Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Reflexão
Caí no mundo e não sei
como voltar Eduardo Galeano O que acontece comigo é que
não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte
só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco… Não faz muito, com minha
mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras
roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem
sujadas. E eles, nossos nenês, apenas
cresceram e tiveram seus próprios filhos se encarregaram de atirar tudo fora,
incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis! Sim, já sei. À nossa geração
sempre foi difícil jogar fora. Nem os defeituosos conseguíamos descartar! E,
assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso. Nããão! Eu não digo que isto
era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e,
agora, não sei por onde se volta. O mais provável é que o de
agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os
instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor
do computador por todas as novidades. Guardo os copos descartáveis!
Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez. Os talheres de plástico
convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um
tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida! E mais! Se compravam para a
vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas,
vasilhas e até bacias de louça. E acontece que em nosso nem
tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que haviam em todo o
bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes. Nos estão incomodando! Eu
descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se
consome em pouco tempo para que possamos trocar. Nada se arruma. O obsoleto é de
fábrica. Aonde estão os sapateiros
fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum colchoeiro encordoando
colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? O afiador ou o
eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para os
talabarteiros? Tudo se joga fora, tudo se
descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se
produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade. Quem tem menos de 30 anos não
vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que
recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram
orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou
falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só
víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na
Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais,
serviam de adubo ou se queimava... Desse tempo venho eu. E não
que tenha sido melhor.... É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram
com "guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre
e jogue fora que já vem um novo modelo". Troca-se de carro a cada 3
anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que
tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para
pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus! Minha cabeça não resiste
tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular
uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e,
até, o endereço real. E a mim que me prepararam
para viver com o mesmo número, a mesma mulher, e o mesmo nome (e vá que era um
nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que
não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir. Acreditávamos em tudo. Sim,
já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam
servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar),
guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os
cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô. Como querem que entenda a
essa gente que se descarta de seu celular a poucos meses de o comprar? Será que
quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam
descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas? Em casa tínhamos um móvel com
quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de
prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo o que não
fosse toalha ou talheres. E guardávamos... Como guardávamos! Tuudo!
Guardávamos as tampinhas dos refrescos! Como, para quê? Fazíamos limpadores de
calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e
enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas,
lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para
fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola. Tuudo guardávamos! Enquanto o
mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de
seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette –
até partidas ao meio – se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar.
E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de
corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave. E as pilhas! As pilhas das
primeiras Spica passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos
bem se se devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos
resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo
vivesse menos do que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram
guardáveis. Os jornais!!! Serviam para
tudo: para servir de forro para as botas de borracha, para por no piso nos dias
de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar. Às vezes sabíamos alguma
notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne! E guardávamos o papel de
alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e
as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para
algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos
acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás
de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se
transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo
que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que
dizia "esta é um 4 de paus". As gavetas guardavam pedaços
esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam
somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez
a ser um prendedor completo. Eu sei o que nos acontecia:
nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas
gerações decidem ‘matá-los’ tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles
tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!! E quando nos venderam
sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos disseram: ‘Comam o
sorvete e depois joguem o copinho fora’, nós dizíamos que sim, mas, imagina que
a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As
latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As
primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza.
As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de
garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as
cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa. E me mordo para não fazer um
paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou
fazer!!! Morro por dizer que hoje não
só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são
descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas. Me mordo para não falar da
identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do
passado efêmero. Não vou fazer. Não vou misturar os temas,
não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco fizeram eterno. Não vou dizer que aos velhos
se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se
trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se
discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no
cabelo e glamour. Esta só é uma crônica que
fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria
que pensar seriamente em entregar à ‘bruxa’, como parte do pagamento de uma
senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para
transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a ‘bruxa’ me ganhe a
mão e seja eu o entregue... * Jornalista e escritor
uruguaio Comentário de Richard
Jakubaszko: Eduardo Galeano é um
jornalista e escritor uruguaio, por vezes genial como na presente crônica, um
texto inigualável e saboroso. Evidentemente eu já havia pensado no tema sobre o
qual ele discorre no texto acima, apenas não tive a paciência de escrever algo a
respeito, por entender que é absolutamente contrário ao que as pessoas pensam e
fazem hoje em dia. Muitos dos que têm hoje mais de 40 anos já perceberam que
essas coisas mudaram, e como, nos tempos modernos. Quantos de nós já não
reclamamos? Apenas não escrevemos com a graça e simplicidade de Galeano. O que se aplica adequadamente
na questão é o absurdo do consumismo moderno (e sobre isso Galeano também já
escreveu) e a imperiosa necessidade de reaproveitarmos e reciclarmos para
conquistar a sustentabilidade. Fonte:
http://richardjakubaszko.blogspot.com/2011/02/cai-no-mundo-e-nao-sei-como-voltar.html
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