Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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Reflexão
01/06/2015 (Nº 1) A infância ameaçada de extinção
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A infância ameaçada de extinção

Berenice Gehlen Adams



Hoje eu volto a ser uma menina. Uma menina de uns oito anos. Uma menina esperta, sonhadora, louca pra saber um pouco de tudo. Vejo o mundo, com os meus olhos de adulta, mas com a minha alma de criança. Começo a ver um mundo diferente, um mundo mudado, um mundo cansado.

E o que vejo, então? Eu, agora, como menina, o que faço, o que quero?

Vejo que eu quero me divertir, correr, mexer na terra, tomar banho de rio, pescar, comer laranja do pé, chupar cana, mas percebo que nada disto existe mais, ou está muito distante.

Vejo que eu quero estudar, conhecer as letras, as palavras, desvendar os mistérios dos livros, levar maçã pra professora, brincar de roda no recreio, pular elástico, sapata ou amarelinha, comer um bolo quentinho na volta da escola, na casa de uma colega, fazer um carinho no meu pai, ajudar a minha mãe a secar a louça, arrumar a minha escrivaninha e fazer meus temas da escola. Quero escrever um bilhete carinhoso pra minha professora que me atende sempre que eu preciso dela, levar meu irmão na pracinha depois da aula, e até ir rezar um pouquinho na capela da cidade.

Vejo que quero caminhar pela calçada, falar com o sapateiro da esquina, levar um osso pro cachorro da Dona Tuti, brincar na pracinha, mas está tudo tão mudado. Os balanços, as gangorras, que antes eram distantes, hoje são tudo “grudadinhos”, juntinhos. Nem é preciso mais correr de um brinquedo ao outro, sentindo o vento batendo no rosto. Mesmo se a gente correr, corre-se o risco de cair e se machucar no asfalto, ou cimento. Antes, tinha na pracinha, areia, terra, árvore, plantas. É, o melhor mesmo é não correr.

Vejo com minha alma de criança, mas com olhos de adulta, que a vida mudou, e que a infância, lentamente, passo a passo, perde o seu encanto, a sua magia. Vejo a infância dos meus filhos que não sobem nas árvores atrás de frutas, que não brincam de roda, que não criam seus brinquedos, que nem levam maçã pra professora, aliás, nem levam maçã para merendar, porque fazer isto seria uma ofensa. Comer salgadinho sim é o canal. Algumas bolachas recheadas sempre vêm bem, mas para completar o bom lanche, só mesmo um refrigerante. Imagina se alguém se atreve a levar uma maçã!

Vejo entristecida que o mundo da infância, aos poucos, mas nem tanto, vai perdendo a sua graça, vai perdendo a magia, o colorido, a luz e vai ficando adulto demais. Aos poucos as crianças vão deixando de sentir o cheiro da terra, de sentir o sabor das frutas. Como vão aprender a defender o meio ambiente e para que aprender isto se o que elas mais aprendem é consumir e produzir lixo? Aos poucos elas vão deixando de olhar para o céu pra verem os pássaros livres, para verem os pássaros em gaiolas, tristes enfeites.

Muitas crianças nunca colheram uma fruta do pé. Subir em árvores, nem pensar, de jeito nenhum! Brincar na terra, mas o que é isto? Vai só se sujar, que horror! Terra é sinônimo de sujeira, já notou?

Hoje, lugar de criança é limitado, ficando cada vez menor e mais cheio delas. As salas de aula, apertadas, as pracinhas pequenas, nem dá mais pra andar de bicicleta e na rua é muito perigoso. Vejo que rua não é lugar de criança, a não ser menino e menina de rua, quanta incoerência!

São, hoje, as crianças acorrentadas à cultura massificada, consumista, vazia, e cansada. Tem tanta coisa pra gostar/ou que fazem pra criança gostar, que nem sabem o que escolher direito. Outras nem têm direito de escolher e sabem disto, pois são pobres, sujas e relaxadas. São as crianças abandonadas pela sociedade, pelos diplomados, pelos poderosos, pelos representantes do povo. A que povo representam? O que é povo para eles? Aqueles que lhes dão favores, garantias de coisas, que têm os bolsos cheios?

Vejo que fui privilegiada, que não tive videogame, computador, mas tive um pátio enorme pra explorar, correr, pular, brincar; não tive piscina, mas tive riacho que passava perto da casa de minha avó onde pescava e tomava banho; nem morei em condomínio, mas tinha uma vizinhança cheia de crianças e amigos; não tinha Shopping Center, mas tinha o armazém do seu João, que não tinha tanta coisa como no shopping, mas tinha tudo o que a gente precisava. Tinha espaço, muito espaço, a gente podia andar de pé no chão se quisesse. Hoje, só anda de pé no chão quem não pode comprar um sapato. Nem este pé, sem sapato, pisa na terra, pisa é no asfalto, ou na calçada.

Eu não sei se eu saberia ser criança, se fosse criança hoje. Eu não sei como encararia isto tudo, todo este ambiente e este nosso comportamento de correr o dia inteiro a trabalhar, trabalhar. Não sei como agiria, se todos os dias, ouvisse meu pai dizer: “Agora não, filho, depois!” ou “Hoje não dá minha filha, tenho compromisso!”.

Estamos tecendo um casulo para a infância, que a sufoca, que a anula, que segue o destino traçado pelo adulto, não o destino de crescer e se desenvolver biologicamente, naturalmente, espontaneamente. A infância está sendo cada vez mais artificializada, e na carona vão os sentimentos, a criatividade, o gosto pela vida, o encanto de ser criança. É o progresso, a evolução tecnológica e a modernização atropelando a infância.

Volto a ser uma menina adulta. Uma menina de uns quarenta anos. Uma menina esperta (pelo menos eu acho), sonhadora, louca pra saber um pouco de tudo. Que aprendeu que saber de tudo um pouco, nem é lá tão bom assim. Que quem sabe de tudo um pouco é porque não sabe nada por inteiro. Que aprendeu que saber viver é o mais importante. Que aprendeu que é possível mudar, desde que a gente consiga enxergar a vida com a alma de criança. Que podemos ser carinhosos, contar histórias, cheirar umas flores, ir a um parque e subir numa árvore (isto se o guarda deixar), comer uma fruta, plantar (mesmo em pequenos espaços) caminhar, brincar com nossos filhos, com as nossas crianças.

Aprendi que depende de nós, adultos, não o futuro das crianças, mas o presente destas pequenas criaturas que crescem rodeadas por “fios de alta tensão”. Elas não merecem estes cercados que lhes são impostos em casa, nas escolas, nos shoppings, nas praças, nos parques. Antes que roubemos a palavra infância do dicionário e tenhamos que inventar outro nome para esta fase da criança, vamos devolver a infância para elas!


Ilustrações: Silvana Santos