Educação ambiental em Ação 36
Entrevista com Liana Márcia
Justen, para a 36ª Edição da Educação Ambiental em Ação
Apresentação - A Educação Ambiental me proporciona conhecer pessoas
maravilhosas, batalhadoras, criativas, ousadas, que são verdadeiras inspirações
para o meu trabalho. Uma delas é a pedagoga e mestre em Educação, Professora
Liana Márcia Justen, que reside em Curitiba, Paraná, consultora em Educação
Ambiental, Fundadora e Moderadora do Grupo: Materiais de Educação Ambiental,
entre outras atividades que desenvolve, tendo atuado na Secretaria Municipal de
Educação de Curitiba e na Coordenadoria de Educação Ambiental da Sec. de Estado
do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Paraná. Conheço a Liana de longa data, e
hoje tenho a feliz oportunidade de entrevistá-la para esta edição da Educação
Ambiental em Ação. Tenho certeza de que, assim como eu, todos receberão uma
“injeção de ânimo”, daquelas que eventualmente precisamos para prosseguir
perseguindo nossos ideais maiores. Vamos conhecê-la melhor?
Bere – Liana! É um enorme prazer tê-la como entrevistada desta edição. Muito
obrigada! Conte-nos como foi que você ingressou no mundo da Educação Ambiental (EA).
Liana – Também me sinto muito alegre de estar aqui. É uma honra participar deste
belo trabalho, Bere! Como ingressei... Bem, quando me dei conta, eu já estava
dentro, risos. Eu era pedagoga da rede municipal de ensino de Curitiba, quando
comecei a trabalhar com projetos educacionais nas escolas e comunidades de
entorno, em uma parceria entre as secretarias municipais de educação e meio
ambiente, por volta de 1989. Foi assim que percebi o quanto as políticas
públicas têm em comum, envolvendo também saúde, trabalho e demais áreas sociais.
Descobri que, para atuar com educação e meio ambiente, são necessários
conhecimentos e atividades de outras áreas, planejamento urbano, agricultura,
comércio... Concluí que trabalhava não somente com programas específicos, mas
com um projeto de sociedade, em que todos os setores administrativos, sociais,
científicos e tecnológicos, públicos e privados, deveriam se envolver.
Fascinaram-me o desafio e a amplitude da EA, as possibilidades de transformação
social, a dimensão utópica, o sonho de uma concepção solidária e cooperativa de
sociedade, em que a competição não seja o grande mote social, nem o consumo
desvairado a razão da vida das pessoas; em que haja limites éticos para a
exploração da natureza. Ao pesquisar os princípios da EA na Declaração de
Tbilisi e em outros documentos internacionais, compreendi que tudo em que eu
acreditava como finalidade da educação estava incluído nos propósitos da EA.
Enfim... Foi um insight fantástico da importância dos projetos de EA, para muito
além de separação e coleta de lixo reciclável, proteção de rios, matas e fundos
de vale. A partir dali, abracei a EA como proposta de vida e sou feliz por tudo
quanto tenho aprendido e realizado em consequência disso.
Bere – No início, quais foram as maiores dificuldades relacionadas com a
prática da EA, percebidas por você?
Liana – A visão curta, egoística e empedernida das pessoas que não entendem a
grandiosidade e a emergência da EA. Essas duas dimensões – a magnitude do que a
EA propõe, a construção de valores, crenças, atitudes que exprimem uma visão
generosa e ampla de sociedade e natureza; e as necessidades de mudança, desde as
mais simples na vida cotidiana das pessoas, até as mais complicadas nos meios de
produção e consumo. Faltam humildade para entender que a natureza está cobrando
um alto preço pela invasão e destruição a que é submetida e disposição para
mudar. Toda e qualquer pessoa, todos os segmentos sociais, devem se envolver e
se tornar responsáveis pela mudança. Mas temos avançado muito pouco, porque a
tendência generalizada é fingir que se muda pra não mudar coisa alguma, isto é,
o comodismo impera.
Bere – Volta e meia emerge a questão sobre a EA ser ou não ser uma disciplina
dentro do currículo escolar. Qual sua posição em relação a isto?
Liana – Se queremos superar a fragmentação dos conhecimentos, buscando religar
os saberes, temos de compreender como se organizam as redes de interações que
caracterizam a vida e a natureza. Deste ponto de vista, criar uma disciplina de
EA é uma contradição; é reforçar o enquadramento disciplinar que resultou na
falta de diálogo entre as ciências e na enorme dificuldade de reconhecer as
relações de interdependência entre os vários campos de pesquisa e atuação
humanas. Bem, quais seriam os conteúdos de tal disciplina? Retirados de todas as
outras, reorganizados de outra forma, certamente interdisciplinar, mas dentro de
uma estrutura disciplinar! Será que não conseguimos fazer as relações, como
educadores, entre os conteúdos das atuais disciplinas, ao invés de criar uma
nova? O saber é multi, inter, transdisciplinar. Uma criança pequena vai
aprendendo sobre a vida e o mundo, observando, agindo sobre objetos, aprimorando
percepções, exercitando a capacidade humana de aprender com fatos e situações
que se comunicam entre si, como é a vida. Depois se obriga a criança a estudar
tudo separado: letras, números, operações matemáticas, regras ortográficas,
geografia, história, ciências... a totalidade que ela encontrou no mundo, que a
encantou e sobre a qual ela teve tanta curiosidade, vai ser dividida em caixas
separadas que nunca se juntam. Teríamos de romper as barreiras, mas é mais
cômodo continuar com as caixas não comunicantes... Claro que há um momento em
que é preciso aprofundar um modo de conhecer e pesquisar um campo de
conhecimento, e é aí que entra a disciplina, mas nunca se pode perder de vista o
todo a que aquele campo pertence, sob pena de nos alhearmos da formatação
ecossistêmica que predomina na vida e na natureza. Não aprendemos a lidar com
esta formatação, e isso é a origem da crise ambiental.
Bere – Você considera que os professores, principalmente os da educação básica,
compreendem a interdisciplinaridade da EA? Por que?
Liana – Quando a gente trabalha com a realidade como ponto de partida para o
processo educacional, percebe que todos os conhecimentos se interdependem e que,
para entender um aspecto da vida, do mundo, se precisa recorrer a conhecimentos
das mais diversas áreas. Alguns destes são instrumentais, como a linguagem e a
matemática. Outros são estudos sobre aspectos específicos da realidade, campos
do saber, como a geografia, a história, a física, a química, a geologia e muitos
outros. São específicos, mas inter-relacionados uns com os outros. Ao tratar do
tema “Água”, os saberes matemáticos e linguísticos são instrumentais para a
percepção e a compreensão dos fenômenos físicos e químicos, dos fatos
históricos, dos diferentes aspectos geográficos, das identidades sociais e
culturais, relativos à água, porque tudo está ligado a tudo. Os professores que
partem da observação informal da realidade do entorno dos alunos, para mediar a
construção de conceitos e conhecimentos formais, sabem que é possível, aliás, é
mais fácil ser interdisciplinar do que ser disciplinar: observar onde e como a
água existe e se relaciona com o ambiente, contar o que se viu, escrever o que
se pensa sobre isso, o que pode ser mudado, melhorado, e por aí vai. Para os
professores das séries iniciais, a prática da interdisciplinaridade é muito mais
natural, interessante e rica do que o artificialismo das lições monótonas
restritas a cada matéria.
Bere – Fala-se muito que os professores sentem falta de um “norte” para a
efetivação da EA, ou seja, falta-lhes orientação. Não seria o caso de propor
capacitação em EA para os Orientadores e os Coordenadores escolares?
Liana – A EA é um ovo de Colombo, depois que você descobre que se trata de uma
educação embasada na aprendizagem, não de fatos estanques, mas da formatação
ecossistêmica do planeta, no geral e nas suas particularidades. A regra
dominante é a interação entre todo e partes, o significado do todo para as
partes e vice-versa. Quando você aprende a raciocinar e sentir sob este ponto de
vista, descobre o que é a EA como proposta pedagógica. Trata-se de uma outra
lógica de conhecer e aprender sobre o mundo, diferente da fragmentada e
estanque, que herdamos de modelos arcaicos de organização curricular. Mas nada
impossível para quem desenvolver o pensamento do contexto, que, segundo Edgar
Morin, é estabelecer as relações entre todo e partes, e o pensamento do
complexo, que é compreender as relações das partes entre si. Isto requer
capacidade de contextualização, visão da complexidade, das relações e das
interações entre os conteúdos programáticos já existentes e outros que vêm sendo
incorporados pela evolução do conhecimento. Vamos continuar com Língua,
Matemática, História, Geografia e Ciências, Artes e E. Física, mas precisamos
reaprender a perceber as relações existentes entre os saberes e os fazeres
destas matérias entre si. Fazemos isso ao analisar uma dada situação em seus
aspectos sociais, econômicos, geográficos, históricos, culturais. E um fenômeno
em todas as suas interações, do nível próximo ao mais distante. Então, é preciso
propor capacitação nessa lógica, que envolva não apenas os professores, mas os
orientadores, coordenadores, diretores, todos os responsáveis pelo processo
educativo na escola. E tal capacitação já deveria ser efetivada dentro da lógica
da EA, ou seja, interdisciplinar, pra começo de conversa...
Bere – Em sua caminhada pela Educação Ambiental quais foram as ações ou
atividades mais gratificantes que você encontrou pelo caminho?
Liana – Foram muitas as ações que pude realizar, sempre junto com pessoas com o
propósito de trabalhar pela melhoria das relações sociedade /natureza. Fui
funcionária pública municipal e estadual por mais de 30 anos, e hoje sou uma
cidadã como qualquer outra, e, em ambas as situações, sempre me senti
comprometida com a sociedade a que pertenço, com a humanidade, em todos os
níveis. Não seria justo destacar uma atividade em detrimento de outra, mas foi
muito marcante a descoberta das redes, quando percebi o quanto seria possível
fazer pela EA através das ferramentas da internet, que coincidiu com meu
primeiro contato com o GEAI, em 2000, pelo que te sou grata até hoje, Bere.
Minha história profissional inclui o prazer do estudo permanente; não se pode
ser educador ambiental sem estudar sempre, renovar conceitos e práticas, ser um
pesquisador em ação. Reitero a crença nas dimensões construtivas do ser humano,
em especial quando as pessoas trabalham juntas. De tudo, resta uma certeza: é
profundamente bela e gratificante a felicidade que sentimos, quando trabalhamos
junto por um mesmo propósito, cada um dando o melhor de si para o bem coletivo.
Utópico, mas não há outro caminho para a paz...
Bere – Qual seria, para você, o perfil de um educador ambiental?
Liana – Um educador ambiental é uma pessoa extremamente ética, fiel à defesa da
vida e da natureza, à melhoria qualitativa do caráter das pessoas, das relações
individuais e coletivas e de toda a humanidade, rumo a níveis mais elevados de
vivência de fraternidade, compaixão e amor. Também é, ao mesmo tempo, um
pesquisador, no sentido dado por Paulo Freire à praxis pedagógica: a integração
entre teoria e prática, que implica em trabalho, esforço, paixão e poesia...
Bere – Qual (is) metodologia(s) são mais pertinentes (s) para se desenvolver a
EA?
Liana – A partir de uma abordagem interdisciplinar, metodologias de ensino
voltadas para a participação ativa, em propostas práticas de vida, que promovam
a sustentabilidade: 1. projetos embasados na observação critica e resolução de
problemas e situações da realidade imediata; 2. trabalho em equipes solidárias e
cooperativas, que priorizem a tarefa coletiva ao invés de melindres individuais;
3. construção coletiva de relações mais saudáveis ser humano/
sociedade/natureza; 4. pesquisa e aplicação de alternativas de sustentabilidade
econômica, social, tecnológica, no âmbito familiar e comunitário.
Bere – Qual(is) autor(es) lhe inspiram? Por que?
Liana – Edgar Morin, porque abriu as portas para o entendimento da complexidade
e o que esta visão significa para a educação de hoje; Fritjof Capra, um físico
que me fez perceber o quanto de sensibilidade sobre o ambiente foi banida dos
sistemas de ensino; Lucie Sauvé, uma das pessoas mais competentes para
explicitar o que é a EA; Paulo Freire, o genial mestre que desvela os caminhos
para todos os comprometidos com uma educação transformadora; Michèle Sato,
artista e pesquisadora de EA, que teve grande influência no meu mestrado em
Educação.
Bere – Quais os recursos pedagógicos mais indicados para atividades de
sensibilização ambiental?
Liana – Temos de começar uma atividade em Educação Ambiental pela
sensibilização. De nada adianta apresentar, por exemplo, uma palestra técnica,
ou um filme com apelo sentimental, e permanecer na técnica ou no
sentimentalismo; os recursos precisam tocar, ao mesmo tempo, a razão e a emoção,
visando a compreensão da responsabilidade individual e coletiva de cuidar do
planeta e de tudo o que nele vive. A EA deve tocar coração e mente, corpo e
alma... Os recursos pedagógicos devem ser escolhidos entre os meios que
facilitarem esse tipo de comunicação. Uma imagem, um relato, um filme, uma
história, uma vivência, uma notícia, uma canção, uma poesia, um jogo, uma
brincadeira... Atingindo emoção e razão ao mesmo tempo. Há muitos filmes bons e
atividades ao ar livre que potencializam as relações com a natureza.
Bere – Sobre os obstáculos, quais são os mais difíceis de serem transpostos para
a efetivação da EA?
Liana – A visão antropocêntrica do meio ambiente vigente na sociedade e a
concepção utilitarista e individualista de educação que a acompanha, não
permitem que se estabeleçam relações solidárias entre as pessoas e com os demais
entes que conosco compartilham o planeta. Muitos se consideram proprietários da
natureza, justificando sua exploração ilimitada, visando a satisfação de
necessidades criadas pelo consumismo e a acumulação cada vez maior de bens
materiais. Este é um processo auto-destrutivo, que não vê limites para a ação
humana. O pior é que isso se reflete nas relações familiares, sociais,
econômicas, políticas, culturais, na organização do ensino e nos currículos
escolares. Mas a natureza estabelece limites para a sobrevivência de seus seres,
de modo pungente. Reconhecer isso é o primeiro passo para mudar. Aí entra a EA.
O obstáculo mais difícil é que mudar envolve sair da zona de conforto, o risco
de perder situações de poder, abandonar conceitos, costumes, hábitos,
instrumentos e práticas, ter a coragem de tentar outras formas de pensar e
viver, incluindo desde pequenas mudanças nas escolas até as mais amplas, nas
diretrizes curriculares dos sistemas de ensino e nas práticas de vida cotidiana
da sociedade.
Bere – Fale-nos um pouco dos seus projetos atuais:
Liana – Estou prestando consultoria para dois projetos de pesquisa em EA; modero
a lista temática Materiais de EA; preparo um livro sobre EA; vivo a vida em todo
o seu esplendor...
Bere – Cite uma palavra, uma frase ou um pensamento de incentivo para os(as)
leitores(as) da EA em Ação:
Liana - Ressaltando que a ação educativa em EA implica sempre em uma pesquisa
–ação, gostaria de citar aqui um belo texto de Michèle Sato:
“Uma pesquisa em EA deve ter ecos, além mares, ares, terras e fogos. Tem que ser
intensa em seus contrastes de formas, representações, volumes e composições. Só
assim poderemos encontrar um plano dinâmico sob uma nova essência do
conhecimento. Um conhecimento enraizado em sonhos, que permaneça no impulso
criativo e crítico das diversas formas de existência e que, sobremaneira,
consiga novas formas de ultrapassagens às violências vivenciadas pela nossa era.
A busca deste desejo nos revela que não somos somente testemunhas da civilização
e da barbárie. A EA deve ter o compromisso de permitir sermos protagonistas para
alcançar a utopia - apaixonadamente e sempre!”
Bere – Liana, nós só temos a agradecer por sua participação e pelo
compartilhamento de sua experiência em EA, uma prática educacional que, sem
dúvida, alavanca e sustenta o sonho de tornar a vida mais sustentável. Sua
contribuição é uma luz a mais para iluminar nossa caminhada. Muito obrigada,
Bere Adams e equipe da revista Educação ambiental em Ação.