Não podemos pensar em desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e em qualidade de vida sem discutirmos meio ambiente. - Carlos Moraes Queiros
ISSN 1678-0701 · Volume XXII, Número 88 · Setembro-Novembro/2024
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Arte e Ambiente
19/09/2003 (Nº 4) Arte e Educação Ambiental: as formas de um pensamento crítico-reflexivo
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Cláudia Mariza Mattos Brandão

            O ser humano, assim como os demais seres vivos que habitam o planeta Terra, mantém com este uma relação interativa condicionada pela necessidade de sobrevivência e permanência enquanto espécie, sendo que a particularidade que o torna diferente das demais é sua capacidade de ação "consciente", por conseguinte cultural, no processo de intervenção ambiental. Esse diferencial também nos possibilita a compreensão do processo de desarticulação da Natureza - aqui entendida como a força ativa que estabelece e conserva o equilíbrio e a ordem natural de tudo - diretamente relacionado com o grau de aceleração da capacidade humana de criação cultural, que num primeiro momento tinha como meta comodidade e bem-estar e, posteriormente, a possibilidade de apropriação, o acúmulo de riquezas e a dominação dentro da própria espécie. Nesse sentido, é possível perceber a cada etapa do processo histórico cultural, e mais intensamente neste último século marcado pelo apogeu tecnológico, o agravamento da degeneração dos recursos naturais, que ocasionou o aumento da contabilidade dos problemas e desequilíbrios ambientais.

 

Nos anos 60 e 70, os ecologistas eram considerados pessoas "sonhadoras" e "utopistas". Suas idéias eram vistas como "empecilhos" ao desenvolvimento econômico, uma vez que faziam sérias críticas ao consumismo e à exploração abusiva dos recursos naturais do planeta. Diante dos graves desafios que emergem neste início de século, como a contaminação das fontes de água potável, a desertificação, o aquecimento global, a ameaça do degelo antártico, as "utopias ambientalistas" retornam com suas reflexões e encaminham soluções possíveis e inadiáveis, colocando como um dos maiores desafios a mudança de mentalidades e de comportamentos, tendo como base a Educação Ambiental em toda sua plenitude. Como o paradigma ético predominante na sociedade industrial se coloca como um forte obstáculo ao avanço da consciência e ação ecológicas, na medida em que atua como referência de comportamentos e ações individuais e sociais, existe a necessidade de substituir a racionalidade individualista e competitiva vigente, por uma mentalidade que permita o restabelecimento dos equilíbrios sistêmicos afetados, levando-se em consideração, além dos aspectos científicos, as características culturais regionais e suas intrínsecas correlações históricas.

 

As orientações da Conferência de Tbilisi[1] explicitam a importância dos sentidos e da subjetividade para a compreensão da complexidade das relações humanas, sociais, políticas e com a Natureza, destacando a relevância das atividades culturais e artísticas nas práticas da Educação Ambiental Informal. A possibilidade de conhecimento compartilhado, o desenvolvimento da capacidade de reflexão crítica e a efetiva contribuição da Arte no processo de culturação dos povos são importantes instrumentos no desenvolvimento de uma cultura social que favoreça uma mudança de atitudes, sob a perspectiva de compreensão das relações sistêmicas.

 

A sociedade contemporânea reage frente a problemas como: o incremento do consumo, a globalização, a desintegração social e a demasiada concentração demográfica urbana, fatores que determinam o declínio da qualidade da vida nas cidades. Nessa sociedade em constante mutação, com grande mobilidade física e social, imersa num processo de uniformização cultural provocado pelas novas tecnologias, temos um tempo – cronológico e histórico – que se “esvai”, onde a confusão entre o privado e o social “sufoca” e anula o valor da história da qual cada indivíduo é protagonista, eliminando, assim, a identidade do sujeito.

 

Na Pós-Modernidade - como condição histórica - a cidade é o lugar onde o fato se funde à imaginação, numa relação peculiar entre homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana[2]. A rua, como espaço público dinâmico e de relações, permite uma análise que supera a enumeração dos elementos físicos que o conformam. Como espaço de transição, lugar de todos, a percepção do urbano reúne os elementos sociais e comunicativos aos estéticos e funcionais, revelando o ritmo e as características próprias da população. As estratégias de representação, fundadas em posicionamentos e ações culturais promovidas no âmbito da Arte, nos revelam a organização dos setores sociais, culturais e políticos que interferem na construção da cidade contemporânea.

 

O meio ambiente percebido como parte integrante das relações sociais e do processo histórico de construção de mundo solidifica a consciência planetária das ameaças da civilização industrial-tecnológica. A relação homem-natureza e dos grupos sociais entre si, bem como a forma de apropriação dos recursos naturais, são fatores determinantes da qualidade de vida da sociedade. O aprimoramento dessas inter-relações solidificou-se como um dos objetivos da Ecologia Social, que também se propõe a pensar o sujeito numa relação de alteridade, interferindo e modificando o seu meio a partir de uma dimensão ética, que não seja imposta culturalmente, mas que reflita suas escolhas, percepções, valores e ideais.

 

            Sob esse enfoque, a Educação Ambiental visa a promover uma mudança de mentalidade. Sua abordagem ecossistêmica confere-lhe uma visão mais ampla que conjuga a perspectiva ecológica, a social, a cultural e a econômica, procurando estabelecer uma nova relação entre a humanidade e a natureza e uma razão alternativa aos modelos da razão clássica e da razão dialética[3]. Na expectativa de produzir novos modos e estilos de vida, desde a Conferência de Tbilissi, a E.A. está orientada como uma proposição que abandona a tradicional compartimentação do conhecimento, numa perspectiva interdisciplinar, que não se limita à educação formal. Trata-se de uma educação que visa à participação dos cidadãos nas discussões e decisões sobre a questão ambiental, num processo educativo que não separa a arte da ciência e busca  conhecer o humano  situado no Universo[4].

 

No meu ponto de vista, é por intermédio das interações intersubjetivas e comunicativas entre pessoas com diferentes concepções de mundo e relações cotidianas com o meio natural e construído; características da vida social e afetiva; acesso a diferentes produtos culturais; formas de manifestar as suas idéias; conhecimento e cultura; dimensões de tempo e expectativas de vida; níveis de consumo e de participação política que poderemos estabelecer diretrizes mínimas para a solução dos problemas ambientais que preocupam todos nós. (Reigota, 2001:28)

 

 

Em A floresta e a escola: por uma educação ambiental pós-moderna, Marcos Reigota dedica parte do primeiro capítulo à contribuição da arte brasileira, na figura de Oswald de Andrade, ao processo de construção das identidades nacionais e, por conseqüência, à ecologia global.

 

Oswald, poeta, jornalista e acadêmico foi testemunha da transformação de São Paulo, pacata cidade provinciana, em um centro dos mais industrializados e populosos do mundo, e foi profundamente influenciado pelas questões relacionadas ao isolamento do indivíduo moderno e à falta de identificação cultural. Ele defendeu a construção de uma sociedade calcada na subjetividade e no estilo próprios da raça brasileira em documentos como o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924), a obra “Pau-Brasil” (1925) e o “Manifesto Antropófago” (1928). Foi um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna (São Paulo, 1922) e mentor intelectual do Movimento Antropofágico, que por sua vez influenciou o Tropicalismo na década de 60. Juntamente com intelectuais como a pintora Tarsila do Amaral - com suas cores e temas acentuadamente nacionais (figura 1) - e Mário de Andrade, buscava consolidar uma cultura hibridamente brasileira, numa demonstração da preciosa contribuição que as diferentes formas de conhecimento e expressão podem fornecer às reflexões sócio-políticas.

-            Mas o que é isso? – perguntou-me o homem severo, indignado.

-            É a poesia de transição, poesia de guerra, poesia de assalto (...).

-      Mas não há nada que se salve no meio disso?

-     Há! Há o mundo novo que penetra pelas frestas abertas da guerra.

(Ponta de Lança, Andrade, 1972:26)


Figura 1 - Tarsila do Amaral
São Paulo, 1924; óleo sobre tela, 67 x 90 cm.
Pinacoteca do Estado de São Paulo.

 

Permear saberes na busca da compreensão do tempo presente, se trata, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana[5], evidenciando que o processo de recomposição das práticas sociais e individuais e o redimensionando da relação do sujeito com o meio, dentro dos novos contextos históricos, exige uma mudança de postura que precisa ser despertada e que tem na arte um excelente meio.

 

Os pensadores da Antigüidade preocuparam-se em conhecer os elementos constitutivos das coisas em busca de um princípio estável que explicasse a origem dos seres e suas transformações. Introduzindo no estudo da sociedade e da cultura o ponto de vista reflexivo-crítico, assim como problematizaram a Natureza, transformaram em problema filosófico a existência e a finalidade das artes. A reflexão filosófica em torno da Arte introduzida pelos gregos desenvolveu-se ultrapassando os limites das avaliações estéticas. Como modo de ação produtiva do homem, a Arte constitui um fenômeno social e é parte da cultura. Relacionada com a existência humana, é foco de convergência de valores religiosos, éticos, sociais e políticos, e mantém íntimas conexões com o processo histórico. Produto da práxis, a expressão artística é a exteriorização da existência, uma forma de ação cujos efeitos se produzem de modo indireto. Agindo sobre a nossa maneira de sentir e de pensar, a Arte é um apelo, uma solicitação capaz de despertar a consciência moral para a descoberta dos valores éticos, sociais e políticos, dando-nos uma visão mais íntegra da realidade.

 

A megalópole contemporânea que, com sua atividade febril, reduziu o valor do indivíduo, até quase eliminá-lo, agoniza: asfixiada por monóxido de carbono, cercada de lixo químico, sitiada pelos guetos que a desigualdade social criou, vitimada pela leptospirose dos ratos e picada pelos mosquitos da dengue. Essa é a “doença fatal” que contamina nossas cidades, demonstrando a falência do paradigma moderno e da ética antropocêntrica, e exigindo a promoção de uma cidadania ambiental,  em busca de uma nova interligação ética entre Homem e Natureza.

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica - Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 6ª ed. São Paulo: Ed. Pensamento-Cultrix, 2001.

DIAS, Genebaldo Freire.  Educação Ambiental: princípios e práticas. 5ªed. São Paulo: Global, 1998.

GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.

_______________  Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

OLIVEIRA, Ana Cláudia de e SANTAELLA, Lúcia (org.). Semiótica da Cultura, Arte e Arquitetura. São Paulo: EDUC, 1987.

REIGOTA, Marcos. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998.

________________ Ecologia, elites e intelligentsia na América Latina: um estudo de suas representações sociais. São Paulo: Annablume, 1999.

________________ Meio ambiente e representação social. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.

TOURAINE, Alan. Crítica da Modernidade. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.



[1] Documento elaborado pelos participantes/representantes dos Estados membros presentes à Primeira Conferência Intergovernamental em Educação Ambiental (Geórgia, CEI, 1977) realizada pela UNESCO em cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). (Dias, 1998:61)

[2] Harvey, 2000:17.

[3] A Razão Dialética (Reigota, 2001) pensa o mundo pelo prisma da luta, do conflito e da negação, não o percebendo como criação. Embora apregoe a necessidade de uma relação entre sociedade e natureza que seja integrada e orgânica, aplica tratamento diferenciado aos dois termos, aceitando no plano da sociedade a forma de luta de classes.

[4] Edgar Morin, 2000:37.

[5]Morin, 2000:45.

Ilustrações: Silvana Santos