Revista Educacao Ambiental em Acao 38

MÃE NATUREZA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: ABORDAGENS, DISCURSOS E OBSTÁCULOS EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

 

 

Rodrigo Avila Colla

 

 

Bacharel em Relações Públicas pela UFRGS. Especialista em Pedagogia da Arte pela Faculdade de Educação da UFRGS. Professor de Comunicação Comunitária do Programa de Descentralização da Cultura da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

 

Endereço:  Rua Dona Zulmira, 459, ap. 305, Bairro Cavalhada, Porto Alegre (RS). CEP: 90.830-240. Fone: (51) 9844-7476/ 3341-9292

E-mail: rodrigo.a.colla@gmail.com

 

 

RESUMO

 

Este artigo apresenta a problemática do meio ambiente e sua inserção no campo da Educação no Brasil. Após, problematiza a forma como o tema vem sendo abordado e reflete sobre os conceitos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade defendendo esta última perspectiva. Busca entender o sentido dos discursos sobre meio ambiente produzidos em sala de aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Por fim, analisa os discursos de professores entrevistados e conclui que, embora haja uma incipiente consciência ambiental por parte dos sujeitos envolvidos no processo educativo, há também fortes indícios da lógica herdada da modernidade que constituem o que será chamado neste artigo de vontade de saber por dominação do meio.

 

Palavras-chave:

Educação Ambiental; Ensino Fundamental; Meio Ambiente; Temas Transversais em Educação; Transdiciplinaridade;

 

Apresentação

 

Recentemente as temáticas do meio ambiente e da sustentabilidade têm ganhado muito espaço de discussão na esfera pública, principalmente em virtude do agravamento de problemas ambientais e da consequente preocupação com questões que se referem a suas causas. Nota-se, assim, a crescente preocupação com esses temas tanto nas políticas governamentais quanto nas mobilizações sociais.

Em congruência com essa movimentação no rumo da preservação ambiental e, num contexto mais reconhecedor da complexidade, da mudança de conduta do homem em sua relação com o meio – e esta talvez seja a perspectiva mais condizente com a proposta deste trabalho –, vem à tona uma série de discussões para se prospectar como essa problemática será abordada e inserida na Educação.

Este artigo busca entender como vem sendo abordada a questão do meio ambiente nas práticas de sala de aula e os entraves que vêm sendo encontrados nesse processo. Para isso foram entrevistados professores e professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental na Rede Estadual do Estado do Rio Grande do Sul. Todos os professores que foram entrevistados lecionam em escolas de Porto Alegre. Num sentido mais estrito, buscar-se-á principalmente o entendimento de qual a natureza dos discursos utilizados pelos professores quando o tema em pauta é o meio ambiente – isto ficará mais claro logo a seguir, nas análises do conteúdo das entrevistas.

Em muitos países, entre eles o Brasil, optou-se por implantar a Educação Ambiental interdisciplinarmente como tema transversal, ou seja, seria um tema a ser tratado nos diversos conteúdos do currículo escolar e não consistiria em uma nova disciplina. Nos termos da lei:

 

O compromisso com a construção da cidadania pede necessariamente uma prática educacional voltada para a compreensão da realidade social e dos direitos e responsabilidades em relação à vida pessoal, coletiva e ambiental. Nessa perspectiva é que foram incorporadas como Temas Transversais as questões da Ética, da Pluralidade Cultural, do Meio Ambiente, da Saúde e da Orientação Sexual. (BRASIL, 1997, p. 15)

 

Infelizmente o cumprimento dessas indicações no que diz respeito ao tema meio ambiente não é devidamente inspecionado pelo Governo, o que acaba acarretando certa indolência na forma de tratar a Educação Ambiental nas instituições de ensino. Os professores não recebem orientações precisas de como podem trabalhar com Educação Ambiental em sala de aula e são escassos os cursos de formação continuada na área.

Ao conceder gentilmente uma entrevista sobre o assunto, Marina[1], 30 anos, atualmente professora do segundo ano do Ensino Fundamental, relatou o seguinte acerca da forma como é abordada a temática em sua escola:

 

Este ano, a escola nos pediu que trabalhássemos o tema na semana do meio ambiente, mas não nos foi dada nenhuma orientação de como proceder. Nem foi feito nenhum trabalho em um nível interdisciplinar. Na escola que eu trabalho isso só acontece por iniciativa de alguns professores. Também não houve nenhuma forma de cobrança para verificar se o tema estava de fato sendo trabalhado.

 

            A falta de orientação fornecida aos professores, de formação especializada e as negligências na implementação da Educação Ambiental na Educação Básica denotam, em certa medida, a dificuldade de se consubstanciar o meio ambiente como de fato um tema transversal, dado o distanciamento que se foi estabelecendo entre ser humano e natureza ao longo do processo de capitalização global. Em outras palavras, percebe-se que muitas pessoas sequer compreendem a preservação do habitat natural como uma necessidade real relacionada à sobrevivência e à qualidade de vida do ser humano, atribuindo ao ambientalismo motivos meramente ideológico-metafísicos e por vezes até transcendentais. Essa descrença também se mostrará presente nos discursos dos professores quando se referem à maneira como os alunos se relacionam com a natureza e como se inserem em práticas para a sua preservação.

 

TRANSVERSALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

 

A transversalidade pressupõe a conexão com o real. No viés transversal em que são sugeridos os temas citados e, neste caso em particular, o tema meio ambiente, o ponto de partida são as questões sociais em sua complexidade de forma que uma disciplina – ou um conteúdo – não poderia tratar da problemática ambiental em toda sua abrangência. Essa perspectiva nasce da necessidade de estabelecer conexões dos conteúdos disciplinares com o cotidiano e de interligar os saberes por intermédio de temas de interesse social que contribuam na formação da cidadania. Esses temas, na perspectiva da Educação, obviamente, não são passíveis de constituir disciplinas, nem de serem abordados por uma disciplina isoladamente. Entretanto, quando tratamos do assunto meio ambiente, não estamos falando apenas de disciplinas formais, mas também de pontos de vista, de incertezas e conjeturas em relação ao futuro, de diferentes culturas, de crenças heterogêneas, etc. Nesse sentido, é que, transcendendo a ideia de interdisciplinaridade, a abordagem temática do tema transversal Meio Ambiente deve seguir o viés da transdisciplinaridade. Segundo Basarab Nicolescu:

 

A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento. (NICOLESCU, 2000, p.11)

 

Em outras palavras, a transdisciplinaridade busca reconhecer os diversos níveis de realidade existentes, uma vez que a Realidade (o todo) não pode ser reduzida a uma única explicação coerente nem explorada em sua complexidade por uma ciência específica. A Realidade, outrossim, não é a soma das explicações disciplinares sobre ela, seria mais uma rede de saberes acerca do real que, entrelaçados em contínuo diálogo, procuram compreender a complexidade desse mesmo real levando em conta a descontinuidade que ele encerra. A busca pelo conhecimento, neste caso, reside muito mais na compreensão das relações entre esses saberes do que na generalização ou soma de análises particulares. A realidade é relacional, material e transcendente, portanto, transdisciplinar.

O meio ambiente, por sua vez, é de fato uma temática transversal, um aspecto da realidade de interesse social, e deve ser abordado de forma conjuntiva por todos os saberes e conteúdos, pois se trata de uma problemática global e transdisciplinar – um problema de todos, como costumeiramente ouvimos –, mas cabe expor uma preocupação: Como empreender esse conhecimento em rede que nos conecte com o real vivendo, nós humanos, numa lógica de hiperdisciplinarização, de superespecialização, como adverte Morin (2006), e numa ordem dominadora, instrumentalizadora, reducionista?

Se ainda não podemos replicar com precisão ou com a clareza desejada essa pergunta – embora os estudos transdisciplinares venham trabalhando para buscar alternativas para respondê-la –, cabe ter em mente que é preciso vencer esse “vício disciplinarizante-reducionista” na busca por um conhecimento interligado.

A redução da realidade a suas partículas e a disciplinarização não se mostraram ser capazes de compreendê-la. O método científico, apregoado como pedra angular da busca do real, calcando-se no domínio do meio natural sob uma perspectiva reducionista, igualmente se mostrou em certo momento ineficaz. Não obstante, os preceitos científicos e a força que exercem no mundo da vida são muito presentes ainda na contemporaneidade e perpassam todos os campos do saber e valores da sociedade.  Surge daí a problemática que quero deflagrar:

Em que medida nós educadores somos capazes de nos desfazer de discursos repletos de traços da cultura na qual fomos educados e seguimos imersos? Discursos, esses, impregnados por uma lógica de domínio e instrumentalização de outras entidades vivas, e que em grande parte influenciam na orientação de nossa conduta em relação a elas.

 Qual é, afinal, enquanto educadores e educadoras, a lógica dos nossos discursos quando nos referimos à natureza? Somos capazes de atribuir a devida importância em sala de aula a conteúdos/abordagens pertencentes a uma área sem o estatuto de disciplina, a educação ambiental? Estas são questões que fundam essa pesquisa em torno de como vem sendo (re)produzidos os discursos referentes ao meio ambiente nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Essas indagações suscitaram uma série de outras perguntas passíveis de nortear os caminhos a serem seguidos no que diz respeito à forma como busquei entender de que modo o assunto meio ambiente vem habitando a sala de aula.

 

Na TRILHA DOs DISCURSOS

 

Assim, pretendo neste trabalho ater-me à pesquisa junto a professores, analisando, a partir da problemática aqui exposta, como a educação ambiental vem sendo inserida nos primeiros anos do Ensino Fundamental.

Num primeiro momento, ao perguntar-me como a temática do meio ambiente é abordada em sala de aula surgiram-me várias indagações que acreditei serem pertinentes ao problema que levantei:

·         Como é abordada a questão ambiental dentro de sala de aula pelos professores?

·         A iniciativa dessa abordagem costuma partir também dos alunos?

·         Quais são os discursos (re)produzidos sobre a relação homem-natureza por parte dos educadores e qual a sua lógica? 

·         Quando a natureza é discutida somos, humanos, reconhecidos e tratados como seres inseridos nela?

·         É feita alguma relação dos alimentos que as crianças comem com o ambiente natural e, caso seja, reproduz-se uma lógica instrumentalizadora/dominadora em relação a plantas e animais ou há o cuidado desses processos serem referidos como trocas pertencentes a um padrão complexo de rede viva? Como isso é feito?

·         Há a ideia de convívio do homem com os demais seres vivos e com o entorno ou de um isolamento necessário da nossa espécie em relação ao meio – pressupondo assim uma lógica de controle do meio?

Nesse sentido, como já foi dito, o principal objetivo é compreender qual a natureza desses discursos “ambientalistas”. São eles de fato “ambientalistas”? Pois, uma vez que nós, seres humanos, vivemos imersos num universo de representações “é na linguagem que a natureza pode ser nomeada ou anulada” (MELUCCI, 2004, p.162).

Obviamente muitas dessas perguntas supra lançadas não serão respondidas neste artigo, outras serviram apenas como alicerce problematizador do que se busca investigar e ajudam a esclarecer as diferentes “naturezas” que os discursos “ambientalistas” podem carregar. No entanto, a partir do levantamento dessas questões, posteriormente adequadas e lapidadas aos objetivos da pesquisa, foram entrevistados professores que lecionam nos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Estadual do Estado do Rio Grande do Sul.

            Antes de analisar alguns casos pontuais, ou seja, as falas de alguns professores, faz-se interessante tratar de alguns elementos que, de forma geral, estiveram presentes nos seus relatos.

 

MÃE NATUREZA: OS CAMINHOS DIALÓGICOS PERCORRIDOS EM SALA DE AULA

 

Nos discursos dos professores, pude perceber indícios do que Michel Foucault (1996) chama de uma "vontade de saber" nascida nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, a partir das ideias de Francis Bacon. Essa vontade de saber “impunha ao sujeito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer experiência) certa posição, certo olhar e certa função” e, assim, “prescrevia (e de modo mais geral do que qualquer instrumento determinado) o nível técnico do qual deveriam investir-se os conhecimentos para serem verificáveis e úteis.” (FOUCAULT, 1996, p.16-17). Em outra obra, o mesmo autor nos diz:

 

Os códigos fundamentais de uma cultura - aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas - fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar (FOUCAULT, 1999, p.10).

 

Esses códigos fundamentais, por sua vez, contribuem na construção do alicerce de certa vontade respaldada por determinadas tendências que nortearão os caminhos do saber.

Neste caso, acredito que a vontade de saber que ajuda a fundar a Idade Moderna se encontra atualmente imersa numa época de transformações. Considerando representativamente a história da humanidade como uma linha do tempo, segundo Fritjof Capra (2006), nos encontramos historicamente situados num ponto de mutação. Em sua obra O Ponto de Mutação, publicada em 1982, o autor argumenta que vivemos num período de transitoriedade sobre vários pontos de vista: as mudanças, por exemplo, vão desde os sistemas de valores sobre os quais as pessoas se orientam até o paradigma científico.

Sob esse ponto de vista podemos considerar que, em certa medida, estamos ainda condicionados por uma vontade de saber da Modernidade, mas num quadro rizomático onde esta se encontra em rede com múltiplas outras vontades insurgidas recentemente que ora a confrontam, ora a reafirmam, ora hibridizam-se com ela na formação de uma miríade de vontades manifestas e latentes. Essas intenções conscientes ou inconscientes que reafirmam essa vontade de saber típica da modernidade, por exemplo, ao longo dos tempos, num processo de dissídio, originaram-se desta mesma vontade e, nessa rede rizomática muitas vezes remetem a ela, o que não significa que não possam, concomitantemente, estar reverberando também outras vontades ainda em fase de maturação. A ponderação dos diferentes elementos presentes nesses discursos – de suas complexidades – faz-se imprescindível, pois a transdisciplinaridade é adotada na medida em que se considera “que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão planetária dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;” (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 2000, p.167)[2].

Por outro lado, já que temos considerado esse universo complexo das intencionalidades discursivas como um quadro rizomático da realidade (neste caso, transposto para o âmbito linguístico), cabe esclarecer melhor isso citando Gilles Deleuze:

 

O que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de sistema aberto. Volto à questão: o que é filosofia? Porque a resposta a essa questão deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas por um lado os conceitos não são dados prontos, eles não preexistem: è preciso inventar, criar os conceitos, e há aí tanta invenção e criação quanto na arte ou na ciência (DELEUZE, 1991, p.123).

 

Os discursos dos educadores que participaram desta pesquisa constituem recriações que são um sincretismo de vontades incertas e suas motivações discursivas se comportam como sistemas abertos que se alimentam a base de outros sistemas de natureza semelhante, reinventando-se na medida em que os sujeitos de reinventam num território híbrido de vontades com múltiplas motivações. Acerca dessa multiplicidade de valorações e determinações inerentes aos discursos, num tempo onde se deflagra uma diversidade incontável de pontos de vista, cabe citar Deleuze e Guattari quando explicam que “uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações e grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade).” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.16).

O que quero dizer é que, talvez na contemporaneidade passemos por um período de transição em que há vontades de saber promiscuídas demais para serem expressas em termos de uma vontade preponderante, elas se derivam do crescimento dessas leis de combinação, da amplificação das combinações possíveis de vontades. É isso que têm nos levado a falar aqui em sujeitos híbridos e vontades múltiplas, por exemplo. O que de fato parece haver nos discursos analisados é justamente um território em construção de vontades, intenções, valores, saberes, etc., que, por suas contradições e múltiplas “verdades”, têm na transdisciplinaridade um princípio fundamental para a busca da sua compreensão, uma vez que não podem ser “pesadas”, por assim dizer, e nem aproximadas do real por uma só disciplina ou uma só vontade. Não há um caminho único e universal para a decodificação de todas essas “verdades”, mas há uma realidade que às atravessa e uma rede que a interliga.

Nesse sentido, amplia-se o que Michel Foucault (1999) chama de solo epistemológico que, grosso modo, diz respeito a uma espécie de terreno de nascimento de ideais, pontos de vista e focos de abordagem. Destarte, diversificam-se também as possibilidades de “pensamento”, de ordens de pensamentos, de opiniões, de visões e pontos de visão. Qualquer ponto pode remeter a qualquer outro, pode conectar-se com outro, emaranhando-se com ele de forma que não mais sejam pontos. Alargado esse solo epistemológico, cremos que os discursos, neste caso acerca do meio ambiente, encontram-se de certo modo promiscuídos por distintas vontades de saber.

Os sujeitos que proferem esses discursos, por sua vez, trilham múltiplas vias de subjetivação, estes caminhos são tão mutáveis quanto às vontades de saber que, conforme suas vias de mutação, invariavelmente, reorientam os indivíduos. Esses sujeitos se subjetivam, assim, por um híbrido de “sinalizações” provenientes de múltiplos caminhos e encontram-se mais desprendidos em relação a valores dominantes, estando sujeitos, ora à contradição, ora à explicitação de valores em contínua reestruturação. Essa seara de discursos possíveis, neste caso, diz respeito às enunciações com algum teor ambientalista. Todos os professores pesquisados demonstram alguma preocupação com a questão ambiental, mas de que forma proferem essa preocupação? 

            Há uma vontade de saber recente, pululante a partir da segunda metade do século passado, que defende a preservação da natureza, o convívio com o meio e o respeito por toda espécie de vida, uma vontade de saber sobre ele e de aprender com ele. Não obstante, essa vontade de saber brota de um solo alimentado durante muitos anos pela lógica da ciência moderna e corroborada apoteoticamente pela ordem do mercado capitalista e pela sociedade do consumo, caracterizada pelo descarte e pela busca do conforto e do prazer a (quase) qualquer preço: uma vontade a qual podemos chamar, para fins didáticos, de vontade de saber por dominação do meio, pois caracteriza-se invariavelmente pela dicotomização sujeito-dominador (ser humano) e objeto-dominado (natureza). Esta ordem de coisas destacada vai de encontro aquela rebenta vontade de saber que, assim como na sociedade, ainda engatinha na escola: a vontade de saber sobre como conviver em harmonia com os outros seres vivos com os quais já convivemos desarmonicamente.

Essa pueril vontade demonstra sua imaturidade na impregnação dos discursos que a contemplam. Em suma, há a intenção por parte dos professores de problematizar a temática ambiental, mas de que “vontades” está impregnada essa intenção manifesta?

 

MÃE NATUREZA EM ALGUMAS PALAVRAS, POR EDUCADORES

           

Caso 1: apartados da Mãe Natureza

            Ao relatar o que considera mais importante na abordagem da temática do meio ambiente no Ensino Básico, Paula, pedagoga e professora do Ensino Fundamental diz: “Acho que o mais importante é mostrar como vivemos num ecossistema onde as relações do homem com a fauna e a flora são essenciais. Não podemos viver sozinhos, e preservar o meio ambiente faz parte de preservar a espécie humana”.

            Num primeiro olhar o discurso a seguir parece extremamente consciente da preservação do habitat natural. E de fato o é. Não obstante, se o analisamos de forma mais detida podemos perceber nitidamente indícios do que há pouco denominei como vontade de saber por dominação do meio.

            Quando a educadora reconhece que “não podemos viver sozinhos”, em primeiro lugar, fala a partir da posição de ser humano e, quando se refere ao que é não-humano, pode-se dizer que a conotação que nos passa é de que são algo como meras “companhias indispensáveis”. Em outras palavras, a ideia central é antropocêntrica e pressupõe, contrariando o holismo requerido na Educação Ambiental, uma visão fundada na razão cartesiana. Nesse sentido,

 

As estruturas conceituais advindas do cartesianismo têm reforçado um mito fortemente cristalizado no imaginário da humanidade moderna – o mito de que os seres humanos são independentes de outras formas de vida (autonomia da razão) (GRÜN, 2007, p.46-47).

 

            A ideia de autonomia da razão sugerida por Descartes pressupõe sujeito (o eu pensante) e objeto (aquilo que é pensado). A concepção de autonomia do sujeito, portanto, situa-o fora da natureza, como observador. Trata-se de um problema epistemológico que a Educação Ambiental tem de enfrentar e explica o fato do discurso de Paula implicar um olhar de fora e não um entender-se inserido.

Em segundo lugar, cabe problematizar algumas consequências que se manifestam na atualidade e que advém dessa dicotomização. Em dado momento da história humana passamos a apregoar a valorização da individualidade e o conhecimento das leis da natureza para dominá-la a fim de obter benefícios e conforto próprios. Reside aqui uma visão utilitarista do meio: preservar a natureza com a finalidade de preservarmos a nós mesmos. Sob essa óptica da redução, da individualização, nas palavras de Edgar Morin, promovemos a “atomização dos indivíduos” (MORIN, 2007, p.85), nos desconectando do que nos sustenta e “à custa da degradação da qualidade de vida [...] nosso mal-estar nasceu [e continua a nascer a cada dia] no bem-estar” (Ibid). Em parte, o culto à individualidade reforça, concomitantemente, a busca pelo bem-estar e o olhar fragmentário que causa o mal-estar. Enquanto indivíduos imersos numa lógica liberal e cartesiana, foi, em grande medida, na nossa aspiração por conveniências – por bens materiais que nos trazem confortos – que fundamos a nossa desconexão com o ambiente na busca pelo almejado bem-estar social. Desconexão, esta, que é patente no discurso da professora.

 

Caso 2: sociedade de consumo versus responsabilidade social

Laura, outra professora entrevistada, tem 27 anos, é graduada em letras e trabalha atualmente com educação infantil. Ela admite:

 

Dentre os assuntos, o que eu acho que gera mais polêmica, é a separação do lixo. Já tive experiências de alunos que acham uma “perda de tempo” separar o lixo e/ou reciclá-lo, principalmente por que não vêem uma ação efetiva da prefeitura em relação a isso. Ah, e existe também a questão da economia da água versus conforto/ bem-estar.

 

            Existem dois pontos nesse relato de Laura que nos remetem à lógica da sociedade moderna que culmina hoje numa sociedade de consumo. O primeiro é a utilização da palavra lixo. Entendemos por lixo tudo aquilo que, sendo inservível para nós, descartamos. Não obstante, uma vez que na natureza tudo, de algum modo, é reciclado (se transforma e é reinserido num ciclo) não existe lixo, mas sim resíduos de diferentes tipos. A simples utilização da palavra “lixo” (no sentido em que culturalmente o atribuímos) reporta à ideia de que isto de fato não nos serve de nada e, consequentemente, não merece cuidado. Assim, essa opção terminológica carrega consigo um significado que não condiz coerentemente com a prática da reciclagem e da coleta seletiva. A grande quantidade de resíduos que o ser humano tem gerado e a premente necessidade de separá-los corretamente a fim de otimizar seu reaproveitamento, advém de uma sociedade orientada para o consumo. Consumo, este, que visa a buscar o conforto/bem-estar humano, que por vezes está aliado a certas tendências hedonistas e, em sua lógica acelerada, não admite “perda de tempo”.

            É justamente esse o segundo ponto importante presente no relato da professora: os valores da sociedade de consumidores. A busca pelo conforto e satisfação a qualquer preço, o individualismo e a ânsia por se obter tudo depressa, comumente não condizem com o que chamamos de responsabilidade social, neste caso, com a separação dos resíduos para a coleta seletiva. A indolência dos governos para com esse fator, também presente nas palavras da educadora, é lamentável e acaba por potencializar ainda mais a negligência por parte dos alunos para com o problema em questão.

 

Caso 3: a supressão da participação das crianças nas ações de Educação Ambiental

Ao ser perguntado se em alguma das escolas em que trabalhou, a questão da preservação do meio ambiente já foi pensada de forma integrada (como um projeto que mobilizaria toda a escola), o educador Airton, 39 anos, relata:

 

O mais próximo que cheguei disso foi no projeto do esgoto a céu aberto. Os alunos de todas as turmas de 5º a 8º série estiveram unidos no projeto. Entretanto, este foi um trabalho que teve a colaboração da direção da escola, mas quase nenhum envolvimento de outros professores. Somente uma professora interessou-se em colaborar de forma efetiva.

 

            Cabe salientar que, embora Airton dê aula de Educação Física também para crianças dos primeiros anos do Ensino Fundamental, quando foi feito um projeto de mobilização na escola, as séries escolhidas para participarem foram os últimos anos do Ensino Fundamental.

            Jaz aqui um fator importante que concerne não só à Educação Ambiental: quando há efetivamente uma ação que visa a ser de mobilização, em geral são os jovens e adolescentes priorizados para ingressar nesses projetos. Às crianças parecem ser reservadas dinâmicas de conscientização e eventos mais pontuais.

Entretanto, é passível de se levantar um questionamento: não seria conveniente, em prol do exercício da autonomia, e numa abertura à diversidade que deve pressupor uma prática de Educação Ambiental, a inserção das crianças nesses processos?

 

ÚLTIMAS PALAVRAS

           

Dos 15 professores e professoras que foram procurados, dois deles admitem que até o momento nunca trataram do tema meio ambiente em sala de aula, pois consideram que isto não é uma prioridade de suas disciplinas. Outros quatro afirmam que abordaram a temática poucas vezes em ocasiões específicas em que condizia com o conteúdo de suas disciplinas. A maioria argumenta procurar fazer relações sempre que possível, embora reconheçam ter dificuldades. Apenas cinco dos sujeitos entrevistados asseguram que tratam do assunto regularmente.

Este trabalho buscou mostrar que, mesmo no relato desses professores que abordam o tema com frequência há, ou indícios da vontade de saber por dominação do meio herdada da modernidade, ou elementos que nos permitem supor que essa vontade de saber está presente nos agentes envolvidos na inserção do tema meio ambiente na Educação. Se nos relatos dos professores percebemos certo condicionamento seu no que diz respeito a essa vontade, notamos também que ela está presente na concepção dos alunos, dos administradores das escolas e dos agentes do âmbito governamental.

As dificuldades em se abordar o meio ambiente, dessa forma, perpassam diversas instâncias: o governo, embora tenha demonstrado preocupação com o tema na legislação, não consegue fiscalizar sua implementação no ensino e também não propiciou uma formação/atualização nesse sentido. Os administradores e gestores das escolas, em geral, costumam “comentar” a necessidade de se abordar o assunto, mas tampouco passam orientações precisas aos educadores. Deste modo, a culpa, frequentemente, recai sobre os professores que, desassistidos, por vezes não conseguem explorar a temática em sua complexidade e encontram dificuldades para fazer relações entre ela e as demandas de suas disciplinas.

Com efeito, pouco se sabe sobre os caminhos ideais para abordagens significativas sobre o meio ambiente no ensino e esse problema parece perpassar todos os agentes envolvidos. Nesse ínterim, os discursos “ambientalistas” que circundam nas escolas seguem impregnados por uma lógica dominadora, e as vontades incertas e viciadas nessa lógica, acabam por raramente fecundar ações e mudanças de conduta representativas.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf>. Acesso em: 02 de maio de 2011.

 

Busquets, Maria Dolors (Org.).  Temas Transversais em Educação: bases para uma formação integral. São Paulo: Ática, 1998.

 

CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 2006.

 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2007.

 

DELEUZE, Gilles. Mil Platôs não Formam uma Montanha, eles abrem mil caminhos filosóficos. In: ESCOBAR, Carlos Henrique de (Org.). Dossier Deleuze.  Rio de Janeiro: Hólon, 1991.

 

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

 

FOUCAULT, Michel. As Palavras e As Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

FREITAS, Lima de; MORIN, Edgar; NICOLESCU, Basarab. Carta da Transdisciplinaridade. In: Educação e Transdisciplinaridade.  Brasília: Unesco, 2000.

 

LEFF, Enrique.   Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. In: Educação & Realidade. Porto Alegre Vol. 34, n. 3 (set./dez. 2009), p. 17-24.

 

MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política.  Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.

 

MELUCCI, Alberto. O Jogo do Eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2004.

 

MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.  12 ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

 

MORIN, Edgar.  Educar na Era Planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana.  São Paulo: Cortez, 2007.

 

Nicolescu, Basarab. Um Novo Tipo de Conhecimento – Transdisciplinaridade. In: Educação e Transdisciplinaridade.  Brasília: Unesco, 2000.

 


 

[1] Todos os nomes de sujeitos entrevistados que aparecerão neste trabalho foram modificados com a finalidade de preservar sua identidade anônima.

[2] O excerto foi extraído da Carta da Transdisciplinaridade. A carta foi redigida e adotada no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade Convento de Arrábida, em Portugal, de 2 a 6 de novembro, 1994, e teve como comitê de redação: Lima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu. Foi publicada na íntegra no periódico Educação e Transdisciplinaridade.