Xingu chora e sangra
por Mônica Martins*
Carta do Cacique Mutua a todos os povos da Terra
O Sol me acordou dançando no meu rosto. Pela
manhã, atravessou a palha da oca e brincou com meus olhos sonolentos. O irmão
Vento, mensageiro do Grande Espírito, soprou meu nome, fazendo tremer as folhas
das plantas lá fora.
Eu sou Mutua, cacique da aldeia dos Xavantes. Na
nossa língua, Xingu quer dizer “água boa”, “água limpa”. É o nome do nosso rio
sagrado.
Como guiso da serpente, o Vento anunciou perigo.
Meu coração pesou como jaca madura, a garganta pediu saliva. Eu ouvi. O Grande
Espírito da floresta estava bravo.
Xingu banha toda a floresta com a água da vida.
Ele traz alegria e sorriso no rosto dos curumins da aldeia. Xingu traz alimento
para nossa tribo.
Mas hoje nosso povo está triste. Xingu recebeu
sentença de morte. Os caciques dos homens brancos vão matar nosso rio.
O lamento do Vento diz que logo vem uma tal de
usina para nossa terra. O nome dela é Belo Monte. No vilarejo de Altamira, vão
construir a barragem. Vão tirar um monte de terra, mais do que fizeram lá longe,
no canal do Panamá.
Enquanto inundam a floresta de um lado, prendem a
água de outro. Xingu vai correr mais devagar. A floresta vai secar em volta. Os
animais vão morrer. Vai diminuir a desova dos peixes. E se sobrar vida, ficará
triste como o índio.
Como uma grande serpente prateada, Xingu desliza
pelo Pará e Mato Grosso, refrescando toda a floresta. Xingu vai longe…
desembocar no Rio Amazonas e alimentar outros povos distantes.
Se o rio morre, a gente também morre, os animais,
a floresta, a roça, o peixe… tudo morre. Aprendi isso com meu pai, o grande
cacique Aritana, que me ensinou como fincar o peixe na água, usando a flecha,
para servir nosso alimento.
Se Xingu morre, o curumim do futuro dormirá para
sempre no passado, levando o canto da sabedoria do nosso povo para o fundo das
águas de sangue.
Hoje pela manhã, o Vento me levou para a floresta.
O Espírito do Vento é apressado, tem de correr mundo, soprar o saber da alma da
Natureza nos ouvidos dos outros pajés. Mas o homem branco está surdo e há muito
tempo não ouve mais o Vento.
Eu falei com a Floresta, com o Vento, com o Céu e
com o Xingu. Entendo a língua da arara, da onça, do macaco, do tamanduá, da anta
e do tatu. O Sol, a Lua e a Terra são sagrados para nós.
Quando um índio nasce, ele se torna parte da Mãe
Natureza. Nossos antepassados, muitos que partiram pela mão do homem branco, são
sagrados para o meu povo.
É verdade que, depois que homem branco chegou, o
homem vermelho nunca mais foi o mesmo. Ele trouxe o espírito da doença, a gripe
que matou nosso povo. E o espírito da ganância que roubou nossas árvores e matou
nossos bichos. No passado, já fomos milhões. Hoje, somos somente cinco mil
índios à beira do Xingu, não sei por quanto tempo.
Na roça, ainda conseguimos plantar a mandioca, que
é nosso principal alimento, junto com o peixe. Com ela, a gente faz o beiju.
Conta a história que Mandioca nasceu do corpo branco de uma linda indiazinha,
enterrada numa oca, por causa das lágrimas de saudades dos seus pais caídas na
terra que a guardava.
O Sol me acordou dançando no meu rosto. E o Vento
trouxe o clamor do rio que está bravo. Sou corajoso guerreiro, não temo nada.
Caminharei sobre jacarés, enfrentarei o abraço de
morte da jiboia e as garras terríveis da suçuarana. Por cima de todas as coisas
pularei, se quiserem me segurar. Os espíritos têm sentimentos e não gostam de
muito esperar.
Eu aprendi desde pequeno a falar com o Grande
Espírito da floresta. Foi num dia de chuva, quando corria sozinho dentro da
mata, e senti cócegas nos pés quando pisei as sementes de castanha do chão. O
meu arco e flecha seguiam a caça, enquanto eu mesmo era caçado pelas sombras dos
seres mágicos da floresta.
O espírito do Gavião Real agora aparece rodopiando
com suas grandes asas no céu.
Com um grito agudo perguntou:
– Quem foi o primeiro a ferir o corpo de Xingu?
Meu coração apertado como a polpa do pequi não tem
coragem de dizer que foi o representante do reino dos homens.
O espírito do Gavião Real diz que se a artéria do
Xingu for rompida por causa da barragem, a ira do rio se espalhará por toda a
terra como sangue – e seu cheiro será o da morte.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. O dia se
abriu e me perguntou da vida do rio. Se matarem o Xingu, todos veremos o
alimento virar areia.
A ave de cabeça majestosa me atraiu para a reunião
dos espíritos sagrados na floresta. Pisando as folhas velhas do chão com
cuidado, pois a terra está grávida, segui a trilha do rio Xingu. Lembrei que,
antes, a gente ia para a cidade e no caminho eu só via árvores.
Agora, o madeireiro e o fazendeiro espremeram o
índio perto do rio com o cultivo de pastos para boi e plantações mergulhadas no
veneno. A terra está estragada. Depois de matar a nossa floresta, nossos
animais, sujar nossos rios e derrubar nossas árvores, querem matar Xingu.
O Sol me acordou brincando no meu rosto. E no
caminho do rio passei pela Grande Árvore e uma seiva vermelha deslizava pelo seu
nódulo.
– Quem arrancou a pele da nossa mãe? – gemeu a
velha senhora num sentimento profundo de dor.
As palavras faltaram na minha boca. Não tinha como
explicar o mal que trarão à terra.
– Leve a nossa voz para os quatro cantos do mundo
– clamou – O Vento ligeiro soprará até as conchas dos ouvidos amigos – ventilou
por último, usando a língua antiga, enquanto as folhas no alto se debatiam.
Nosso povo tentou gritar contra os negócios dos
homens. Levamos nossa gente para falar com cacique dos brancos. Nossos caciques
do Xingu viajaram preocupados e revoltados para Brasília. Eu estava lá, e vi
tudo acontecer.
Os caciques caraíbas se escondem. Não querem olhar
direto nos nossos olhos. Eles dizem que nos consultaram, mas ninguém foi ouvido.
O homem branco devia saber que nada cresce se não
prestar reverência à vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o
Vento que não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento para outros
povos distantes do mundo.
O tempo da verdade chegou e existe missão em cada
estrela que brilha nas ondas do Rio Xingu. Pronta para desvendar seus mistérios,
tanto no mundo dos homens como na natureza.
Eu sou o cacique Mutua e esta é minha palavra!
Esta é minha dança! E este é o meu canto!
“Porta-voz da nossa tradição, vamos nos
fortalecer. Casa de Rezas, vamos nos fortalecer. Bicho-Espírito, vamos nos
fortalecer. Maracá, vamos nos fortalecer. Vento, vamos nos fortalecer. Terra,
vamos nos fortalecer.”
Rio Xingu! Vamos nos fortalecer!
Leve minha mensagem nas suas ondas para todo o
mundo: a terra é fonte de toda vida, mas precisa de todos nós para dar vida e
fazer tudo crescer.
Quando você avistar um reflexo mais brilhante nas
águas de um rio, lago ou mar, é a mensagem de lamento do Xingu clamando por
viver.
* Mônica Martins é jornalista e criadora da personagem fictícia Cacique Mutua.
(O Autor)
Fonte:
http://envolverde.com.br/ambiente/artigo/xingu-chora-e-sangra/