Era uma vez... uma baía com o nome de uma mulher... Michèle Sato Se o rei Zulu não pode mais andar nu, Oh! Viva a batina do bispo Tutu! (Gilberto Gil) “Aproximadamente 6 mil línguas serão extintas em um único século”. Garante Gibbs (2002: 82), ao tentar resgatar a importância do idioma como expressão significante da cultura dos povos. Sua recomendação repousa no esforço de tentarmos frear este processo inserido no fenômeno da globalização, que aniquila a riqueza da diversidade e impõe padrões hegemônicos dos perversos jogos do poder econômico. A perda lingüística destes povos representa a perda de referenciais culturais que conferem sentido ao comportamento social de sujeitos sob arranjos societários que se associam às manifestações materiais e espirituais. A cultura, do ponto de vista da antropologia interpretativa, não pode ser mais analisada sob a ótica sincrônica, “senão pela variabilidade de condições geográficas e históricas muito específicas” (Viertler, 1999: 22). Para a compreensão desta nova antropologia, é preciso conhecer o habitat e a ocupação histórica. O processo de ocupação brasileiro foi realizado sob o rígido controle de incluídos e excluídos, entre conflitos e disputas de dominação e subordinação. Observa-se, ainda no cenário atual, não apenas a exploração das forças produtivas, mas a apropriação de conhecimentos populares, como atestam a pirataria biológica ou as patentes de produtos naturais. A palavra oral teve sua elevada contribuição na constituição da história dos povos e pode revelar a riqueza das construções lingüísticas ainda não descobertas, bem como favorecer as pesquisas na História das migrações, colonizações e assentamentos dos seres humanos ao longo dos tempos. Muito de nossa história brasileira vem da história oral. Não é fácil percorrer a trajetória que essas histórias e temas percorreram no jogo voz ou letra, afirma Leite (2000). Mas é inegável que a historicidade oral resgata valores culturais esquecidos e aprecia o conhecimento popular negligenciado pela Modernidade. Todavia, a oralidade se esvai, pois as palavras são levadas pelos ventos e sistemas políticos, sem deixar registro ou marcas de sobrevivência. Valeria a pena resgatar as belas palavras do poeta T.S. Eliot, quando ele questiona “onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. Para os ambientalistas, o discurso da proteção da biodiversidade é um completo consenso. Mas negligenciam a diversidade cultural. A vasta literatura tem revelado, entretanto, que a conservação da biodiversidade pode ser mais efetiva, se houver mais envolvimento das comunidades que vivem no entorno das áreas naturais (Maroti, 2002). As comunidades locais podem desempenhar papéis importantes na proteção do ambiente, se forem devidamente incluídas nos processos de decisão e de atuação. Posey (1988) estudou a diversidade de etnias encontradas no mundo e concluiu que a maioria absoluta (5 mil de um total de 6 mil línguas) encontra-se em países de mega-biodiversidade, como é o caso do Brasil. A perda da diversidade cultural ocorreu devido a falta de valores ou a princípios semelhantes ao que estão agora destruindo a biodiversidade do planeta. Há uma escassez de solidariedade, de empatia, de respeito e de outros valores, o que acaba refletindo na qualidade dos comportamentos humanos em relação aos seus semelhantes e às demais espécies vivas. Historicamente, as necessidades humanas têm aumentado exponencialmente afetando a natureza de maneira drástica. No último século esta destruição, acelerada e desmedida, passou a despertar a humanidade para o risco de perda de muitas formas de vida (Padua et al., 2002: 184). No ano de 1999, inicia-se o planejamento para um projeto de pesquisa em Mimoso , Santo Antônio de Leverger, Mato Grosso (MT). Dentre diversas metas propostas, o projeto Mimoso visa buscar alguns meios que possam promover a participação comunitária em pequenos projetos de conservação à natureza. O sonho é dar empoderamento à comunidade para que ela mesma possa ser autônoma nos cuidados com a Terra. Boff (1999, p.195) definiu o termo “empowerment” como “a criação de poder nos sem-poder ou a socialização do poder entre todos os cidadãos e reforço da cidadania ativa junto aos movimentos sociais”. Isso implica dizer que sempre haverá uma parcela das minorias que se sentirão ameaçadas, especialmente pela divisão do poder político. Impõe-se, assim, a necessidade de estabelecer novas relações entre o campo e a cidade e de renovar a vida com critérios que ultrapassem a mera distribuição das forças produtivas – “fundadas no potencial ecológico e cultural de cada região, na liberação de forças criativas e na capacidade organizativa dos povos, incrementando o poder de decisão local e fortalecendo a capacidade das comunidades rurais na gestão ambiental” (Leff, 2000: 246). Ancorada na teoria biorregional, a equipe considera que através da valorização cultural, potencializaria a participação das comunidades nos projetos de Educação Ambiental (EA) da região. O biorregionalismo quer transformar os modos de produção, os estilos de vida e os critérios de aplicação dos conhecimentos no processo do (des)envolvimento . Assim, mobiliza um novo projeto civilizatório, problematizando o papel do Estado como lugar de confrontação dos interesses, através de conflito e consensos, dos objetivos comuns das diferentes classes e grupos sociais como instâncias responsáveis de manejo ecológico, sob o olhar da invenção educativa. A cultura ecológica inscreve-se, assim, num processo de ressignificação do mundo atual. Para além da crítica das deficiências do sistema produtivo para satisfazer a procura dos consumidores, coloca-se a crítica radical das necessidades. A perspectiva ambiental do desenvolvimento é um novo enfoque global e integrador da realidade social. É um olhar inquisidor, lançado de u futuro possível sobre a cristalização do processo histórico passado, para a transformação e re-apropriação da realidade social (Leff, 2000: 255). Buscando a extrusão do sombrio legado contido no termo “desenvolvimento sustentável”, a UFMT , em parceria com o IBAMA e a SEDUC , buscou atuar na comunidade de Mimoso com o firme propósito de transformação de realidades, para que os oprimidos também possam ser favorecidos pela riqueza da diversidade – ampla, irrestrita e construída através do diálogo entre pesquisados e pesquisadores, na aliança entre ciência e poesia, e na formação de uma comunidade de aprendizagem convicta de que “nem mesmo a razão poderia explicar a própria razão” (Touraine, 1994: 86), ou como justificaria Fernando Pessoa, porque “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. É neste cenário de rico caldo cultural e natural que a equipe resgata as expressões e ícones de Mimoso, ouvindo histórias e contando outras. Geertz (1989-b: 25) definiria como “início de nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que chamamos que eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las”. Esta é uma metodologia da história oral, que circunscreve naquilo que Gauthier (2001) denomina de Sociopoética - uma pesquisa teórico-metodológica no campo da educação popular que propõe um processo grupal de produção de conhecimento. Busca valores e conceitos tradicionalmente negados, explorando o poder cognitivo da oralidade, da intuição, dos gestos e das sensações. Em consonância com este pressuposto, a fenomenologia busca o saber e o conhecer dos seres humanos. Busca um saber sensível que nos rodeia, inelutável, primitivo, fundador de todos os demais conhecimentos. “É um saber direto, corporal, anterior às representações simbólicas que permitem os nossos processos de raciocínio e reflexão (...) é a base de qualquer processo educacional, por mais especializado que ele se mostre” (Duarte, 2001: 12). Tudo que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma percepção experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance, convém despertar primeiramente esta experiência do mundo da qual ela é expressão segunda. (Merleau-Ponty, 1971: 7). Na concepção de Leite (2002), as histórias orais sofrem alterações e contextualizações geográficas e históricas, permanecendo intactas ou se atualizando, conforme o cenário ou a paisagem em que se inscrevem. No Brasil, a primeira instância herdada pelos portugueses, teve mistura com o repertório das etnias indígenas e suas transmissões afetam as culturas de forma diferenciada. Ancorada na Sociopoética fenomenológica, a equipe Mimoso conversa informalmente com as populações, buscando a essência dos símbolos e mitos da água. Encontramos, assim, uma antiga lenda já quase esquecida, que retratava da origem do nome de uma das baías ali existentes: a baía da “Tchá Mariana” (Sato et al, 2001; Pimentel; Sato, 2002). As histórias nem sempre são convergentes e algumas vezes divergem bastante. A tarefa de adequar os mitos faz parte do rigor da pesquisa, que através dos registros históricos, pondera e assume uma versão. Todas as narrativas, entretanto, centram-se na existência de uma negra com lindos olhos verdes chamada Mariana, que viveu durante um tempo nos arredores dessa baía. Os relatos falam ainda sobre a bondade e caridade com que Mariana tratava a todos que por lá apareciam. Algumas narrativas contam que Mariana era uma negra escrava do Barão de Melgaço por quem ele se apaixonou. Apesar de ser branco, barão e casado, ele se entregou à relação amorosa com ela. Dizem que a esposa do barão descobriu e passou a perseguir Mariana. Para evitar que a esposa fizesse algo de mal para Mariana o barão tirou-a de sua fazenda, levando-a para um morro que circunda a baía que hoje tem seu nome. Numa variação dessa história a personagem masculina não é o Barão de Melgaço, mas um usineiro branco e rico - igualmente comprometido. Construiu uma casa próxima à baía, onde Mariana esperava pela chegada deste senhor. Um dia, porém, este retorno não mais existiu. Cansada de esperar pelo amado, Mariana entra nas águas e nunca mais saiu. Algumas narrativas afirmam que as águas se encantaram, desde então, onde de tempos em tempos, a Tchá Mariana vem encantar as pessoas e levar ao fundo da baía. A figura mítica é bela e atrai os curiosos que se aproximam da baía por volta das 18 horas. Conhecendo as variações desta lenda, buscamos alguns registros históricos e verificamos que a possibilidade da personagem masculina ser o Barão era remota, desde que a baía existia antes da chegada deste senhor nas terras de Mato Grosso. Adotando uma versão que melhor se adequasse, a equipe produziu uma história em quadrinhos da lenda e distribuiu à comunidade. Na consideração de Giesta (2002: 160), as histórias em quadrinhos combinam a imagem e texto escrito, constituindo-se um código específico que busca a participação do leitor por via emocional, anedótico, assistemático e criativo. Representa um recurso mesmo àqueles que não dominam a linguagem das letras, estimulando curiosidade e podendo ser explorado além dos espaços escolarizados. “A explicitação das concepções e dos significados construídos nas relações interpessoais é de inegável importância para que haja uma efetiva comunicação educativa”. O tratamento das questões ambientais merece conhecimento sólido, atitude aberta e sem preconceito na busca de aprofundamento e esclarecimento de dúvidas. Requer, então, educadores abastecidos de uma formação embebida no gosto pela aquisição de novos conhecimentos, impregnada por constantes interrogações e dispostos a utilizar metodologias instigantes de ensino que promovam a discussão, a pesquisa, a explicitação dos conhecimentos prévios dos educandos a conceitos científicos a serem estudados (...) enfim, procedimentos que orientem os estudantes a se tornarem capazes de, com autonomia, assumir atitudes e desenvolver ações de cidadania. (Giesta, 2002: 166). Espera-se que a comunidade utilize este material, seja nas salas de aula, na recuperação de valores culturais outrora negados, seja na busca de um currículo fenomenológico que se sustenta somente através da participação individual ao desenho coletivo, contra parâmetros generalistas que não respeitam a diversidade, retirando a existência de múltiplas manifestações da possibilidade epistemológica. Na recuperação de outras narrativas sobre a água, percebe-se a iconografia feminina nas lendas. Nas análises de Chevalier & Gheerbrant (1995), a água representa, freqüentemente, uma oposição sexual. Na maioria das lendas e histórias resgatadas em Mimoso, as entidades aterrorizadoras são masculinas e entidades belas femininas. Histórias como a formação da Baía de Tchá Mariana são comuns em quase todo o mundo - há sempre uma mulher triste por um amor não correspondido ou impossível, cujas lágrimas de sofrimento formam lagos, rios ou baías. As entidades assustadoras que aparecem na água (minhocão, por exemplo), são remetidas às figuras masculinas. Assim, a água pode engolir e destruir, punindo os pescadores, mas não atingindo os justos. Mesmo os rios podem ser correntes benéficas ou dar abrigo a monstros. Assim, dos símbolos presentes em Mimoso, a água é como fonte de fecundação da terra e de seus habitantes (há uma relação particular da mulher com a água), representando o curso da existência humana e as flutuações dos desejos e dos sentimentos. A água poluída, entretanto, traduz-se em horror, doença e morte. O estudo destes símbolos é fundamental para compreender o imaginário das pessoas, onde a civilização industrial que causa a poluição pode avivar a necessidade e o apetite por signos que falem que devemos intervir nesta realidade, com propostas de EA que, resgatando tais histórias e ícones, podem frear o desenvolvimento insustentável da biorregião (Gomes; Sato, 2001). A abordagem da ecologia política, pelo menos como tem sido aplicada no estudo das decisões do uso da terra, raramente tem dado prioridade ao desempenho que as relações de gênero têm nas decisões de uso dos recursos. No entanto, tais considerações podem ser facilmente introduzidas dentro do modelo, visto que as relações de gênero são características proeminentes do contexto dentro do qual as decisões são feitas. (Schmink, 1999) Potencializar tais histórias, que vêm em épocas distintas, vestidas de farrapos ou modelos de sua época, é também se desnudar da arrogância materialista em acreditar que os conhecimentos só podem ser construídos e validados no interior das academias ou institutos de pesquisa. É um reconhecimento, e sobremaneira um agradecimento, ao momento vivo da comunidade, que através dos diálogos, possibilita criarmos alternativas inovadoras em EA. Nossos quadrinhos não representam uma proposta fechada e finalizada da EA, pelo contrário, é apenas um convite para manter a cultura local, através de seus gestos, falas, emoções e lendas, para que a educação possa cumprir, pelo menos em parte, sua obrigação em conservar a DIVERSIDADE - seja ela social ou biológica. Através deste gibi, diversas práticas podem ser criadas, como fantoches, músicas, teatros ou hora das histórias, tornando a água como um dos preciosos sentidos da teia em movimento (Pimentel; Sato, 2002). Trata-se, dirá Geertz (1989-a), de compreender, dialeticamente, o significado que ele adquire na totalidade da teia onde se encontra o umbilicado. Contudo, como todo signo humano é polissêmico, abrange múltiplas possibilidades de sentidos, todos eles inesgotáveis e jamais completamente congruentes ao sentido original. É também neste sentido que Geertz entende o antropólogo ou o educador como co-autores. Quem interpreta, recria e ressignifica. Não há pesquisadores que, frentes aos mesmos dados, interpretarão e escreverão a mesma coisa. Afinal, cultura é um texto! (Sato; Passos, 2002). Todas as dimensões da cultura compõem o código de identificação de cada sociedade. Em Mimoso, cada aspecto da vida cotidiana traz em si alguma referência sobre o grupo, seja o que pensam, o que fazem, formando uma ampla comunicação da sua própria cultura. Para descrever tal cultura, é preciso uma observação dos pequenos quadros cotidianos, e sobretudo do ambiente onde vive este grupo (Leite, 2002: 96). Uma interpretação não é porém uma arbitrariedade vazia. Em uma pesquisa, transforma-se em uma busca da convivência dia-a-dia, na intenção de querer compreender o viés do olhar do outro, e sobretudo emprestando o ombro do outro para ver de esgueira alguns significados que ele, o nativo, ali pôs. A fenomenologia dá ênfase à vida cotidiana, pelo retorno àquilo que ficou esquecido, encoberto, pela familiaridade, pela intencionalidade (Souza, 2001). As múltiplas leituras que se fizerem de um signo, de uma gestualidade, de uma fala, de um símbolo pelo pesquisador jamais será uma leitura de primeira mão, e introduzirá fatalmente sentidos pessoais e semânticos próprios. A significação poética não é da mesma natureza que, por exemplo, a significação matemática ou filosófica. A significação poética nunca alcança o nível de abstração e generalidade que eles alcançam, porque nega o conceito, lei ou princípio teórico. A poesia, a arte, é um tipo de realização intelectual abstrata, na medida que em que deseja preservar a vivência individual afetiva. (Gullar, 1995) . A importância deste resgate cultural consiste na possibilidade de garantir a sobrevivência de mitos, igualmente expressões dos povos, repassados oralmente de geração a geração. Como registra a matéria na Folha, talvez não se trate de criar um “iluminismo tropical ”, mas a proposta é aliar conhecimento científico (mensurável, replicável e comprovado) com conhecimento popular (sentido, possível e percebido). O registro deste ícone, sob forma de histórias em quadrinhos, possibilita que o imaginário da conservação da biodiversidade também considere a diversidade cultural e étnica, quase sucumbida ao poder econômico da homogenização. A história em quadrinhos pode ser uma espécie de instrumento artístico para a educação do sensível, “levando-nos não apenas a descobrir formas até então inusitadas de sentir e perceber o mundo, como também desenvolvendo e acurando os nossos sentimentos e percepções acerca da realidade vivida” (Duarte, 2001: 23). Dentre diversos subprojetos da equipe Mimoso, esta história em quadrinhos pode auxiliar na conservação da biodiversidade, inclusive dos animais peçonhentos, já que a teia da vida é mantida por um conjunto de signos culturais que podem convocar a participação comunitária no manejo ecológico. Da mesma maneira, impede que os visitantes sujem a baía da Tchá Mariana com latinhas de alumínio, prazerosamente servidas no banquete da pesca e da cerveja. O lixo exagerado, produto de um modelo insustentável de desenvolvimento, pode ser evidenciado nas proposições da manutenção da qualidade da água, restituindo o conhecimento intuitivo dos direitos contra o privilégio tradicional das legislações e normatizações autoritárias. A lenda atrai a curiosidade dos turistas, que antes de contemplar a natureza, saberá compreender que a expressão cultural ressignifica o potencial local. E que cada povo deverá ter sua autonomia para propor um modelo biorregional. Enfim, o resgate cultural localiza-se no coração dos fenômenos da identidade de repertórios da natureza, das histórias, dos signos e dos mitos que ainda permitem a construção do conhecimento de certo grupo social e identificar-se com ele. “Mas a identidade não depende somente do nascimento ou das escolhas realizadas pelos sujeitos. No campo político das relações de poder, os grupos podem fornecer uma identidade aos indivíduos” (Warnier, 2000: 17). Taylor (2002: 5) admite que não pode haver compreensão do "outro" sem uma compreensão modificada de si mesmo - uma mudança de identidade que altere nossa compreensão de nós mesmos, nossos objetivos e nossos valores. É por isso que, freqüentemente, se resiste ao pluriculturalismo. “Temos um profundo envolvimento com nossas imagens distorcidas dos outros. O momento crucial ocorre quando as diferenças do ‘outro’ podem ser percebidas não como erros ou defeitos ou ainda como produto de uma versão menor, subdesenvolvida, do que somos, mas como um desafio colocado por uma alternativa humana viável”. Portanto, o sujeito ecológico evocado, no bojo do projeto Mimoso, não é um ser pilotado sob influência da equipe que propõe a EA, mas pertence à própria cultura incorporada. Cada um age sobre si mesmo, sobre os outros e de acordo com os interesses de uma época. É por isso que qualquer proposição em EA deve ser livre, permitindo que os sujeitos ajam e reflitam inclusive considerando os conflitos de poder e de interesses que os opõem aos outros sujeitos. A cultura está em constante evolução e transformação, pois expressa os sentidos e percepção dos fenômenos que caracterizam as comunidades em um determinado contexto. “Compreender o ‘outro’ será o maior desafio social do século 21” (Taylor, 2002: 6). Embora a globalização se preocupe com os fatos ruidosos, não devemos apenas dar importância aos vagos e abstratos agregados mundiais. Conhecemos os dilemas ambientais há décadas e as mega-conferências internacionais, como Estocolmo (1972), Tbilise (1977), Eco-92 (1992) ou Johannes 20 (2002) não puderam ou jamais poderão, sozinhas, frear as violências sociais ou naturais vivenciados pela nossa era. Aumentam-se os agravos ambientais na mesma acelerada escala social. Fazem-se leis, mas sem fortalecer mecanismo de atuação da sociedade civil ou efetivação das políticas democráticas. Não é preciso dizer que tais declarações internacionais, impregnadas de boas intenções, tenham m grande parte o objetivo de uma estabilização do mundo sob a égide dos Estados Unidos e da velha Europa na fase inicial de sua industrialização (...) A partir deste momento, trata-se certamente, de buscar um desenvolvimento mais amplo, e não somente de políticas macroeconômicas de estabilização de curto alcance impostas pelo ordenamento resultante de circunstâncias que imperam após a II Guerra Mundial (Hermet, 2002: 33). “Ensinar e aprender fluem no ritmo de vida do grupo” (Leite, 2002: 142) e tornam-se constitutivos da grande comunidade de aprendizagem. A construção da identidade é a proposição pedagógica da educação ambiental. “É necessário que o educador e a educadora se familiarize com a semântica dos grupos populares, de entender como fazem suas leituras do mundo, a partir da perspectiva de seus olhares, e do lugar onde se acham seus pés” (Freire, 1999: 107). Somente através da alteridade é que o grito ambientalista não sucumbirá frente às imposições imperialistas. A própria luta dará forças à construção dos ideários que combatam a miséria cultural e a degradação da natureza. BIBLIOGRAFIA BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 1999. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. CLÁUDIO, Ângelo. “O iluminismo tropical”. In Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 14/07/02. DUARTE, João F. O sentido dos sentidos – a educação (do) sensível. Curitiba: Criar, 2001. FREIRE, Paulo. Que fazer? Teoria e prática em educação popular. 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