia de conclusão de curso na graduação. A ideia do Banco do Sul é criar uma instituição internacional que possa financiar projetos regionais de infraestrutura, com o objetivo de estimular o desenvolvimento sul americano. No entanto, o projeto, quando examinado mais de perto, está diretamente associado a iniciativas que priorizam o desenvolvimento de infraestrutura na Amazônia e outras regiões ainda pouco exploradas, que envolvem projetos de grande escala na área de transporte, energia e recursos naturais, o que finalmente despertou minha preocupação sobre a preservação ambiental e os impactos no ecossistema regional.
Foi nesse ponto que senti mais fortemente a aversão geral à ciência que descrevi logo acima e decidi deixar a academia, ao menos por enquanto. Comprei uma Kombi e a transformei em uma MotorHome com cozinha, cama confortável, energia solar, e espaço para bastante matéria prima para voltar do México ao Brasil por terra, fabricando e vendendo artesanato como meio para perambular e conhecer o maior número de pessoas e formas de vida no caminho. Vivi quase 4 anos assim.
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Foto de Fabiano L. Crespilho / Arquivo pessoal
Bere – Que virada incrível, Fabiano! Então a preocupação sobre a preservação ambiental e os impactos das ações e projetos, que emergiu deste seu trabalho de mestrado na UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) sobre o Banco do Sul, foi o que fez você “virar a chave” para adentrar em outro universo...
Fabiano – Eu sou meio míope, Bere. Não consigo ver muito longe. Nessa viagem, não fazia ideia de que iria acabar em São Paulo construindo um projeto ambiental. Mas aprendi muita coisa relacionada a isso. Em especial, tive experiências em comunidades Maias, no México e Guatemala, que ainda preservam seus estilos tradicionais de convívio com a natureza e pude sentir na pele o bem-estar, em especial mental, que essa conexão era capaz de proporcionar a eles e a mim enquanto estive por lá.
Quando finalmente cheguei a São Paulo, subindo no telhado da minha casa e olhando para a vastidão da cidade, a primeira coisa que pensei foi em termos de eficiência. Aquela imensa área sem uso parecia um desperdício de potencial, um espaço inexplorado. O economista em mim viu ali uma oportunidade para transformar algo aparentemente inútil (e ambientalmente contraditório) em um ativo. A racionalidade econômica se manifestou e comecei a refletir sobre como poderia aplicar minhas experiências recentes para criar algo que fosse ao mesmo tempo sustentável e útil.
Foi então que surgiu a ideia do telhado verde. A ideia de que o telhado poderia ser um microecossistema funcional, capaz de beneficiar tanto o meio ambiente quanto a vida de seus moradores, me fascinava.
Bere – Eu também tenho miopia, Fabiano, e é interessante você falar disso, pois eu costumo associar a falta de foco da educação, em geral, para a vida como um todo, e já disse várias vezes que a educação que temos, da forma como está, é uma educação “míope”.
Fiquei imaginando você, olhando para os tetos da cidade de SP, de cima do telhado da sua casa...
Então, quais as plantas que são mais apropriadas para a composição de telhados verdes? Como você as seleciona? Você prioriza plantas nativas da região?
Fabiano – O calor num telhado é muito intenso. Após algumas horas, a energia acumulada nas coberturas é tanta que as telhas ultrapassam facilmente os 60°C. O calor não vem só de cima. Vem de todos os lados. Não tem como imaginar essa sensação, mas eu posso mostrar uma foto feita por uma câmera térmica que mostra o calor irradiado pelos telhados dos meus vizinhos. Nela, vermelho indica mais quente e verde escuro, mais frio: