Educação Ambiental em Ação<
CONFLITOS
AMBIENTAIS NO RIO DE JANEIRO
Delfina
Sampaio
Dez/2006 -
Apresentação
Desde o final de 2003, têm sido freqüentes as queixas de representantes
empresariais contra a “demora excessiva”, as “exigências descabidas” e
os “empecilhos burocráticos” pelos quais o processo de licenciamento
ambiental estaria inviabilizando investimentos. O Mapa dos Conflitos Ambientais
do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa recente desenvolvida pela UFRJ, mostra que
os licenciamentos não são mera barreira burocrática ao desenvolvimento. Ao
contrário, consideradas as dificuldades das agências públicas fiscalizarem o
respeito às normas, os licenciamentos mostram-se, com freqüência, necessários
e mesmo insuficientes para proteger a população - notadamente os grupos de
menor renda - dos riscos ambientais dos empreendimentos. As dificuldades de se
fazer respeitar as normas ambientais estariam inclusive na origem de grande
parte dos conflitos ambientais que se manifestam no estado.
O Mapa dos Conflitos Ambientais faz parte do projeto Mapa da Justiça Ambiental
no Estado do Rio de Janeiro, realizado pela FASE – Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional, em conjunto com o IPPUR – Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, com recursos oriundos de
medidas compensatórias da Petrobrás, repassados pela Secretaria de Estado de
Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano a partir de iniciativa da gestão Liszt
Vieira em 2002.
Ao longo de 15 meses, os pesquisadores do Mapa dos Conflitos promoveram
levantamentos nos registros de instituições públicas como a FEEMA, o Ministério
Público Estadual, o Ministério Público Federal e a Divisão de Recursos
Minerais, com o intuito de identificar conflitos ambientais que envolvessem as
parcelas mais pobres da população fluminense.
O levantamento
O estudo teve caráter qualitativo e visou identificar o modo como as agressões
ambientais afetam as populações de menor renda. Ao buscar o registro das denúncias,
o levantamento pretendeu dar visibilidade à questão ambiental que atinge
especificamente aqueles que, correntemente, têm menos condições de se fazer
ouvir no espaço público. Foi selecionada, em registros públicos, uma amostra
de casos em que alguma mobilização de membros da população que habita áreas
residenciais de baixa renda esteve na origem das denúncias. Foram considerados
de caráter ambiental os conflitos desencadeados quando certas atividades ou
instalações afetam a estabilidade de outras formas de ocupação em espaços
conexos, sejam estes ambientes residenciais ou de trabalho, mediante impactos
indesejáveis transmitidos pelo ar, pela água ou pelo solo.
Referente ao período compreendido entre 1992 e 2002, o levantamento resultou na
identificação de uma amostra de 251 situações-problema localizadas em 49
municípios do estado. Disposição inadequada e lançamento clandestino de resíduos
tóxicos, poluição do solo, ar e água, convivência de pessoas com valões,
lixões e enchentes, implantação de loteamentos em áreas inadequadas,
comprometimento da pesca artesanal pela atividade sísmica da prospecção de
petróleo no mar, deslocamento de populações devido à poluição industrial
ou à instalação de resorts, danos provocados por atividade mineradora,
vazamento de óleo, privatização indevida de recursos hídricos, entre outras
situações – os casos registrados pela pesquisa mostram realidades e estratégias
de atores sociais envolvidos na apropriação conflitiva dos ambientes no estado
do Rio.
Os casos levantados foram organizados em fichas que identificam os atores
envolvidos, a data das denúncias, os denunciantes, o histórico dos eventos,
assim como os documentos que serviram de fonte das informações.
“Zonas de sacrifício”
A pesquisa apontou que certas localidades destacam-se por serem objeto de uma
concentração de práticas ambientalmente agressivas atingindo as populações
de baixa renda. Os moradores dessas áreas convivem ao mesmo tempo com a poluição
industrial do ar e da água, depósitos de resíduos tóxicos, solos
contaminados, ausência de abastecimento de água, baixos índices de arborização,
riscos associados a enchentes, lixões e pedreiras. Nestes locais, além da
presença de fontes de risco ambiental, verifica-se também tendência a sua
escolha como sede da implantação de novos empreendimentos de alto potencial
poluidor. Tais localidades são chamadas, pelos estudiosos da desigualdade
ambiental, de “zonas de sacrifício” ou “paraísos de poluição”,
locais onde a desregulação ambiental favorece os interesses econômicos predatórios,
assim como as isenções tributárias o fazem nos chamados “paraísos
fiscais”.
Nestas áreas, observa-se a conjunção das decisões de localização de
instalações ambientalmente danosas com a presença de agentes políticos e
econômicos empenhados em atrair para o local investimentos de todo tipo,
qualquer que seja seu custo social e ambiental. Estes dois processos tendem a
prevalecer em áreas de concentração de moradores de menor renda e menos
capazes de se fazerem ouvir nos meios de comunicação e nas esferas de decisão.
Este é o caso, no Estado, do perímetro delimitado pelo município de Itaguaí
(áreas da Ilha da Madeira e do entorno do Porto de Sepetiba) e a zona oeste do
Rio (Santa Cruz e parte de Campo Grande). Em Itaguaí, as populações enfrentam
a poluição hídrica, ocasionada pela ausência de saneamento e o abandono de
resíduos tóxicos pela empresa Ingá Mercantil; há ali também registro de
conflitos associados à ampliação e às atividades no porto de Sepetiba,
atingindo os pescadores tradicionais (devido à contaminação e à diminuição
dos cardumes); recentemente o município foi escolhido para abrigar uma usina
termelétrica a carvão, projeto que não se concretizou por conta de resistências
da população. Nas proximidades do distrito industrial de Santa Cruz, os
impactos provêm da ausência de saneamento, do lançamento de poluentes no ar e
na água, dos sítios contaminados remanescentes de fábricas desativadas, dos
sucessivos descartes de resíduos tóxicos em localidades nomeadas de “Bota
Fora” (ver casos de descarte clandestino no caminho Foz do Jordão em 1992;
descarte clandestino seguido de incêndio em 1993; vazadouro clandestino de resíduos
de fábrica de cerveja em 1997; aterro clandestino com resíduos em 1997;
intoxicação nos assentamentos Araguaia e Nova Canudos em 2001; intoxicação
da população em Santa Cruz em 2001)
Outra zona de sacrifício identificada é o distrito de Adrianópolis em Nova
Iguaçu, localizado no entorno direto da Reserva Biológica do Tinguá. O
bairro, que foi inicialmente escolhido para sediar o primeiro aterro de resíduos
tóxicos do estado – a Central de Tratamento de Resíduos – CENTRES -
escolha que terminou por não se efetivar - abriga um grande depósito de
ascarel e é cortado por gasodutos e linhas de transmissão de energia; em 2003,
foi ali implantado um aterro sanitário, após longa batalha judicial entre
moradores e Prefeitura. Os habitantes da região delimitada pela RJ 113 e o Rio
Iguaçu (que compreende os distritos conexos de Vila de Cava, Marambaia e Adrianópolis),
muita rica em mananciais, assistiram à degradação dos seus recursos
ambientais pela operação do lixão da Marambaia e outros vazadouros
clandestinos. Descartes irregulares de resíduos industriais nesta área
aumentam o temor da contaminação das águas subterrâneas que abastecem as
comunidades.
Os encaminhamentos
Após as denúncias de agressões ambientais, os encaminhamentos para os
conflitos no estado do Rio podem resultar em:
1- Ações diretas (de realização de estudos para caracterizar o impacto, de
redução dos riscos, de imposição de ações corretivas e mitigadoras aos
agentes responsáveis pelos danos, de retirada e destinação adequada dos resíduos,
de aplicação de penalidades, de remoção de populações, de suspensão de
concessões, de autuação, de interdição, de imposição aos agentes responsáveis
pelos danos de ações corretivas do sistema produtivo para adequá-lo às
normas ambientais);
2- Ações indiretas (de coordenação de empresas para apoio no socorro
emergencial, de orientação das organizações locais para cuidados médicos);
3- Apresentação pública de justificativas e propostas de ação (apresentação
de promessas, de justificação de inação por falta de meios, de proposta de
mudança institucional, de argumentos para a irresponsabilização de órgãos públicos
e empreendedores, diluição de evidências e de relações causais).
4- Ações judiciais (instauração de Inquérito Civil; abertura de Ação
Civil Pública; celebração de Termos de Ajustamento de Conduta – TACs- entre
as agências ambientais e o empreendedor, com a mediação do Ministério Público,
Estadual ou Federal).
O TAC compromete o ator que comete irregularidades ambientais a cumprir uma série
de medidas definidas em um cronograma. Dezenas de prefeituras assinaram TACs, em
virtude dos lixões que operam. As grandes empresas estatais e multinacionais em
operação no estado também assinaram TACs. Com a celebração do TAC, o Ministério
Público tende a dar por encerrado o problema, mas a assinatura do documento não
significa necessariamente o cumprimento das exigências. Como as agências
ambientais, com sua estrutura insuficiente, têm dificuldade em exercer seu
poder de fiscalização, os danos infligidos às populações tendem a perdurar
(caso do Zinco no Porto de Sepetiba, Itaguaí, 2002).
Observa-se que para o sucesso das ações de controle ambiental, emitir licenças
não basta. Nos casos de denúncias associadas à mineração, por exemplo,
grande parte dos conflitos têm origem em empreendimentos licenciados que
desobedecem regras de funcionamento ou extrapolam a área de atuação
originalmente estabelecida em na Licença de Operação (em Miguel Pereira, três
dos quatro casos registrados de mineração, ocorridos em 2001 e 2002, são
desse tipo). Os conflitos associados à presença de depósitos de resíduos
licenciados são exemplos de que licenciar apenas não basta: é preciso
fiscalizar.
A institucionalização dos conflitos
Ministério Público Estadual (MPE) e Ministério Público Federal (MPF), quando
acionados em virtude de denúncias, instauram procedimentos administrativos
(PRAD) internos com o intuito de recolher e sistematizar informações que
caracterizem o objeto da denúncia, os possíveis danos causados e os responsáveis
pelos mesmos. Durante a formação do PRAD, Promotores do Estado e Procuradores
da República oficiam a FEEMA ou o IBAMA, requisitando laudos técnicos e dados
especializados sobre os problemas denunciados. Eles pedem às agências
ambientais cópias de licenças e outros documentos pertinentes ao licenciamento
de empreendimentos e atividades, cópias de Relatórios de Impacto Ambiental,
mapas de Unidades de Conservação e realização de vistorias. O Ministério
também oficia prefeituras, requisitando informações sobre concessão de alvarás,
legislação e zoneamento dos municípios.
Se as informações recolhidas pelo MPF ou MPE verificarem ou apontarem para a
existência de irregularidades ambientais, seja na forma de dano ao ambiente ou
a grupos sociais, o Procedimento Administrativo é transformado em Ação Civil
Pública (ACP), instrumento legal que visa punir responsáveis, exigir soluções,
corrigir e mitigar os problemas. Os Procedimentos Administrativos também podem
originar Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) ou ações criminais contra os
responsáveis por crimes ambientais. No entanto, a verificação de possíveis
danos, a adoção de medidas para adequação das atividades mantidas por
empreendedores ou poder público, a responsabilização dos que cometem crimes
ambientais e a mitigação dos impactos sobre os ambientes e comunidades são
por vezes comprometidos por dificuldades surgidas na interlocução e troca de
informações entre agências ambientais, prefeituras e Ministério Público.
Dada a carência de meios nos órgãos públicos, ofícios enviados à FEEMA e
ao IBAMA pelo Ministério Público Estadual ou Federal, durante a composição
dos Procedimentos Administrativos, ou mesmo após a abertura de uma Ação Civil
Pública, costumam não ser atendidos nos prazos estipulados (ver caso de Ocupações
irregulares na Ilha Grande, 2000). Em determinadas ocasiões, as respostas contêm
lacunas que obrigam a expedição de novos documentos pelo Ministério Público.
Uma interlocução mais estreita e ágil entre o poder judiciário e poder público
municipal também faz falta para a adoção de medidas em relação aos
conflitos vividos nas localidades - representantes de prefeituras também deixam
a desejar no respeito aos prazos requeridos para o envio de informações ao
Ministério Público e há casos de administrações que encerram seus mandatos
sem atenderem aos ofícios do MP Estadual ou Federal (casos de ocupações
irregulares na Ilha Grande em 2000; falta de dragagem de canal no centro de Nova
Iguaçu em 2002).
Questionados a este respeito, representantes da FEEMA alegaram que por
dificuldade de estabelecer prioridades, o Ministério Público envia um grande número
de ofícios ao órgão, que não dispõe de estrutura suficiente para atender a
tantos pedidos. O diálogo dificultado entre as instâncias pode contribuir para
o agravamento dos impactos e tornar os processos de mitigação mais custosos e
complicados, acabando por penalizar comunidades e beneficiar os responsáveis
pelas irregularidades ambientais (casos Ingá Mercantil em Itaguaí em 2002 e
CENTRES em Queimados, 1998).
Quando o conflito não encontra o caminho de sua institucionalização, por
outro lado, observa-se a eclosão de episódios violentos, como saque de
equipamentos e materiais de fábricas desativadas e incendiadas sob tiroteio com
a polícia (caso da Cirpress no Rio de Janeiro em 1995), depredação de móveis,
subtração de bombonas, incêndio de materiais, queima de pneus e apedrejamento
de empresas (caso de uma automecânica no Rio em 1994).
A análise dos 251 casos levantados sugere que o incremento da capacidade de se
prevenir e dar tratamento democrático aos conflitos ambientais seria possível
desde que os órgãos públicos fossem fortalecidos e que se intensificasse a
participação da população nos estudos de impacto, no acompanhamento dos
processo de licenciamento e no controle público do respeito às normas
ambientais em vigor.