Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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14/03/2006 (Nº 15) CIDADANIA PLANETÁRIA: UMA LIÇÃO DE COEXISTÊNCIA E CONVIVÊNCIA ATRAVÉS DO COMPARTILHAR
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CIDADANIA PLANETÁRIA: UMA LIÇÃO DE COEXISTÊNCIA E CONVIVÊNCIA ATRAVÉS DO COMPARTILHAR

 

Solange T. de Lima Guimarães (1)

 

No início da década de setenta do século XX, Bárbara Ward e Renés Dubos (1972;1973) na obra “Uma Terra Somente: a preservação de um pequeno planeta”, alertavam-nos sobre as estratégias para a sobrevivência da espécie humana no planeta Terra, no sentido de comprometermo-nos de modo cooperativo através de uma responsabilidade coletiva e efetiva, tendo em vista problemas, riscos e danos passados, presentes e futuros. 

Entretanto, transcorridas três décadas, as questões apresentadas pelos autores respectivas aos diversos problemas internacionais sócio-econômicos, políticos, ecológicos, psicológicos, entre outros, continuam atuais, separando-nos em processos de exclusão e segregação, quanto às alternativas de acesso, oportunidades e possibilidades, em formas de separação sutis ou sofisticadas, tangíveis e intangíveis, perceptíveis ou não, dependendo da visibilidade ou não-visibilidade de suas concretudes ou imaterialidades.

Planos, tratados, acordos e legislações nacionais e internacionais foram neste período discutidos, assinados e ratificados, mas infelizmente não foram interiorizados mediante o desenvolvimento de uma consciência ambiental nos seres humanos, predominando individualismos, fundamentalismos e fanatismos exacerbados, desequilibrados, expressos em fronteiras de coerções e espaços caóticos de extermínios e violências contra a própria espécie humana e seu mundo vivido: guerras interiores e exteriores refletidas nas paisagens da Terra...

Sobre estas perspectivas sombrias e apocalípticas, Ward & Dubos (1972;1973), nos admoestam à necessidade emergencial  de olharmos e reavaliarmos nossas ações, atitudes e condutas muitas vezes alienadas em relação aos graus de interdependência referentes aos outros e ao planeta, bem como ao encadeamento de causas e efeitos.  Apesar do alerta destes autores contar com trinta e três anos desde a publicação dos originais em 1972, a tessitura desta reflexão não perdeu sua atualidade nem seu caráter emergencial como podemos observar nos excertos a seguir:

 

MAS NÃO SOMOS sonâmbulos nem ovelhas.  Se os homens não se deram conta, até agora, do grau de sua interdependência planetária, isso se deve, ao menos em parte, a que esta ainda não existia em forma de fatos claros, precisos, físicos e científicos.  A nova compreensão de nossa condição fundamental também pode tornar-se a compreensão de nossa sobrevivência, que talvez estejamos adquirindo no momento oportuno. (WARD & DUBOS, 1973: 269)

 

(...) Uma estratégia aceitável par ao planeta Terra deve, então, levar explicitamente em conta o fato de que o recurso natural mais ameaçado pela poluição, mais exposto à degradação, mais propenso a sofrer um dano irreversível, não é esta ou aquela espécie; não é esta ou aquela planta ou bioma, ou habitat, nem mesmo a atmosfera livre ou os grandes oceanos.  É o próprio Homem. (WARD & DUBOS, 1973: 273)

 

Na transição do século XX para o XXI, estas palavras ainda ecoam para nós como um pedido de socorro não respondido, em um mundo onde as necessidades de uma consciência de cidadania planetária encontram-se arquitetadas sobre estruturas de processos e movimentos históricos voltados para visões materialistas, sustentadas por valores utilitaristas e consumistas, herança e permanência do pensamento e ideologias da Revolução Industrial do século XIX, que segundo Schweitzer (1959), levaram à ruptura entre o discernimento e a vontade, a razão e a emoção, entre o pensar e o sentir.

Assim, nossas estruturas sócio-econômicas e políticas revelam não só a desagregação e dissociação entre a biosfera, a tecnosfera e a psicosfera, mas também uma profunda crise axiológica, sendo o  limite de tempo para escolhermos entre ações proativas ou reativas no sentido de assegurarmos nossa própria sobrevivência no planeta. (BERG, 2003; MORAIS, 2002)

 

Ao considerarmos as imagens do nosso mundo pós-moderno mas tão marcadas pelos traços de um antigo materialismo mecanicista e tecnicista, observamos dentro e fora de nós a instalação de uma crise de valores nunca experienciada antes, tanto na profundidade do seu desespero como nas ambigüidades de suas angústias: assistimos perplexos a “coisificação” dos seres humanos, pois já não passamos de mercadorias descartáveis em um mundo em globalização (SÁBATO, 1988; MORAIS, 2002).  A vida e seus processos estão revestidos pelos valores de um mercado insensível, tornando-se moedas correntes em um mundo regido pelas leis de um humanismo materialista e considerado civilizado.

 

É este o cenário que temos diante de nós e é nele que precisamos agir proativamente, pois analisando seus contextos sabemos que já não basta desenvolvermos ações reativas diante das conjunturas objetivando construções para um meio ambiente melhor, mas precisamos com urgência educar para que as relações de alteridade (EU-TU) sejam entendidas em suas semelhanças e diferenças, possibilitando não somente o coexistir mas também o conviver, criando a oportunidade de compartilharmos novos conhecimentos e interpretações da Vida e de sua plenitude. (BUBER, 1978; BERG, 2003).     Para Berg (2003: 57) o compartilhar é o caminho para as conexões do conviver e da paz, onde “O pensamento precisa sempre estar ligado ao sentimento, e o sentimento com a ação positiva imediata, onde quer que você esteja e com quer que você esteja”.

 

Neste sentido, Morais (1993:101), fundamentado em Maturana (1992), ao refletir sobre alguns dos aspectos concernentes a estas relações entre pessoas e meio ambiente, e as dimensões da Ecologia e, em especial, da Ecologia da Mente, ou Terceira Ecologia, afirma que: “o necessário, pois, não é que destruamos o mundo que temos, para construirmos um outro ideal; mas apenas entendermos que só teremos de fato o nosso mundo com os outros, e que a razão só atinge seu real valor se mobilizada pelo desejo da convivência.”

 

A busca dos caminhos para o ideal de uma cidadania planetária deve ainda levar em conta as comunidades de conflitos existentes nos dias de hoje, onde a fragilidade das estruturas sócio-econômicas e culturais nos fala de um mundo fragmentado entre os limites das inseguranças e das instabilidades que ameaçam todas as formas de vida, geradas pela efemeridade, volubilidade daquilo que as diferentes comunidades humanas consideram como seus princípios e que causam tantas distorções e contradições perceptivas e interpretativas relacionados às realidades ambientais (EPSTEIN, 2001), considerando-se o pluralismo e a complexidade dos seus códigos de normas sociais.

 

Diante da multiplicidade dos diferentes níveis de realidade ou domínios da existência (EPSTEIN, 2001:68), é mister que estejamos sentindo a responsabilidade de cooperarmos na construção de um mundo melhor onde a vida seja favorecida, abraçando um humanismo dialógico, onde o ser humano seja parte, co-autor e cooperador nos processos de recuperação e manutenção de um equilíbrio ecológico harmônico.  Esta nova atitude não refletirá construções desestabilizadoras, desconexas e decadentes, produtos de uma ilusão e de um equívoco imaturos, mas estará arquitetada por processos interativos estabelecidos por relações de alteridades, reciprocidades e complementaridades, impregnados da profunda espiritualidade/sacralidade que tem delineado a nova visão ecológica , sendo vislumbrada por alguns dos nossos principais educadores, cientistas e filósofos contemporâneos.  No contexto desta visão, os sentimentos de pertinência, de conexidade, de alteridade, de valores e de consciência são  integrados “a partir da perspectiva de nossos relacionamentos uns com os outros, com as gerações futuras e com a teia da vida da qual somos parte” (CAPRA, 2000:26); (GUIMARÃES, 2004; 2005)

 

O desenvolvimento da consciência de uma cidadania planetária passa por momentos distintos embora simultâneos muitas vezes: a renovação de nosso interior e a recuperação de nosso planeta. Também deve ser alicerçado em valores transcendentais, envolvendo perspectivas de reconstrução dos espaços habitados pelos seres humanos, ou seja, da valorização e resgate do sentido de humanização de suas paisagens construídas, dando lugar às utopias mais sagradas e desejadas que permitam o compartilhar não somente dos bens e recursos materiais, mas da dignidade, da lealdade, da tolerância imbuídas na experiência humana de viver na “Terra, substrato e nutriz da vida”.  (DARDEL, 1952).

 

A educação para a consciência de uma cidadania planetária deve ser desenvolvida em seus princípios essenciais, sob a forma de programas de educação para a paz, focalizando valores que promovam a inclusão, a integração das dimensões ecológicas (biosfera, tecnosfera, psicosfera), e sobretudo, o compartilhar, consideradas as diferenças e similaridades das várias regiões geográficas da Terra.   Esta educação e consciência para a conservação do planeta, ao valorizarem uma cultura de interdependência e interatividade ecológica, nos lembrariam de que as fronteiras demarcadas por políticas e nacionalismos individualistas não significam auto-suficiência e que a relação entre humanos e entre o ambiente mais antiga é justamente a da interdependência.

 

Portanto, a educação, a ética e a justiça ecológicas se apresentam como norteadoras destes novos rumos, das transformações  profundas que trazem em seu bojo prenunciando uma nova era de mudanças em nosso mundo vivido a partir de nós  -  um ser que compartilha”. (BERG, 2003: 71)

 

No meio de todos os cenários deteriorados e desestimulantes de um mundo em globalização, os horizontes de uma outra realidade  se encontram delineados, podendo ser contemplados já à luz da dimensão temporal do presente. Não se trata de miragens ou de sonhos sobre utopias.  Mas de um caminho aberto há décadas por visionários e sonhadores que construíram realidades concretas, tangíveis, que ousaram comprometer-se com a Terra e com a Vida: ouviram o chamado em seus corações.  Este mesmo chamado continua ressoando através do coro das muitas vozes que vieram antes de nós, que viveram outras épocas, encorajando-nos a perseverar e a prosseguir neste mesmo caminho.

 

A Vida nos cobrará a vida.  O desenvolvimento da consciência de uma cidadania planetária é um convite para coexistir e conviver, mediante o compartilhar.  Para todos nós, um exercício de esperança e um convite à ação a partir do agora.

 

 

 

Referências Bibliográficas:

 

BERG, M. O Caminho. Rio de Janeiro: Imago,  2003.

 

BUBER, M. Eu e Tu.  São Paulo: Cortez & Moraes, 1978.

 

CAPRA, F. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 2000.

 

DARDEL, Eric. L'Homme et la Terre: nature de la realité geographique. Paris: Presses Universitaires de France, 1952.

 

EPSTEIN, G. A Terapia do Sonho Acordado. Campinas: Livro Pleno, 2001

 

GUIMARÃES, S.T.L. Nas trilhas da qualidade: algumas idéias, visões e conceitos sobre qualidade ambiental e de vida... (no prelo), 2005.

 

GUIMARÃES, Solange T. de L. Dimensões da Percepção e Interpretação do Meio Ambiente: vislumbres e sensibilidades das vivências na natureza, Percepção e Conservação Ambiental: a interdisciplinaridade no estudo da paisagem / OLAM – Ciência & Tecnologia.  Rio Claro: Aleph Engenharia & Consultoria Ambiental Ltda., vol.4, n. 1, abril/2004, pp. 46-64.

 

MATURANA, H. R. El Sentido de lo Humano. Santiago: Hachette, 1992.

 

MORAIS, R. de. Ecologia da Mente. Campinas: Editorial Psy, 1993.

 

MORAIS, R. De. Espiritualidade e Educação. Campinas: Centro Espírita Allan Kardec/Depto. Editorial, 2002.

 

SÁBATO, E.  Homens e Engrenagens.  Campinas: Papirus, 1988.

 

SCHWEITZER, A.  Decadência e Regeneração da Cultura. São Paulo: Melhoramentos, 1959.

 

WARD, B. & DUBOS, R. Uma Terra Somente: a preservação de um pequeno planeta.  São Paulo: EDUSP, 1973.

 

 Esta reflexão é dedicada aos Amigos & Mestres, por ordem de suas passagens em minha vida: Wilson Jacomini, Augusto Takara, Berenice Gehlen Adams, Mónica Ester Shocron; Laura Waisman, Licurgo Nakasu, Regina Celi Ara: preciosas vivências no caminho do compartilhar a vida.

 

(1)     Geógrafa e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, UNESP, campus de Rio Claro. Professora convidada no Curso de Especialização em Educação Ambiental do CRHEA/USP, São Carlos.

Contato: hadra@uol.com.br  ; www.olam.com.br

 

GUIMARÃES, S.T.L.  Cidadania Planetária: uma lição de coexitência e convivência através do compartilhar.  Anais do Simpósio Comemorativo aos 10 Anos do Curso de Especialização em Educação ambiental e Recursos Hídricos, CRHEA/USP, 06 a 08 de julho de 2005, pp. 118-121.

 

Ilustrações: Silvana Santos