JUSTIÇA CLIMÁTICA: QUAL A RELAÇÃO ENTRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E DESIGUALDADE?
Especialistas evidenciam como a crise climática agrava disparidades raciais e de classe e explicam como esse cenário atravessa a Educação
06/11/2025
Estudantes da EE Eurípedes Simões de Paula, localizada no bairro periférico do Grajaú, em São Paulo (SP), produziram materiais autorais que chamam a atenção para os impactos da crise climática em povos quilombolas e indígenas. Foto: Lana Pinho/NOVA ESCOLA.
A crise climática anuncia desafios ambientais cada vez mais intensos em escala global, mas seus impactos não se distribuem de forma igualitária. Regiões mais afetadas por enchentes, deslizamentos, ondas de calor, poluição e escassez de áreas verdes costumam ser habitadas por populações historicamente vulnerabilizadas, como comunidades negras e indígenas. As escolas, inseridas nesses territórios, refletem também essa realidade.
Reconhecer essas desigualdades e direcionar políticas públicas, recursos e ações prioritariamente para os grupos mais afetados é um passo essencial para enfrentar a crise ambiental. Esse é o princípio central da justiça climática, que busca garantir que a transição para um futuro sustentável seja também justa e inclusiva. “Do contrário, as desigualdades serão aprofundadas”, diz Carolina Canegal, coordenadora de pesquisa do Observatório da Branquitude.
Em escala global, o Protocolo de Quioto, firmado em 1997, foi o primeiro acordo internacional a reconhecer que os países desenvolvidos carregam maior responsabilidade no enfrentamento da crise climática, por serem os principais emissores de gases de efeito estufa, que já provocavam sérios impactos nos países menos desenvolvidos, com menor capacidade de mitigação e maior dependência direta dos recursos ambientais.
O Banco Mundial informou que apenas um décimo dos gases de efeito estufa do mundo é emitido pelos 74 países de menor renda. Já o relatório “A desigualdade na emissão de carbono mata”, publicado pela Oxfam, em 2024, mostra que o 1% mais rico da população mundial – composto por cerca de 50 bilionários – é responsável por emitir mais do que o dobro de CO₂ produzido pelos 50% mais pobres do planeta.
Fonte: Oxfam (2023)
Segundo
o estudo, suas emissões, impulsionadas pelo uso de iates,
jatos particulares e investimentos altamente poluentes, estão
resultando em “enormes perdas de colheitas e levando a milhões
de mortes em excesso”.
No
Brasil, o cenário se repete. Setores que mais contribuem com o
desmatamento e a crise climática, como a agropecuária e
a exploração de combustíveis fósseis, são
majoritariamente controlados por pessoas brancas. Segundo o Censo
Agropecuário 2017 do IBGE, quase 60%
de todas as propriedades rurais pertencem
a elas.
Enquanto isso, em Belém (PA), 75% das pessoas que vivem em áreas de risco ambiental são negras, proporção significativamente superior aos 64% que compõem a população total da capital paraense. Em São Paulo (SP), embora apenas 37% da população seja negra, esse percentual sobe para mais de 55% entre aqueles que vivem em zonas de risco. Os dados são da pesquisa de 2022 do Instituto Pólis, “Racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades”.
“As desigualdades históricas de nosso país fazem com que as pessoas em situação de vulnerabilidade não tenham as mesmas condições para lidar com a intensificação dos eventos climáticos extremos, o que adensa sua vulnerabilidade social. E estamos falando de pessoas específicas: as que vivem na periferia de grandes cidades, negros, indígenas, ribeirinhos e outras comunidade tradicionais”, explica Cássia Caneco, diretora executiva do Instituto Pólis.
Dado que são essas pessoas que mais sofrem os impactos da crise climática, estamos diante de mais uma face do racismo: o ambiental. Ao menos desde os anos 80 a dimensão racial é destacada quando o assunto é promover a justiça climática.
O líder de direitos civis Benjamin Chavis, que atuou ao lado de Martin Luther King Jr., criou o termo racismo ambiental durante manifestações e reivindicações do movimento negro nos Estados Unidos. Ele observou um padrão que se repetia: áreas negras, de latinos e hispânicos, costumavam ser mais impactadas por degradação ambiental e despejos tóxicos do que as áreas ocupadas por pessoas majoritariamente brancas.
“A crise climática tem raça, gênero e renda”, sintetiza Fábio Müller, diretor executivo do Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (CIEDS). “Por isso, enfrentá-la requer garantir direitos de forma multidimensional”, explica.
Como a crise ambiental abala a Educação
Estudantes discutem seu território e justiça climática. Foto: Lana Pinho/NOVA ESCOLA.
As mudanças em curso no meio ambiente também atravessam a Educação. Escolas sem climatização submetem estudantes, educadores e funcionários a estresse térmico. Quando ocorre um desastre, são os espaços educativos que costumam ter que suspender suas atividades para abrigar a comunidade. Segundo o UNICEF, em 2024, pelo menos 1,17 milhão de estudantes brasileiros tiveram os estudos interrompidos por eventos climáticos, como enchentes e secas severas. Além disso, há no mínimo 2,4 mil escolas situadas em áreas de risco de alagamento e deslizamento, de acordo com o Cemaden Educação.
As áreas verdes nos espaços educacionais, fundamentais para mitigar os efeitos da crise climática por oferecer ambiente mais fresco e arejado e solo permeável, além de contribuir com o desenvolvimento e Educação Climática e Ambiental das crianças, não chegam a todos. No Brasil, 37,4% das escolas públicas e privadas não oferecem nenhum espaço vegetado em seus terrenos, de acordo com o estudo “O acesso ao verde e a resiliência climática nas escolas das capitais brasileiras”, do MapBiomas em parceira com o Instituto Alana e a Fiquem Sabendo.
“As mudanças de temperatura e frio e calor extremos têm aumentado o adoecimento de crianças por problemas respiratórios, o que afeta diretamente sua participação escolar e possibilidade de dedicação aos estudos”, observa Cássia.
Ao ampliar a lupa sobre este cenário, a dimensão racial e de classe se destaca mais uma vez. A ausência de áreas verdes é especialmente crítica nas regiões mais vulneráveis, como as favelas e comunidades urbanas, onde 52,4% das escolas brasileiras não possuem espaços vegetados, e 30,1% das escolas que atendem maioria de estudantes negros não têm praças ou parques em seu entorno, realidade que afeta apenas 11,4% das escolas que atendem mais estudantes brancos.
A infraestrutura das escolas, fundamental para a qualidade da aprendizagem e que dá melhores condições para enfrentar eventos climáticos, repete o padrão: 69% das escolas com melhor infraestrutura atendem maioria de estudantes brancos, de acordo com o levantamento “A cor da infraestrutura escolar”, publicado em 2024 pelo Observatório da Branquitude.
“Dinâmicas raciais, territoriais e de classe se sobrepõem e impactam a formação dos estudantes, porque a Educação brasileira é fundada em desigualdades históricas de acesso, permanência e aprendizagem, que aprofundam as desigualdades de raça e classe. Então, a crise climática não é apenas um impacto à trajetória escolar, mas à vida dessas pessoas”, diz Carolina.
Todos esses fatores colocam as crianças e adolescentes em situação de risco e estresse climático, que afetam o corpo e dão menos condições de se dedicarem à aprendizagem.
“Em casa, falta infraestrutura, faz muito calor e frio, estão sob alerta para enchentes e deslizamentos, e não há segurança alimentar. Qual é o estado mental dessa criança quando ela chega na escola para aprender? É evidente que estudantes negros e periféricos têm sua aprendizagem prejudicada por causa dessa soma de violências”, afirma Cássia.
Combate às desigualdades em meio à crise climática
O primeiro passo na direção de enfrentar a crise ambiental promovendo a justiça climática é diagnosticar de quais maneiras um determinado território e população são impactados pelas mudanças no clima.
“Temos que entender essas populações e construir soluções e políticas públicas baseadas na natureza e a partir dos saberes desses povos, junto a eles e organizações de base comunitária local, para que os recursos e tecnologias respeitem sua cultura e façam sentido para eles”, afirma Fábio.
Desde o deslizamento de terra que deixou 64 mortos em 2023, na Barra do Sahy, no litoral norte de São Paulo (SP), o Instituto Pólis começou a atuar junto à comunidade local, majoritariamente caiçara e indígena, para pensar planos de gestão de risco e de mitigação e adaptação às questões climáticas
“A própria comunidade pensa os riscos e soluções e como comunicá-los, contando com as escolas como parceiros. E mobilizamos equipamentos e serviços que o território oferece de forma interligada, porque não dá para pensar Saúde, Habitação, Educação e outras políticas de forma separada”, diz Cássia.
A professora Cristiane Lacerda propôs à turma uma reflexão sobre os impactos das mudanças climáticas e sobre projetos ambientais que vêm transformando a comunidade.. Foto: Lana Pinho/NOVA ESCOLA.
Pensando no currículo, há escolas que convidam os estudantes a observar o território e criar projetos ambientais que transformam a comunidade. Na Escola Estadual Eurípedes Simões de Paula, localizada no bairro periférico do Grajaú, em São Paulo (SP), o material gratuito “Estação Central da COP” ajudou a compreender o que é justiça climática, entre outros pontos.
Além do nosso território, discutimos como os povos quilombolas e indígenas são impactados, e essa parte social engajou bastante a turma a entender que eles já vivem a crise”, explica a professora Luciana Roberta, que colaborou junto com os professores Renan Caetano e Lucas Andrade no projeto Estação Sustentável COP30 Grajaú, criado e conduzido por Cristiane Lacerda, professora e ativista.
Criado pelo Observatório do Clima, o material está disponível para ser baixado ou enviado pelos Correios e tem como objetivo fomentar debates e atividades sobre a Física, Política e Economia do clima com as turmas dos Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio.
“É preciso que os estudantes tenham acesso à reflexão crítica sobre a crise climática e possam pensar e agir de forma autônoma na escola e no território. Mas para poder fazer isso, eles precisam ter seus direitos garantidos. Não haverá justiça climática sem justiça social”, conclui Fábio.
Fonte: Justiça climática: qual a relação entre mudanças climáticas e desigualdade? | Nova Escola