OLHARES VIAJANTES

Profª MSc. Cláudia Mariza Mattos Brandão[i]

 

 

Resumo: O artigo aborda a vivência de um projeto de extensão universitária, “Olhares Viajantes”, que desenvolveu ações pedagógicas, objetivando instigar acadêmicos do curso de Artes Visuais – Licenciatura (FURG) a reformularem pensamentos, e a refletirem criticamente sobre as questões identitárias e as relações de alteridade na contemporaneidade. Para encaminhar tal proposta foram realizadas saídas de campo, pelo interior do município do Rio Grande e do estado (RS), com o objetivo de criar um espaço de convivência e ponderação coletiva, utilizando a arte como suporte para as reflexões desenvolvidas.

 

 

A realidade planetária, da violência urbana aos problemas decorrentes da degradação ambiental manifesta a necessidade emergencial de interferirmos no processo histórico, de forma crítica e reflexiva, em busca de uma mudança de comportamentos e de mentalidades. Somos conscientes de que a cosmovisão antropocêntrica está na base dos problemas que a sociedade urbana do século XXI precisa encarar sem rodeios. A mentalidade do capitalismo mercantilista fragmentou e banalizou as relações sócio-históricas, dissolveu as culturas, transformou a multiplicidade em unanimidade e dissolveu identidades.

 

O pensamento ambientalista que a princípio tinha um caráter preservacionista, atualmente encarna uma filosofia que prevê a necessidade de uma integração nas relações do homem consigo mesmo, com o outro e com o meio natural, para o restabelecimento do equilíbrio da vida no planeta. Pensadores como Paul Valéry, Edgar Morin e Felix Guattari acreditam que Cultura e Arte são por si só potências de transformação, e destacam a possibilidade de conhecimento compartilhado que oferecem. Eles defendem que o desenvolvimento da capacidade de reflexão crítica e a efetiva contribuição da Arte no processo de culturação dos povos são importantes instrumentos no desenvolvimento de uma cultura social que favoreça a mudança de atitudes, sob a perspectiva de compreensão das relações sistêmicas.

 

De acordo com essa filosofia, a formação dos indivíduos - principalmente daqueles que freqüentam os cursos de licenciatura - deve estar comprometida com o aprimoramento do conhecimento, através da incorporação de valores humanistas e ambientais às ações pedagógicas. Cabe ressaltar, que no caso particular da constituição de futuros arte-educadores, se destaca o papel estratégico da Arte na aquisição de novas idéias, conhecimentos e competências, necessárias para a conscientização acerca das responsabilidades sócio-culturais dos cidadãos.

 

Será que não existe um reino da sabedoria, do qual a lógica está proscrita? Será que a arte não é até um correlativo necessário e um complemento da ciência?  Questões como essas propostas por Nietzche, reforçam a necessidade de perceber-se o mundo a partir de sua dimensão estética. Para mudar é preciso perceber - apurar o olhar -, conhecer e reconhecer-se. A utilização da visão, do aparato óptico natural, como ferramenta de decodificação da realidade, possibilita a formulação de novas propostas na transformação da relação do homem consigo mesmo, com o outro e com o meio natural (Guattari, 1990).

 

Nesse contexto, de caos e superação, o ensino e a vivência da Arte assumem destacada relevância para o surgimento de uma nova escola voltada para a gênese de indivíduos capacitados a uma leitura de mundo sagaz e sensitiva, possibilitando intervenções criativas no mundo.

 

Educar para a prática cidadã é a razão de ser de toda educação democrática. A cidadania é uma construção social como espaço de valores, de ações e de instituições comuns que integram os indivíduos. É, portanto, uma prática social, uma prática política fundamentada em valores como a liberdade, a igualdade, a autonomia, a solidariedade, a desobediência a qualquer poder autoritário e o respeito às diferenças e às identidades. A formação da cidadania supõe a possibilidade de criar espaços educativos nos quais os sujeitos sociais sejam capazes de questionar, de pensar, de assumir valores e de submeter à crítica, valores, normas e direitos morais pertencentes a indivíduos, a grupos e a comunidades, inclusive os seus próprios direitos.

 

... a atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que ele ergue seus edifícios, a fantasia. (Vygostsky, 1990:17)

 

A tradição do pensamento utilitário subordinou a subjetividade à disciplina, ao controle, à adaptação, à instrumentalidade e à utilidade. A postura sócio-interacionista do pensamento de Liev Semionovich Vygostsky manifesta-se contra o controle e a previsão do comportamento individual, destacando a importância da compreensão da processualidade da individuação do sujeito social, historicamente posicionado em uma cultura. O autor ressalta a contribuição dos sujeitos para a transformação do meio, e a importância da mediação das linguagens artísticas para a construção simbólica da realidade concreta.

 

Nos últimos três anos, atuando como professora do curso de Artes Visuais – Licenciatura, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), priorizei o enfoque no resgate das relações individuais e sociais através da arte, da educação e da ação cidadã. Busquei, através de uma dinâmica interativa entre sujeitos e objetos e da criação de suportes simbólicos, o exercício da imaginação, da sensibilidade e da emoção, tendo como meta principal à interpretação do contexto sócio-histórico. Considero que um dos maiores desafios do educador contemporâneo é sensibilizar os estudantes para as discussões sobre as questões identitárias, e foi com essa preocupação que o projeto “Olhares Viajantes” foi concebido.

 

Sob a forma de um conjunto de saídas de campo, a proposta metodológica objetivou a criação de um espaço de convivência e ponderação coletiva, sobre o patrimônio artístico, cultural e natural do município do Rio Grande e do estado do Rio Grande do Sul, utilizando a arte como suporte para as reflexões desenvolvidas.

Para encaminhar tal proposta foram realizadas saídas de campo que incluíram, além da visita a Vila da Quinta, Ilha dos Marinheiros e Eco-museu da Picada (Arraial), todas localidades situadas no município do Rio Grande; viagem à região dos Sete Povos das Missões, incluindo a estada na cidade de Santo Ângelo; á Santa Maria e Cidade da Mata; à região da grande Porto Alegre; e visita as cidades de Mostardas e Tavares, e ao Parque Ecológico da Lagoa do Peixe.

 

A oportunidade de conhecer novos lugares foi um grande estímulo para o grupo, instigado pela possibilidade de desvelamento da realidade. Mais que tudo, o convívio viabilizou o objetivo de estimular os participantes a reformularem pensamentos, e a refletirem criticamente sobre a identidade dos múltiplos sujeitos e as relações de alteridade na contemporaneidade.

 

Não conhecia nenhuma das três paradas (Vila da Quinta, Ilha dos Marinheiros e Arraial) e fiquei realmente surpresa, pois me senti em outra cidade. Percebi que o estilo de vida é totalmente diferente, bem rural. E como vamos, provavelmente, trabalhar com essas diferenças, é muito importante que tenhamos esse contato mais direto... e com olhar explorador.(...)Senti um clima de pureza, de inocência, acho que pela natureza e pelo modo de como essas pessoas vivem em harmonia com ela. Fico pensando como isso pode afetar, no bom sentido, o comportamento das crianças e de como lidar com isso. Acad. Ana Paula da Silva

 

O projeto efetivou o desenvolvimento de um ambiente de lazer, aprendizagem, reflexão e criação artística, para trinta (30) acadêmicos do curso de Artes Visuais – Licenciatura, da FURG, que ao longo de 2005 percorreram mais de 5000km do território sul-riograndense.

 

Para mim estas saídas de campo são muito válidas, pois saímos do nosso casulo, a Universidade. Conhecemos mais a arte, a história, a ciência, e também adquirimos mais conhecimentos gerais para nossa vida profissional. Acad. Luciane Oliveira

 

 “Olhares Viajantes” caracteriza-se pelo caráter interdisciplinar do processo, que possibilitou o cultivo da auto-estima, da cooperação, da responsabilidade sócio-ambiental, e a prática da linguagem fotográfica e do desenho de observação. As atividades permitiram o (re)conhecimento da região, e o desenvolvimento de ações que uniram o fazer artístico ao pensamento crítico-reflexivo.

 

 Além dos materiais produzidos em fotografia e desenho, as experiências foram registradas em diários individuais – “diários de bordo” -, como registros de exposição íntima e real dos acontecimentos. Posteriormente essas anotações possibilitaram compartilhar com o grupo o processo de vivência da proposta, e facilitaram o exercício da criação artística.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Figura 1: Priscila Araújo

                                    Ruínas de São Miguel, 2005.

                 Fotografia digital

 

Conhecer e poder desfrutar da cultura desse lugar (São Miguel das Missões), e ao mesmo tempo fazer parte do contexto do local, nem que seja só por pouco tempo, já foi muito gratificante. Infelizmente o tempo de visita as ruínas foi curto, a energia que emana naquele lugar é super forte, a sensação que tive estando lá foi diferente de qualquer outra experiência semelhante a essa. Acad. Priscila Araújo

 

 

Figura 2: Cláudia Brandão

                                     Catedral de Santo Ângelo, 2005

   Fotografia

 

Outra coisa que tive o prazer de contemplar foram os anjos do Barroco, os quais tinha visto apenas por fotos. É muito bom poder conhecer cidades históricas, poder “ver” o que está escrito nos livros de História da Arte. Acad. Gabriela Farias

 

 

Figura 3: Cláudia Brandão

                       Cidade da Mata, 2005.

    Fotografia

 

Lá (Cidade da Mata) encontramos a mais bela transformação da natureza, uma cidade de madeira que virou pedra... os fósseis de madeira estão lá há centenas de anos e tudo é muito bem cuidado, bem organizado. Apesar da chuva, podemos conhecer um jardim fossilizado ao ar livre, maravilhoso. Acad. Stéfany de Jesus

 

 

A valorização do individuo e de suas vivências, viabiliza a conscientização de suas funções sociais e determina o desenvolvimento de cidadãos críticos e reflexivos, possibilitando a formação de agentes modificadores de uma realidade social, política e ambiental adversa.

 

Em especial gostei da Ilha dos Marinheiros e do Eco museu da Picada, que fizeram surgir um espírito de liberdade, em meio a tanto verde. O grupo parecia destoar do contexto, éramos seres urbanos em meio a terras rurais, que parecem quase intocadas pelo homem. Aprendi a dar mais valor aos detalhes da natureza... isso que eu moro no meio dela, no Bolaxa!! Acad. Pablo Frigério

           

 

Figura 4: Cláudia Brandão

                                              Eco museu da Picada, Arraial, 2005.

    Fotografia

 

 

 

Figura 5: Cláudia Brandão

                                              Eco museu da Picada, Arraial, 2005.

    Fotografia

 

 

 

 

Figura 6: Cláudia Brandão

                    Vila da Quinta, 2005.

   Fotografia

 

 

 

 

Figura 7: Cláudia Brandão

                              Ilha dos Marinheiros, 2005.

    Fotografia

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 8: Xênia Velloso

                           Lagoa do Peixe, 2005.

                  Fotografia digital

 

 

 

 

Figura 9: Xênia Velloso

                   Mostardas, 2005.

                   Fotografia Digital

 

Isto é muito importante para nós que estamos desenvolvendo e aprimorando o processo de visão, até mesmo para refletir sobre a natureza e seus mistérios, sua evolução, pois acredito que poucos fazem isso. Arte é tudo aquilo que nos rodeia, por isso precisamos sempre estar atento, com olhos investigadores e aguçados. Acad. Claudete Ritta

 

O envolvimento, a participação coletiva, a possibilidade de partilhar e compartilhar vivências, e o prazer desfrutado fortaleceram o desenvolvimento de uma mentalidade que cultiva o sentido de pertencimento e valoriza o contexto sócio-histórico. Acima de tudo, “Olhares Viajantes” contribuiu para o fortalecimento de sujeitos criativos, que buscam a ética e a estética das relações.

 

O material produzido pelo grupo durante as viagens servirá de base para a produção de obras artísticas, que integrarão uma exposição coletiva que em 2006, numa segunda etapa do projeto, percorrerá as escolas municipais, discutindo com a comunidade escolar a proposta. O produto final será fruto da reflexão e do exercício da criação artística, no qual a arte é dessacralizada em favor da ação cotidiana de compreensão de si mesmo e do mundo.

 

O enfoque nos problemas reais e cotidianos permitiu discussões a partir de um contexto cultural mais amplo. As reflexões estão associadas a ações nas quais as relações entre o desenvolvimento cognitivo e a educação são consideradas a partir de um ponto de vista dialético, que analisa, além dos aspectos científicos, as características culturais regionais e suas intrínsecas correlações históricas. No desenrolar do projeto a Arte foi caracterizada como instrumento teórico-prático de análise crítica da realidade, o que possibilitou a vinculação significativa entre teoria e prática, facilitando a re-significação do patrimônio cultural e o resgate da memória social comunitária, tornando os sujeitos em protagonistas ativos na construção de suas próprias identidades.

 

Muitas foram às coisas que me surpreenderam nessa viagem (ao interior do município do Rio Grande), mas a maior delas foi o fato de não conhecer paisagens tão bonitas, que estavam perto de mim o tempo todo. Às vezes pensamos que só em lugares longínquos encontraremos coisas bonitas e diferentes, mas essa saída mudou minha maneira de pensar, comecei a refletir melhor e perceber que temos muito que explorar a nossa volta. Antes de sair viajando por esse mundo, porque não antes, conhecer melhor nossa cidade, os bairros, os vilarejos, os municípios vizinhos e assim por diante, e quando nos dermos conta já estaremos explorando o mundo que tanto queríamos. Acad. Priscila Araújo

 

 

           

Bibliografia:

 

GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.

______________ Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

HUTCHISON, David. Educação Ecológica: idéias sobre consciência ambiental. Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul, 2000.

MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

OLIVEIRA, Ana Cláudia de, FECHINE, Yvana (eds). Visualidade,Urbanidade e  Intertextualidade. São Paulo: Hacker Editores, 1998.

REIGOTA, Marcos. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998.

VYGOSTSKY, Liev Semionovich. La imaginacion y el arte en la infancia. Madrid: Akal, 1990.



[i]Mestre em Educação Ambiental é professora voluntária do curso de Artes Visuais – Licenciatura, da FURG. Coordena o PhotoGraphein: Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação, grupo de pesquisa CNPq. attos@vetorial.net