REFLEXÕES SOBRE UM TEMPO PANDÊMICO



Cláudia Mariza Mattos Brandãoi



RESUMO: O artigo tem por objetivo compartilhar com @s leitor@s indagações sobre o tempo e as questões ambientais, ancoradas em percepções advindas de uma realidade pandêmica. Trata-se de refletir, a partir de diferentes autores que discutem sobre o tempo, o pensamento do artista/ativista ambiental Hundertwasser, compartilhando impressões e registros acerca do afastamento social e possíveis reverberações sobre @s sujeitos contemporâneos.



No contexto de uma pandemia global, vivendo sob as demandas sociais e psicológicas do afastamento social, o tempo passa a ser uma grandeza que se sobrepõe a tantas outras. A percepção da passagem do tempo, em um espaço de confinamento, encaminha reflexões que fogem de nossas visões costumeiras sobre o cotidiano.

Eu tenho um amigo que defende a ideia de que o tempo não existe. Para ele, o que existe é o movimento, o espaço abstrato e a duração como as únicas grandezas infinitas. Ele considera que o universo, também habitado por nós, humanos, é finito, e que para haver vida tem que haver morte, sístole e diástole, contração e relaxamento, movimento que está presente em várias partes do corpo. Ou seja, poderíamos resumir seu pensamento dizendo que cada coisa no universo tem a sua própria duração.

Analisando esse posicionamento, lembro de Gaston Bachelard (2007) e de sua defesa da “intuição do instante”. Para o filósofo, a única realidade possível para o tempo é a do instante, opondo-se à noção comum de duração contínua, linear, que transcorre independe de nós. Ao contrário, ele defende a ideia do tempo como um encadeamento descontínuo de instantes sempre novos.

O desafio posto a todos nós, nesse exato momento, é o de desacelerar, e não temos o direito de escolher, somos obrigados a isso, ou estaremos convivendo com os possíveis efeitos mortais do contato corporal com o perigoso vírus. E esse momento de reclusão acaba por estimular introspecções reflexivas em muitos, como uma consequência do confinamento em casa, um espaço vivo e pulsante na medida da nossa (com)vivência com ele. Temos, portanto, a chance de desenvolver observações atentas sobre a duração das coisas e, até mesmo, acerca dos ciclos vitais da própria natureza. Sendo assim, agora temos mais tempo disponível para habitar a casa, a nossa terceira “pele”, como define Hunderwasser.

Friedrich Stowasser, mais conhecido como Friedensreich Hundertwasser é um artista vienense (1928 - 2000), cujas obras são voltadas à problematização das questões ambientais. Através de pinturas, maquetes e obras arquitetônicas, ele discute sobre a identificação dos seres humanos com o mundo ao redor e a natureza. E essa produção artística expressa a sua teoria de que o ser humano tem cinco peles (Figura 1), sendo elas: a epiderme natural, o vestuário, a casa, o meio social e, a última, a pele planetária ou crosta terrestre onde todos vivemos.

Figura 1:Hunderwasser, As Cinco Peles, desenho à tinta, Viena, 1998.

E é protegida nessa “pele”/casa, tão íntima e poucas vezes verdadeiramente vivenciada em sua plenitude, que hoje observo o tempo passar num outro (des)compasso. Junto-me à Fernando Pessoa, em seu “Livro do Desassossego de Bernardo Soares” (INDJI, 2014, p.73), e faço minhas as suas angústias:

Não sei o que é o tempo. Não sei qual é a sua verdadeira medida, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, senão a sensação dele. A dos sonhos é errônea: neles nós tocamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento, conforme alguma propriedade do seu decorrer cuja natureza desconheço.

Cada um de nós, a seu modo, busca conviver nesse outro tempo, pandêmico, solitário, estranho e muitas vezes assustador. E em busca de melhor entender o vivido, decidi historiar essa realidade anômala capturando instantes diários (Figura 2), através da fronteira/janela da minha pele/casa.

Figura 2:Cláudia Brandão, Devires, montagem fotográfica, 2020.

Por aqui as imagens se acumulam e o tempo vai ganhando volume. Elas já são quase 90, e o que vejo nelas é o surgimento de uma gama quase infinita de tons de azul. Será azul a cor do tempo?

Quanto a mim, devo dizer que me vejo perdida e envolta em dificuldades insolúveis sempre que tento conceituar o tempo, abstraindo-o da sucessão de ideias que em minha mente fluem de modo uniforme (uniformidade e sucessão que também se vê nos demais seres). Não tenho dele a mais remota noção em absoluto: somente ouço falar o que outros dizem, que é divisível até o infinito, e falam em termos tais que me sugerem os mais peregrinos pensamentos sobre a minha existência (BERKELEY, In: INDJI, 2014, p.98).

Assim como George Berkeley, eu também confesso que não consigo encontrar respostas para a existência humana, menos ainda para o tempo. Embora estejamos sob o ataque de uma doença tão grave como a COVID-19, encontramos muitos exemplos de comportamentos controversos, agressivos à vida do outro e a do próprio planeta. Parece que muitos se negam a rever comportamentos, engajados numa defesa egocêntrica da vicissitude do tempo histórico, renegando a vida e suas próprias temporalidades.

Sigo perseguindo réplicas, que mais do que esclarecer me mostram a complexidade do tema. E no encaminhamento dessa investigação solitária e visual recorro novamente a Hunderwasser, voltando-me agora para a nossa quinta “pele”, ou seja, a pele planetária.

Direciono a minha câmera para baixo, não mais para o horizonte, e eis que encontro uma outra possibilidade para a questão. Trata-se de uma solitária folha amarronzada conduzida pelo vento, que suavemente repousou no telhado (Figura 3). Ela me lembra que o outono chegou, e que lá fora a natureza segue seus ciclos naturais, vitais e de resistência, embora, como habitantes que coexistem nessa mesma “pele”, sigamos em nossa trajetória (auto)destrutiva.

Figura 3: Cláudia Brandão, Sobrevôo, fotografia, 2020.

Podemos deixar-nos arrastar e constatar que caminhamos para o desastre inevitável, ou podemos esperar pelos amanhãs que surgirão após a catástrofe. Se não queremos ser arrastados nem queremos esperar, existe uma terceira via – a da porta estreita – mais delicada e mais difícil e, na medida do possível, da resistência não violenta. O sistema de destruição global não está isento de erros, que devem ser explorados para desacelerar a evolução negativa e criar uma moratória para a humanidade. A ecologia se for verdadeira, pura, naturalista e não distorcida pela demagogia diária dos políticos verdes é um bom agente retardador (RESTANY, 2003, p. 80).

A ecologia é a pedra de toque da sensibilidade de Hundertwasser, o citoplasma sensitivo da sua quinta pele” (id., p.78), e talvez esse citoplasma sensível possa nos dar a cadência de uma nova temporalidade, na qual a teia da vida retorne ao seu delicado equilíbrio. E assim, quiçá um novo tempo se instaure, não mais compassado pelo ritmo acelerado do consumo, permitindo a criação de visões de mundo coloridas pela imaginação.

Quem sabe finalmente cruzaremos a “porta estreita” rumo ao desvelamento de novas cores, num outro horizonte de possibilidades, um tempo azul sempre sujeito a temporais.



Referências:



BACHELARD, Gaston. A Intuição do Instante. Campinas, SP: Verus Editora, 2007.

INDIJ, Guido (Ed.). Sobre elTiempo. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: La Marca Editora, 2014.

RESTANY, Pierre. HUNDERTWASSER: O Pintor-Rei das Cinco Peles. Singapura: TaschenGmbH, 2003.



iDoutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do curso de Artes Visuais – Licenciatura e do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Artes Visuais, do Centro de Artes, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq). attos@vetorial.net