Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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12/12/2009 (Nº 30) Narrativas sobre um bosque e um rio: multiplicidades culturais em práticas educativas
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Imagens de um bosque e de um rio: multiplicidades culturais em práticas educativas

Seção: Trabalhos apresentados


Narrativas sobre um bosque e um rio:

multiplicidades culturais em práticas educativas


Leandro Belinaso Guimarães1; Priscila Fernanda Rech2; Aline Gevaerd Krelling3


Biólogo, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Rua Desembargador Pedro Silva, 2100/701B, Florianópolis/SC. CEP: 88080-700. Telefone comercial: (48)37219243 Celular: (48)88333447. E-mail: lebelinaso@uol.com.br.

2Bacharel e Licenciada em Biologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Rua Gastão Benetti, 485, Centro, São Miguel do Oeste/SC. CEP 89900-000. Telefone celular: (49)99862455. E-mail: prirechbio@yahoo.com.br

3Bacharel e Licenciada em Biologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço: Rua Jaú Guedes da Fonseca, 292, Bl. D apto 101, Florianópolis/SC. CEP: 88080-080. Telefone celular: (48)99741464. Email: li_krelling@yahoo.com.br.



Resumo


O presente artigo articula duas pesquisas acadêmicas desenvolvidas no âmbito do “Grupo Tecendo – Educação Ambiental e Estudos Culturais”. Através dessas duas investigações pretendemos provocar indagações sobre os modos com os quais os sujeitos humanos tecem relações com os diferentes lugares, nos quais se configuram nossas vidas cotidianas. A primeira pesquisa explanada aqui foi desenvolvida em uma comunidade rural do Extremo-Oeste de Santa Catarina no decorrer do ano de 2008. O estudo teve como objetivo central conhecer como os moradores de Lajeado Taquá teciam relações com um importante rio regional, o Rio das Antas. O segundo estudo construiu-se num bosque em meio à cidade, o Bosque Pedro Medeiros. Uma turma de 30 alunos participou de dois encontros em que algumas atividades pedagógicas foram desenvolvidas e partir delas, pretendíamos vislumbrar a multiplicidade de olhares e relações tecidas pelas crianças com aquele e através daquele lugar.



Este artigo articula duas investigações processadas no ano de 2008 no âmbito do “Grupo Tecendo – Educação Ambiental e Estudos Culturais”, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nele podemos ler uma das principais preocupações do “Grupo Tecendo”: provocar indagações sobre os modos com que sujeitos humanos tecem relações com diferentes lugares, nos quais se configuram os ambientes das nossas vidas cotidianas.

Temos compreendido que nesse nosso tempo atual, que alguns autores nomeiam como pós-modernos, a cultura ocupa uma centralidade com relação aos modos como vamos significando o mundo e nas maneiras como negociamos e compomos nossas identidades. Partimos do pressuposto que aprendemos a nos relacionar com, por exemplo, um bosque ou um rio a partir das práticas que fomos historicamente tecendo com tais lugares. Ademais, enxergamos um bosque ou um rio a partir das histórias que nós mesmos contamos e que estão vinculadas com aquelas que escutamos. Vamos significando um bosque ou um rio através das formas como fomos sendo ensinados pelas ações educativas (escolares ou não) que participamos, pelas formas como programas televisivos narram rios e bosques espalhados pelo mundo, pelas histórias literárias que lemos no decorrer das nossas vidas; enfim, é no âmbito da cultura (dessas várias práticas instituidoras de significações) que negociamos os modos como entendemos um bosque ou um rio, entre outros diversos lugares (GUIMARÃES, 2006).

Além desse aspecto relativo à forma como entendemos os processos culturais, que enxergamos assumirem uma dimensão pedagógica já que eles estão implicados em nos ensinar sobre as coisas do mundo, nós não podemos deixar de referir os modos como estamos compreendo o “lugar” das nossas intervenções de pesquisa em educação ambiental.

Neste texto estão em jogo duas investigações que buscam ver como sujeitos enxergam e se relacionam com um rio e com um bosque. Tais lugares são tomados como múltiplos, ou seja, como atravessados tanto por histórias locais, como por narrativas globais. Eles são vistos como lugares abertos e dinâmicos, em movimentação constante, “lugares-encontro” (MASSEY, 2008), construídos e reconstruídos pelas relações entre humanos e não-humanos.

Interessa-nos tecer narrativas escritas e imagéticas, através de dispositivos educativos e/ou por coletas de depoimentos orais, sobre como tais lugares (no caso desse artigo um rio do Extremo-Oeste de Santa Catarina e um bosque urbano de Florianópolis) são narrados por sujeitos que vivem no seu entorno.

Consideramos tais práticas investigativas que criam narrativas sobre diferentes lugares, invenções de uma educação ambiental que pretende mostrar os vários fios que estão em jogo nas tramas que vão compondo, recompondo, desfazendo, construindo, desfigurando um ambiente. Nossa pretensão é emaranhar os sujeitos das nossas investigações (e nós mesmos) nessa rede que vamos tecendo.

Feitas estas considerações de caráter mais introdutório, passamos, agora, a comentar brevemente cada uma das pesquisas aqui anunciadas.


Narrativas de desertos repletos de vidas, de verdes e de histórias



O serpentear das águas do Rio das Antas...”



A pesquisa que aqui brevemente contaremos (intitulada Vidas em torno de um rio: narrativas sobre desertos e saberes) foi realizada, por uma das co-autoras deste artigo, em uma comunidade rural do Extremo-Oeste de Santa Catarina no decorrer do ano de 2008. O estudo teve como objetivo central conhecer como os moradores de Lajeado Taquá, a comunidade-alvo da investigação, teciam relações com um importante rio regional, o Rio das Antas. Para tanto, foram colhidos dezesseis depoimentos orais de homens, mulheres, jovens e adultos daquela localidade. Nesses depoimentos (conversas “informais” que foram gravadas), a partir dos quais tecemos as narrativas que balizaram a pesquisa, emergiram histórias de como os moradores relacionavam-se com o rio em tempos passados e no presente e, também, saberes sobre os peixes, as plantas, as doenças e suas curas, a poluição das águas, a ecologia. Entre as histórias e os saberes que os moradores narravam e que nós escrituramos (o que significa dizer que, enquanto pesquisadores, tivemos participação ativa na construção dessas histórias) imagens de desertos emergiam nas cenas que se iam compondo.

Uma questão nos assombrou logo no início da pesquisa: como uma região para nós tão bonita, tão verdejante, tão repleta de vidas, podia ser narrada, pelos próprios moradores, com tantas marcas de abandono? Parecia, até mesmo, um cenário de deserto que se compunha! E isso para nós era surpreendente, pois estava ali bem próximo às casas que visitamos o caudaloso Rio das Antas. E era sobre as relações desses moradores com esse rio a questão central da nossa investigação.

A desertificação, segundo aprendemos com Nancy Mangabeira Unger (2001), pode ser entendida não somente como um processo biofísico decorrente de uma incisiva ação humana (ou não) sobre um ambiente “natural”, que provocaria, por exemplo, a poluição e escassez das águas, a mortandade e o desaparecimento de peixes e de outros seres vivos. A desertificação pode também se referir a uma forma de relação desencantada (porque muito racionalizada e objetiva) entre os humanos e os não-humanos. Em Taquá, parece haver vários desertos compondo aquele cenário narrativo. Além da água do rio estar diminuindo e os peixes estarem escassos, os sujeitos daquela localidade estão envelhecendo e tornando-se raros. Neste sentido, parece, inclusive, que uma aridez nas relações afetivas e sociais está se configurando. Os moradores (agora poucos e idosos em um lugar que já foi também preenchido por crianças – os mais jovens parecem, agora, só vir passar as férias por lá) já não pescam mais no rio, não se banham em suas corredeiras, não brincam em suas águas, não se aproximam muito de suas margens – ações que preenchiam os tempos passados dos sujeitos de Taquá. Além disso, e segundo alguns depoentes, outrora os moradores eram mais próximos entre eles mesmos (apesar da distância das propriedades), pois os encontros eram mais freqüentes.

Por todas estas narrações sobre um lugar em aparente diluição, que argumentamos que as narrativas que colhemos nos falam de desertos, nos mostram como, de repente, o rio ficou distante, longe, embora tão fisicamente próximo (os moradores tiram a água de consumo diário de poços que passaram a ser instalados paulatinamente nas casas que permaneceram). Apesar desse estado latente de desertos (de águas, de peixes, de humanos, de relações sociais), também passível de ser ilustrado pelas muitas casas abandonadas na localidade, pela escola trancada e silenciada, pela invasão da capoeira no lugar da mata, tivemos algumas surpresas.

Havia muitos saberes articulados nas narrativas que fomos construindo a partir das falas dos moradores. Encontramos no entorno daquela aparente aridez, sabedorias que não imaginamos que pudessem estar tão presentes nas falas daqueles sujeitos. Muitos articulavam saberes ecológicos em suas avaliações sobre o ambiente em Taquá. Talvez, em razão da mediação pedagógica que tiveram pela atuação de organismos oficiais que os ensinaram, entre outras coisas, sobre ecologia. Porém, em jogo estão também os saberes da experiência tecidos em anos de úmidas vivências com um rio e seus peixes. Vimos, inclusive, práticas de curas a partir das plantas, saberes que dotam de vivacidade e importância o cotidiano daqueles sujeitos. São as memórias dos ribeirinhos, seus saberes tão repletos de ecologias, suas profundas alianças com o lugar em que vivem que o dotam não apenas como narrativas de desertos, mas, também, e paradoxalmente talvez, de vidas e de saberes.




Tecendo encontros e experiências em uma prática educativa





Num bosque em meio à cidade construiu-se a segunda pesquisa que contaremos aqui (intitulada Um Bosque com vida: encontros e experiências através da educação ambiental), realizada por uma das co-autoras deste artigo, no ano de 2008. O Bosque Pedro Medeiros (lugar da pesquisa) é uma área verde de lazer pública, localizada na parte continental do município de Florianópolis. Aberto ao público em março de 2002, esse espaço contempla uma área remanescente de Mata Atlântica de 10.000 m2, uma antiga edificação luso-brasileira construída no século XIX e alguns equipamentos de lazer. O Bosque é permeado de marcações humanas: as trilhas são varridas diariamente, apresentando-se impecavelmente “limpas”; há a introdução de espécies “exóticas”, tanto animais quanto vegetais; ao longo de seus caminhos é possível observar as construções urbanas que sufocam o seu espaço; os sons caóticos da cidade misturam-se ao canto dos pássaros. Esse território configura-se assim, como uma paisagem, um produto histórico resultante das interações estabelecidas entre nós seres humanos e o mundo natural (SERRÃO-NEUMANN, 2007).

Para desenvolver a pesquisa convidamos uma turma de 30 alunos do terceiro ano do ensino fundamental do CEPAJO – Centro Educacional Padre Jordan, para participar de dois momentos de encontros pedagógicos no Bosque. Algumas atividades educativas foram planejadas para esses dois dias e pretendíamos, a partir delas, vislumbrar a multiplicidade de olhares e relações tecidas pelas crianças com aquele e através daquele lugar (o Bosque). A partir das falas das crianças, da atmosfera que permeava os encontros, das emoções sentidas e da própria seqüência cronológica dos fatos ocorridos, confeccionamos um diário, a partir do qual foram pensados os principais pontos de análise da pesquisa.

Apesar de termos uma intencionalidade (ver como os sujeitos enxergam e se relacionam com o Bosque) que perpassava as atividades desenvolvidas, não pretendíamos controlá-las nem reduzi-las a momentos meramente informativos. Pretendíamos deixá-las abertas, possibilitando outras experiências que iam além da intencionalidade. Segundo Jorge Larrosa (2002) a experiência é o que nos acontece, e para que algo nos aconteça uma ruptura se faz necessária. É preciso parar: para pensar, sentir, ouvir, olhar, encontrar a si e ao outro, imaginar, inventar...

Não nos cabe avaliar (e nem nos é possível) as experiências vividas por cada um, pois a experiência é algo singular (embora sempre permeada pela cultura). Desejamos apenas analisar as questões que foram mais recorrentemente enunciadas pelas crianças no decorrer das atividades pedagógicas por nós construídas. Através delas é que buscamos responder nossa pergunta central: como as crianças enxergavam o Bosque e, portanto, que relações com aquele lugar elas se permitiam tecer.

Entre as várias questões analisadas no estudo destacamos a penetrabilidade de artefatos midiáticos nos modos como as crianças enunciavam a paisagem do Bosque. Partindo do pressuposto de que esses artefatos assumem uma dimensão pedagógica a nos ensinar sobre o mundo, ficou explícita sua participação no modo como as crianças narram os elementos constitutivos daquele lugar. Por exemplo, estava em jogo nas falas das crianças uma confusão de fronteiras entre o que seria uma espécie exótica e outra nativa (dualidade tomada de forma tão naturalizada por nós biólogos e professores de ciências e biologia). Para as crianças não interessava que as galinhas e coelhos presentes no Bosque (introduzidos propositalmente pelos gestores do mesmo) não eram espécies nativas da Mata Atlântica. A elas interessava, simplesmente, ver e tocar os animais. Elas inclusive perguntavam por animais (que pensavam poder existir no Bosque) que costumeiramente são “encontrados” nos desenhos e filmes cinematográficos. O próprio Bosque apresenta uma paisagem tão modificada, com a quase ausência total de suas características “naturais” (se é que possamos dizer que há algum lugar – por mais recôndito que seja – sem qualquer marcação humana), que não é mais possível separar com facilidade o que seria exótico do que seria nativo. Nesse nosso tempo atual, o próximo de nós pode ser algo fisicamente muito distante e o distante algo que não reparamos estar bem ao nosso lado.

Há muitos outros aspectos a serem discutidos nessa nossa pesquisa, mas nosso intuito neste curto texto foi apenas apresentar um pouco os modos como temos produzido nossas investigações no campo da educação ambiental no âmbito do “Grupo Tecendo”. Destacamos que compreender os modos como vemos e narramos os lugares cotidianos da nossa existência é algo muito importante para indagarmos como tais lugares foram se transformando e para nos perguntarmos pelos modos pelos quais os desejamos seguir construindo e reconstruindo.


Referências Bibliográficas


GUIMARÃES, Leandro Belinaso. “A natureza na arena cultural”, Jornal A Página, Portugal, número 155, ano 15, abril/2006, página 7. Disponível em: <http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4517>. Acesso em: 05 de março de 2009.


LARROSA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, número 19, jan/abr/2002, páginas 20-28.


MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.


SERRÃO-NEUMANN, Silvia Maria. Para além dos domínios da mata: estratégias de preservação de fragmentos florestais no Brasil (Santa Genebra, Campinas, SP). São Paulo: Annablume, 2007.


UNGER, Nancy Mangabeira. Da foz à nascente: o recado do rio. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 2001.



Apresentação


O presente artigo articula duas pesquisas acadêmicas que pretendem provocar indagações sobre os modos com os quais os sujeitos humanos tecem relações com os diferentes lugares, nos quais se configuram nossas vidas cotidianas.

Ilustrações: Silvana Santos