SOBRE O COTIDIANO EM FOCO E AÇÕES (AUTO)FORMATIVAS

 

Daniela Pereira Santos[i]

Cláudia Mariza Mattos Brandão[ii]

 

 

 

 

Resumo: O presente texto tem por objetivo discutir sobre os resultados de uma investigação desenvolvida no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID/3 UFPel, no subprojeto das Artes Visuais, através do projeto “Cotidiano em Foco”.

 

 

O “Cotidiano em Foco” é um projeto de extensão constituído por um conjunto de atividades teóricas e práticas versando sobre a Fotografia no contexto da Cultura Visual contemporânea, proposto para estudantes da Educação Básica de três escolas participantes do PIBID 3/UFPel: I.E.E. Assis Brasil, Monsenhor Queiroz e Santa Rita. As atividades têm como foco a construção e utilização de câmeras fotográficas artesanais, também conhecidas como câmeras pinhole[iii], sendo que apresentamos um tipo específico de câmera caracterizada pela utilização de uma lata de sardinha (Figura 1) como base para sua construção, e do uso de filme fotográfico como material fotossensível.

 

 

Figura 1: Cláudia Brandão.

Câmera-Sardinha, 2012.

 

 

A capacidade de produzir e difundir imagens se transformou num dos eixos centrais do funcionamento das sociedades contemporâneas, sendo o papel fundamental da Fotografia nesse contexto é inegável. Basta para isso refletirmos sobre o crescente uso de seus aparatos técnicos entre os jovens, independente de classe social. Além disso, a fotografia nos possibilita aproximar os olhares das relações do homem contemporâneo com o meio urbano.

Com a fotografia inicia-se um percurso diferente em direção a novos/outros modos de descrever/escrever o mundo. Assim como a escrita ortográfica sistematizou as manifestações subjetivas sobre a cultura humana, a foto–grafia, fruto do olhar humano mediado pela tecnologia, instaura criativas construções discursivas, outras graphias simbólicas mediando os processos de observação das nossas relações com o mundo (BRANDÂO, PERES, 2008, p. 2). Portanto, dada à potencialidade discursiva dos materiais fotográficos e a sua larga utilização na atualidade, surge uma demanda pontual, a de que os estudantes saibam lidar com essa realidade, posicionando-se como mediadores frente às imagens assimiladas, que formam e informam os indivíduos. É possível considerarmos que com a utilização das câmeras artesanais temos um meio lúdico de reflexão crítica acerca do mundo ao redor.

Discutir sobre a fotografia como recurso e meio para uma educação mais crítica é objetivo da proposta, no entendimento de que ela possibilita a aproximação do outro ao nosso próprio olhar e a produção de provocações e reflexões. Ela estimula a educação do olhar e contribui para aproximar o olhar dos sujeitos dos objetos representados, numa interação que se dá através da comunicação em suas múltiplas possibilidades (SONTAG, 2008), oportunizando momentos de fruição de arte e gerando espaços diferenciados de produção de conhecimento de forma interdisciplinar (ALVES e SGARBI, 2001).

A pinhole, enquanto uma “tecnologia do imaginário” (SILVA, 2006) estimula o imaginário daqueles que com ela se envolvem.  O imaginário aqui considerado não se refere somente à imaginação ou à memória individual e coletiva, ele nomeia uma “rede etérea e movediça de valores e de sensações partilhadas concreta ou virtualmente” (SILVA, 2006, p.9). Assim sendo, quando os alunos participam do processo de construção da câmera-sardinha e depois vêem as fotos prontas, inicia-se um processo no qual o imaginário e a memória se fundem na (re)apresentação do real de forma “distorcida”, idealizada através da imaginação e concretizada pela luz:

 

Na era da mídia, parece fazer sentido a preferência pelo termo imaginário. Mas este deve sempre ser entendido como algo mais amplo do que um conjunto de imagens. O imaginário não é um mero álbum de fotografias mentais nem um museu da memória individual ou social. Tampouco se restringe ao exercício artístico da imaginação sobre o mundo (SILVA, 2006, p. 9).

 

Esses entrelaçamentos entre imaginário, memória e imaginação, aliados ao tempo de espera e ao devaneio, foram elementos que procuramos levar aos escolares durante o desenvolvimento do projeto.

 A pesquisa desenvolvida é de cunho qualitativo, compreendendo procedimentos metodológicos que incluem: estudos teóricos e práticos sobre Fotografia; construção de “câmera-sardinha”; discussões acerca das expressões artísticas contemporâneas, da Cultura Visual e de suas tecnologias; e análise crítica das relações dos sujeitos com o meio urbano. Partindo de atividades práticas que possibilitaram a construção e experimentação da “câmera-sardinha” pelos bolsistas pibidianos, ministrada por integrantes do PhotoGraphien – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq), foi possível a aproximação do grupo das discussões acerca da fotografia artesanal, relacionando tais conhecimentos aos conteúdos presentes nos currículos escolares. Consideramos que de tal modo estaríamos promovendo a educação ambiental aliada à disciplina de Artes nas escolas.

 

 

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Figura 2: Carine Rodriguez.

Estrutura da lata de sardinha, fotomontagem, 2012.

 

 

A construção da câmera-sardinha (Figura 2) consiste basicamente em dividir seu interior em três compartimentos (os dois das extremidades para os filmes – um vazio e um cheio – e o do meio para a exposição do filme à luz). A lata deve ter um furo na lateral que coincida com o local de colocação da bobina vazia, pois neste furo será colocado o eixo (que pode ser uma bucha plástica para parafuso) que possibilitará avançar o filme fotográfico do recipiente cheio para o vazio.

O seu interior deve estar totalmente escuro, para isso pintamos de tinta PVA preta ou forramos com fita isolante. Um furo deve ser feito centralizado na lata de sardinha para a entrada de luz. Este furo é feito com um prego, no entanto, após deve ser tapado com papel alumínio e este furado com uma agulha de insulina, de forma a diminuir ao máximo o seu diâmetro. Este furo ficará tapado por um pedaço de fita isolante ou por algum outro tipo de tampa adaptada e só será aberto durante os segundos de exposição do filme à luz. A lata é fechada/vedada com uma tampa feita de papelão e EVA, presa com elásticos.

Os resultados obtidos são avaliados considerando as particularidades de cada câmera e o material fotossensível utilizado. Além disso, durante as experimentações devem ser anotadas as condições em que cada foto foi feita (tipo de iluminação, horário, tempo de exposição, distância do objeto) para que as análises posteriores das imagens permitam chegar-se às condições ideais de funcionamento das câmeras.

Como é possível perceber, o processo artesanal instaura um tempo diferenciado que contrasta com a possibilidade de resultados instantâneos proporcionados pelos equipamentos digitais. As imagens produzidas são imprevisíveis, e sempre surpreendentes. Os resultados obtidos pelos integrantes do subprojeto das Artes Visuais/PIBID 3/UFPel em suas experimentações com as câmeras-sardinha (Figuras 3, 4 e 5) demonstram as inúmeras possibilidades dos processos fotográficos artesanais e as distorções produzidas na representação da realidade. São imagens que surpreendem e por si só problematizam a visão como reconhecimento fidedigno do mundo ao redor.

 

 

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Figura 3: Carine Belasquem Rodriguez.

Lagartear, fotografia pinhole, 2012.

 

Figura 4: Diana Silveira de Almeida.

Esquecido, fotografia pinhole, 2012

 

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Figura 5: Daniela Pereira dos Santos.

Sem título, fotografia pinhole, 2012.

 

 

As imagens acima apresentadas resultam da experiência com fotografia pinhole utilizando um filme 35 mm, colorido, ISO 200. Na Figura 3 temos uma imagem obtida com 4 segundos de exposição, mostrando um cachorro deitado, se aquecendo numa tarde ensolarada. No caso da Figura 4, foi utilizada uma lata cujo “diafragma” é arredondado. Isso se deve à colocação de um bico (de uma caixa de suco) na parte de fora da lata, ao redor do furo que permite a passagem da luz. Na Figura 5 temos uma imagem da Praia da Capilha, mostrando ao fundo a Lagoa Mirim, no entorno da Estação Ecológica do Taim (Rio Grande, RS).

Como as imagens acima demonstram, não é possível prever de antemão como resultarão as fotografias obtidas com as câmeras-sardinha. Pelo número de variáveis envolvidas é fundamental que o fotógrafo estude o seu equipamento até alcançar os resultados desejados. Cabe destacar, que não é nosso objetivo a obtenção de fotografias perfeitas. Ao contrário, contamos sempre com os imprevistos, para que deles surja uma poética própria, diretamente relacionada ao equipamento e às opções do sujeito fotógrafo.

Vemos, portanto, que tais imagens nos aproximam do contexto cotidiano através de fotografias elaboradas sem critérios de identificação com o real, colocando em questão o papel das imagens e a finalidade/objetivo de suas produções. E esse fato determina a necessidade de se preparar os escolares para o entendimento dos códigos da nova visualidade digital que permeia o nosso cotidiano.

Para um maior entendimento do processo de geração das imagens artesanais, as atividades com os escolares começaram com experimentações em uma câmera escura construída em papelão, na qual os estudantes entraram e tiveram a oportunidade de comprovar o fenômeno de inversão das imagens (Figura 6). Com isso, os estudantes foram confrontados o próprio fenômeno da visão, desestabilizando as certezas acerca dos modos como enxergamos o mundo.

 

Figura 6: Thaís Machado do Amaral.

Imagem invertida refletida no interior da câmara escura feita pelos bolsistas do PIBID Artes Visuais

 

Tal iniciativa dinamizou as posteriores discussões, acionando processos educativos que viabilizaram leituras visuais do contexto vivencial através de uma prática incorporada ao cotidiano dos sujeitos contemporâneos, a de fotografar. Além disso, foi possível problematizar os comportamentos do homem urbano com relação ao meio.

A abordagem da história da fotografia detonou assuntos como a banalidade da imagem e a facilidade de se fotografar na era digital, e as consequentes implicações, pois “o homem contemporâneo urbano vive submerso por uma proliferação incontrolável de imagens. Vive-se numa imersa e irreversível imagoteca universal, proporcionada principalmente pelos meios de comunicação” (VENTURELLI, 2004, p.85).

Para uma maior aproximação e entendimento das questões físicas e químicas implicadas na geração da imagem foram estabelecidas relações com os conteúdos curriculares com a colaboração dos professores das turmas, gerando, assim, espaços de discussões interdisciplinares.

Com as atividades desenvolvidas até então, concluímos que se a imagem fotográfica faz parte da vida dos alunos, cabe também à escola capacitá-los para novos/diferentes modos de apreensão e leitura desses materiais. Os exercícios de experimentação possibilitaram aos envolvidos a percepção da necessidade de um processamento crítico dos elementos visuais que nos apresentam um universo complexo, muito além da mera representação do real.

Acostumados com a instantaneidade dos processos fotográficos contemporâneos, os escolares se surpreenderam com o tempo e o envolvimento diferenciados que os artesanais exigem. E assim eles conseguiram entender, através da vivência dos imprevistos propostos pelos processos aqui apresentados, que é possível romper com a linearidade dos processos digitais contemporâneos em busca do sonho e do devaneio poético, do exercício da imaginação e da criatividade, na realização de imagens que fogem dos padrões previamente estabelecidos pelos novos recursos tecnológicos.

Isso, pois a câmera-sardinha nos convoca a refletir sobre o conceito de imagem e os seus processos de geração, sendo que os processos educativos relacionados à Fotografia envolvem o conhecimento de seu desenvolvimento histórico, a sua valorização como produto artístico e a exploração criativa das intrínsecas relações que constituem seus fazeres.

Concluímos que as práticas desenvolvidas provocaram fissuras na percepção dos envolvidos, colaborando para o rompimento da banalização das práticas fotográficas e seus produtos. Mais que tudo, elas contribuíram para dar diferentes significados aos modos de construir, perceber e se emocionar com a captação do mundo através de fotografias. Portanto, é possível considerar que a utilização de práticas fotográficas artesanais no cotidiano escolar produz conhecimentos capazes de auxiliar não só no desenvolvimento de projetos artísticos, mas também pode desencadear processos reveladores dos contextos vivenciais dos sujeitos fotógrafos, mobilizando saberes e operações complexas no manuseio da fantasia e de repertórios conceituais, e colaborando para o desenvolvimento de estudantes mais conscientes, críticos e participantes através de ações (auto)formativas.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Rubem. Educação dos sentidos e mais... Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

ALVES, Nilda; SGARBI, Paulo (orgs.). Espaços e Imagens na Escola. Rio de janeiro: DP&A, 2001.

BRANDÃO, Cláudia e PERES, Lúcia. A fotografia como graphias de memórias: das professoras em nós. In: MEMÓRIAS DOCENTES: abordagens teórico-metodológicas e experiências de investigação. 1 ed. Brasília: Liber Livro Editora Ltda, 2009.

SILVA, Juremir Machado. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina 2006.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

VENTURELLI, Suzete. Arte:espaço_tempo_imagem. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.



[i] Acadêmica de Artes Visuais – Licenciatura, Centro de Artes/UFPel, bolsista PIBID, subprojeto das Artes Visuais, pesquisadora do PhotoGraphein – Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação. danisantos.21@hotmail.com

[ii] Doutora em Educação, mestre em Educação Ambiental, professora do Centro de Artes/Artes Visuais – Licenciatura, da Universidade Federal de Pelotas. É coordenadora do PhotoGraphein - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação( UFPel/CNPq) e do PIBID 3/UFPel, subprojeto Artes Visuais. attos@vetorial.net

[iii] Termo que vem do inglês pin hole, referindo-se ao buraco de uma agulha, forma como é feito o furo que permite a passagem de luz para o interior destas câmeras artesanais.