Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
Início Cadastre-se! Procurar Área de autores Contato Apresentação(4) Normas de Publicação(1) Dicas e Curiosidades(7) Reflexão(3) Para Sensibilizar(1) Dinâmicas e Recursos Pedagógicos(6) Dúvidas(4) Entrevistas(4) Saber do Fazer(1) Culinária(1) Arte e Ambiente(1) Divulgação de Eventos(4) O que fazer para melhorar o meio ambiente(3) Sugestões bibliográficas(1) Educação(1) Você sabia que...(2) Reportagem(3) Educação e temas emergentes(1) Ações e projetos inspiradores(25) O Eco das Vozes(1) Do Linear ao Complexo(1) A Natureza Inspira(1) Notícias(21)   |  Números  
Entrevistas
16/09/2008 (Nº 25) O Futuro da humanidade passa por uma solução pactuada
Link permanente: http://www.revistaea.org/artigo.php?idartigo=605 
  
Educação Ambiental em Ação 25

Futuro da humanidade passa por uma solução pactuada

O jornalista Washington Novaes foi repórter, editor, diretor ou colunista em várias das principais publicações brasileiras: Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Última Hora, Correio da Manhã, Veja e Visão. Atualmente é colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Popular (de Goiânia, onde vive). Na televisão, foi durante sete anos editor-chefe do Globo Repórter e editor do Jornal Nacional, da Rede Globo. Comentarista de telejornais das Redes Bandeirantes e Manchete, além do programa Globo Ecologia. Realizou em 2001 para a TV Cultura a série de cinco programas Desafio do lixo, gravada em 9 países e 10 estados brasileiros, além do documentário Primeiro mundo é aqui, sobre biodiversidade.

Foi consultor do Primeiro Relatório Brasileiro para a Convenção da Diversidade Biológica, dos Relatórios sobre Desenvolvimento Humano da ONU, de 1996 a 1998, e sistematizador da Agenda 21 Brasileira - bases para a discussão.

Nesta entrevista, ele aponta que o caminho da construção da sustentabilidade progressiva e ampliada, definida pela Agenda 21, é a explicitação de conflitos que necessitam ser encarados e a pactuação de compromissos.

ComCiência: A questão do meio ambiente, no Brasil, já saiu do discurso para a prática ou ainda falta muito?


Washington Novaes: Ela já saiu do discurso para a prática em várias coisas, mas ainda falta muito. As chamadas questões ambientais terão ainda muito que caminhar, mas certamente, precisam ocupar lugar no centro e no início de todas as políticas públicas. Cada planejamento de governo ou de empresa deveria ter essas questões como princípio, porque elas acontecem concretamente, no solo, na água, no ar, entre os seres vivos. É preciso saber as repercussões dos atos, não deixar para cuidar só no final. É necessário também, avançar muito na contabilização dos custos de cada ação, para que cada responsável arque com a sua parte. É o princípio do poluidor-pagador.

ComCiência: A que o senhor atribui a deficiência da regulamentação ambiental brasileira, à morosidade dos procedimentos, à burocracia?


Washington Novaes: São muitas razões, só recentemente é que se avançou na conscientizaçã o dessas questões. É muito difícil definir os conflitos e pactuar soluções a partir deles. Este, talvez, pode vir a ser o grande avanço da Agenda 21: a explicitação de conflitos que necessitam ser encarados. O Brasil tem uma certa tendência a fugir dessa explicitação de conflitos, porque isto é sempre muito doloroso, desgastante, e envolve sempre a absorção de custos ambientais, dos quais todo mundo tenta fugir. Mas não há outro caminho. É preciso explicitar os conflitos, sentar na mesa e definir pactos. Este é o caminho da construção do que a Agenda 21 chama de sustentabilidade progressiva e ampliada.

ComCiência: Tendo em vista a recusa dos Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Quioto, em que medida isto pode influenciar na redução das emissões? O senhor acredita que os EUA vão acabar aderindo ao Protocolo?


Washington Novaes: A não adesão dos Estados Unidos é extremamente grave, ele já está 13% acima de 1990 [em relação às emissões de gases-estufa] , então, teria que reduzir em torno de 20% pelos termos da Convenção de Mudanças Climáticas. Exatamente o maior emissor se recusa a ratificar a Convenção, sob a alegação do governo Bush de que isso teria efeitos muitos danosos sobre a economia norte-americana, na medida em que ela depende de uma matriz energética que está baseada fundamentalmente no uso de combustíveis fósseis (petróleo e carvão mineral) e mudar esta matriz energética seria pagar um preço muito alto. Recentemente, a Academia Nacional de Ciências confirmou que a ameaça de mudança climática é muito grave e recomendou que os EUA tomem providência. A decisão do governo americano foi aconselhar vários setores da economia a se preparar para uma adaptação a isso, mas sem assumir nenhum compromisso de redução. O que vai acontecer dentro dos EUA depende da evolução da sociedade norte-americana que está dividida nesta questão. Uma parte coloca prioritariamente as questões do crescimento econômico e do desemprego e por isso prefere a não homologação do Protocolo de Quioto. Outra parte acha que os EUA têm que aderir, reduzindo as suas emissões. Como é que isso vai se traduzir no futuro é muito difícil de prever. Os que são contrários à homologação também têm uma crença absoluta em que novas tecnologias serão capazes de resolver esta questão. É uma aposta muito arriscada, o tempo é que vai dizer.

ComCiência - Tem havido uma certa pressão para a mudança dessa postura, tendo em vista a competitividade das empresas americanas no mercado europeu. Já existe algum estudo que mensure se esta recusa dos EUA efetivamente contribuiu para reduzir o índice de competitividade dessas empresas no exterior?


Washington Novaes: Isto está começando a ser estudado. Há uma diferença de situação entre empresas americanas que têm unidades de produção em outros países e empresas que não têm. Aquelas que têm, vão ter que seguir as regras porque estão em territórios de países que aderiram ao Protocolo de Quioto, senão, vão perder competitividade. Este, portanto, é um fator que pode influenciar para que os EUA mudem sua postura.

ComCiência - Até que ponto a evolução das tecnologias energéticas podem ser um paliativo nas emissões de poluentes?


Washington Novaes: As novas tecnologias poderão eventualmente contribuir para uma redução. Por exemplo, já está disponível tecnologia para reduzir de forma bastante acentuada a emissão de poluentes de veículos nos chamados carros híbridos. Mas a indústria automobilística não quer adotá-la porque ela exigirá uma mudança completa para modelos bastante menores e mais compactos e isso reduzirá brutalmente o nível de lucratividade. Hoje mais de 50% do mercado norte-americano de automóveis pertence aos utilitários esportivos, que são altos consumidores de combustíveis. Há um confronto de forças e pode ser que isso mude com o tempo, pois esta é uma questão que vai colocando em jogo vários fatores: pressões sociais, políticas e internacionais.

ComCiência: Porque ainda não há penalidades para os países que não cumprirem seus compromissos de baixar a emissão?


Washington Novaes: Porque tem uma questão complicada que é a seguinte: os chamados problemas ambientais são praticamente todos de âmbito planetário, eles não respeitam fronteiras geográficas ou administrativas. Já o poder de decisão tem limites. Não há órgãos internacionais capazes de exercer este poder de coerção sobre os países e nem eles querem conceder este poder a um órgão supra nacional. Nós estamos hoje num impasse porque os grandes problemas são globais, os padrões de produção de consumo são insustentáveis, mas quem é que vai determinar uma mudança nisso? Mesmo o Brasil tem posições que são muito significativas. Desde 1992 se discute sobre a necessidade de uma Convenção sobre Florestas, porque as florestas tropicais são a maior fonte da biodiversidade e continuam desaparecendo, a cerca de 150 mil km² por ano. No final de abril houve uma reunião na Holanda e essa questão voltou a ser discutida intensamente. Mas o Brasil foi um dos países que mais se opuseram a uma Convenção sobre Florestas, exatamente sob a alegação que estabelecer sanções ou restrições para o uso de uma parte do seu território, implica renúncia à soberania e isso o país não admite. Este é o típico exemplo do porquê não se avança, ou seja, não tem como exercitar a obrigatoriedade com sanções num plano internacional.

ComCiência: Os organismos internacionais existentes são suficientes para levar a cabo negociações desse tipo ou precisaria ser criada uma outra estrutura?


Washington Novaes: Não há ainda nenhum órgão com capacidade para enfrentar este tipo de problema. Existem muitos organismos internacionais como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e outros fóruns de negociação, mas não existe um sistema capaz de analisar, propor uma regulação e com poder de coerção. Agora, talvez se possa pensar que enquanto existir necessidade de coerção vai ser difícil avançar.

ComCiência: Se os problemas são cada vez mais globais, então certos conceitos como soberania teriam que ser modificados, senão a Rio+10 vai ficar novamente apenas na lista de boas intenções?


Washington Novaes: Esta é a grande questão de hoje. Exatamente essa contradição entre o caráter planetário das questões e a dificuldade de encontrar meios de implementação, porque existem limites geográficos e políticos. Eu acho que a Rio+10 vai se realizar no auge do impasse. A Rio 92 foi o grande momento do avanço da consciência planetária em relação ao meio ambiente, mas não se conseguiu avançar quase nada em matéria de mudanças climáticas, nem da biodiversidade, que foram as duas grandes convenções estabelecidas. A Agenda 21 Global também ficou no plano das intenções. Esse impasse vai ser colocado sobre a mesa em Joanesburgo. O rumo que as coisas vão tomar dependerá muito de como cada país vai interpretar as suas pressões internas. Mesmo na Convenção da Biodiversidade, foram estabelecidas metas para os países, na reunião da Holanda, mas não há sanção para quem deixar de cumprir.

ComCiência - Essa é uma tarefa gigantesca para Joanesburgo porque, a partir do que o senhor diz, entende-se que é necessário praticamente mudar os padrões civilizatórios em curso?


Washington Novaes: É exatamente disso que se trata. Todos os últimos relatórios internacionais falam na insustentabilidade que nós estamos vivendo. O nível de consumo está maior que a capacidade de sustentação e de reposição da biosfera. O WWF - World Wildlife Fund- fala em 20% a mais. O Edward Wilson, que é o papa da biodiversidade, repete isso no último livro dele O Futuro da Vida, registrando que da forma como nós estamos, se todos os habitantes da Terra consumirem como os norte-americanos ou europeus, nós precisaríamos de três planetas iguais a Terra para sustentar este nível de consumo. O que se vai fazer, deixar 1/3 da humanidade na miséria absoluta? Mas se aumentar o nível de consumo dessas pessoas dentro dos padrões atuais, fica muito mais insustentável. É preciso reinventar os nossos modos de viver.


ComCiência: Não é uma questão simples, sobretudo, porque este parodoxo perdura à séculos, não é?


Washington Novaes:
Mas ele vem sendo agravado com o aumento da população e com os padrões de consumo cada vez mais elevados e mais desperdiçadores. Você tem que lembrar o seguinte, em menos de dois séculos a população do mundo se multiplicou por seis. Em 1830 se chegou a 1 bilhão de habitantes. Em pouco menos de um século, em 1927, dobrou, chegou a 2 bilhões. Para chegar ao terceiro bilhão, em 1960, bastaram 33 anos. Para chegar ao quarto, em 1974, foram somente 14 anos. O quinto bilhão aconteceu em 1987 e o sexto em 1999. É um espaço de tempo cada vez menor para se ter mais 1 bilhão de pessoas e ainda vai ter pelo menos mais 2 bilhões e meio até 2050.

ComCiência: O futuro da humanidade depende mais da ciência e da técnica ou da sustentabilidade ambiental?


Washington Novaes:
Depende de todas as coisas, principalmente de uma reformulação de nossos padrões de viver e de algumas mudanças muito importantes. A primeira delas é as pessoas terem consciência de que elas não são apenas cultura, elas são natureza também. Em 1997, o Ministério do Meio Ambiente fez uma pesquisa nacional junto com o ISER, cujo resultado mostrou que 2/3 das pessoas se consideram fora da natureza, então, elas não percebem que o que acontecer na natureza acontecerá no corpo delas, porque o corpo é feito de água, minerais, etc. A segunda mudança é que esse consumo insustentável e o abate à biodiversidade têm conseqüências em muitas outras coisas que nós nem percebemos, como nos chamados serviços naturais: a fertilidade do solo, a qualidade da água, o regime hidrológico, a composição química do ar. Todos os serviços que a natureza presta teriam um valor muito superior ao PIB mundial, se este fosse contabilizado tomando por base o que custaria repor um desses elementos por ações humanas. Acho que é preciso mudar também a própria postura do ser humano diante da natureza. Não ter a natureza apenas como alguma coisa a serviço da espécie humana, nós somos apenas mais uma entre milhões de espécies que estão aí. Precisamos também reformular nossa postura para que se recupere a relação com o sagrado. Quem não quiser ir tão longe, pode talvez pensar que tudo o que existe em nosso planeta, inclusive os seres humanos, é feito de elementos que vêm de bilhões de anos da história e se ligam a tudo o que existe no universo. A terra se desprendeu de algum lugar, então, nós somos uma espécie de memória cósmica do universo. É assim que é preciso olhar para se relacionar de uma forma respeitosa com o meio ambiente.

Fonte:
Ilustrações: Silvana Santos