Entrevistas
Apresentação: Esta edição da revista
eletrônica Educação Ambiental em Ação tem a honra de apresentar a professora
doutora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e consultora do Ministério
do Meio Ambiente (MMA) Michèle Sato, um referencial nacional e internacional da
Educação Ambiental. Recentemente Michèle lançou o livro "Educação Ambiental -
Pesquisa e Desafios", pela Artmed Editora, organizado por ela em parceria
com Isabel Carvalho. Dispensando maiores detalhes, Michèle se apresenta:
"Sou facilitadora da Rede Mato-Grossense de Educação
Ambiental (REMTEA), professora da Educação da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT) e atuante no movimento ecológico internacional. Casada, com dois
filhos lindos de morrer, tenho um quintal meio abandonado e uma casa sem
estrelas, exceto aquelas que olhamos no céu junto com o clarão do luar. E habita
em meu ser a dualidade da disciplina e da transgressão; da poética e da irônica;
da mediadora e da provocadora".
Vamos conhecer um
pouco mais da sua valiosa experiência através desta
entrevist@:
- Michèle, conte-nos como surgiu o seu
interesse pela Educação Ambiental (EA) e desde quando você se dedica a ela com
tanto fervor. Como foi essa trajetória?
* Acredito ter tido
forte influência de meu pai, um zen budista cuidadoso com a natureza, seja nas
pequeninas vidas, bem como nos sistemas cósmicos que regem o mundo. Suas
palavras incentivaram à bondade humana no cuidado com outras formas de vida. E
que como retornamos à Terra, teríamos que cuidar dela. O respeito e o gosto pela
natureza me conduziram a escolha pela Biologia. Ingressei no mestrado em
oceanografia, e me frustrei durante o projeto Antártida. Fui dar aula em escola
da periferia de São Paulo e me apaixonei - tanto pela educação como pela luta de
inclusão social. Depois fui cair na filosofia para um mestrado na Inglaterra,
fiz uma trajetória inversa no doutorado em Ecologia na UFSCar e sou professora
da Pedagogia na UFMT. Enfim, hoje sou esta metamorfose ambulante sem definição.
Ora filósofa, ora poeta, ora educadora, ora ecologista, ora tudo isso misturado.
E gosto destas múltiplas personalidades, e não abriria mão de nenhuma
delas.
- Como você percebe a Educação Ambiental, de uma forma
ampla e global?
* Um projeto de vida que luta pela democracia
participativa, na busca da inclusão social através da justiça ambiental e
proteção ecológica. Para além de espaços escolarizados, para além de
comunidades, um projeto de construção de uma Nação, chamada Brasil. Acho que não
temos o sentido de brasilidade, dá certo status falar mal dos
políticos, criticar sem reconhecer que o Brasil somos nós, e que de nós depende
o Brasil de nossos sonhos. Morei fora do Brasil durante muito tempo, tanto em
países ditos ricos como pobres. Estou convicta de que aqui é o melhor lugar do
mundo e que a nossa EA made in Brazil é bonita, criativa, crítica e
propositiva.
* A impressão que eu tenho é que as pessoas estão perdendo a
cotidianidade em nome desta tal globalização. Todo ser humano representa um
movimento de diferença. E essa diferença se expressa e se visibiliza no campo da
cultura e também da EA. No V Fórum da REBEA, Carlos Rodrigues Brandão nos dizia
que lia uns 2-3 livros simultaneamente: Capra, Morin, Prigogine. Ele comentava
que faltava chão, ou seja, padecia por algo mais concreto, atitudes mais
cotidianas, que permitissem que ele exercesse sua cidadania. Citando vários
exemplos de coisas simples, destas coisas que as pessoas julgam ser
irrelevantes, mas que tocam nossas vidas tão profundamente, ele finalizou sua
fala: “aprende Morin!”. Vibrei tanto naquela hora... E tenho muita identidade
neste resgate antropológico que o Brandão quis nos convidar. Situamo-nos no
mundo, amplo e global, mas cada qual com sua identidade, jeito e forma de
pensar. Clifford Geertz nos pediria para refletir sobre meras atitudes triviais
perante o mundo. Eu não sou contrária à complexidade e cosmicidade humana, mas
prefiro revelar signos, gestos e um conjunto de expressões que nos confiram mais
sabor na serena forma de viver. Isso não implica, entretanto, que ignore a teia
universal da vida planetária. Adoro Prigogine e acato sua teoria do caos de
forma incondicional. Ordem na desordem, ou harmonia no caos.
-
Quais associações possíveis de serem feitas entre a Educação Ambiental e a
pluralidade cultural?
* Há uma generalização mundial em se medir
qualidade de vida por apenas 3 indicadores: longevidade, PIB e escolaridade. Não
importa se a renda é bem distribuída, ou se meia dúzia de famílias controlam o
poder econômico. O tempo de vida das pessoas localiza-se na qualidade desta
vida, muito além dos anos que ela poderá viver. E a escolaridade não se reduz ao
número de matrículas, nem ao número de escolas, mas na aprendizagem capaz de
ousar transformações. Nem sempre as pessoas bem informadas ou com titulação
tomam as decisões corretas. Há um universo de sabedorias explícito na
pluralidade cultural que deve ser considerado. Para além do IDH, portanto, nós
estamos tentando construir indicadores qualitativos e que estas comunidades nos
digam o que significa viver bem. No conceito de felicidade desta gente, a
espiritualidade é evocada de forma intensa, misturado com símbolos, mitos e
lendas que foram criados num mecanismo de tentar se explicar os fenômenos da
vida. Sem as rígidas normas científicas, são saberes biorregionais pulsantes em
cada cultura. Aqui, o educador não ensina, muito menos conscientiza as pessoas.
Mas formamos uma comunidade dialógica de aprendizagem colaborativa - formamos um
grupo pesquisador com multireferenciais que ultrapassam “disciplinas” (portanto
não é apenas interdisciplinaridade), e que obviamente, são visões que se
confrontam, se chocam e se divorciam nas singularidade de cada sujeito.
Aceitamos as interferências e propomos a mediação pedagógica que possa tornar o
conflito como fator da EA. Se o discurso sobre a proteção à biodiversidade é um
completo consenso, há que se resgatar, também, estas diferenças culturais que
nos situam numa arena de debates sem fim. É bom ressaltar que violências, sejam
simbólicas ou diretas, não são diferenças, mas são mordaças e ditaduras que
devem ser combatidas e denunciadas.
- Para você, qual é a
importância dos trabalhos em rede, para a consolidação da Educação
Ambiental?
* A Era Moderna tem herança da hierarquia, do
autoritarismo e também do “salve-se quem puder”. As organizações sociais
marcadas pela estruturação das redes vêm tentar demolir estes velhos
“paradigmas”. Entretanto, o que seria fácil derrubar conceitualmente, torna-se
um enorme desafio aos movimentos sociais, pois ainda há lutas de poder, talvez
não do rei aos súditos, mas deste microcosmo entre os próprios súditos. Temos
muito que aprender ainda, mas eu acredito que as redes apresentam nossa
militância, nossa paixão, nossa luta generosa em se entregar incondicionalmente
à luta ecológica. Estou convicta de que nossa produção científica da academia e
a formulação das políticas públicas dos governantes são mais consistentes no
diálogo aberto entre todos. E que a sociedade civil tem enorme contribuição ao
processo político de lutas. Sem privilegiar um ou outro segmento, desde que as
redes agregam todos os territórios e identidades, representa, assim, um
laboratório dinâmico de experiências, acertos e erros. É aqui que se coloca o
grande desafio de aceitar as diferenças, sem se permitir violentar ou assistir
passivamente diferentes olhares que se contrapõem. Gostaria de reforçar que não
podemos tomar tudo como diferenças culturais, há aquelas vozes que representam
violências. Estes devem ser denunciados, combatidos e banidos, pois representam
um círculo vicioso do poder concentrado, da iniqüidade social e da degradação
ambiental.
- O que você teria para colocar sobre a proposta de
uma Educação para o Desenvolvimento Sustentável da UNESCO?
*
Tenho tecido críticas ao Desenvolvimento Sustentável (DS) desde a defesa do meu
doutorado (1997). Ancorada na proposição de sociedades sustentáveis, presentes
inclusive nos Tratados da EA, e que representa um viés político de grande
significado ao ecologismo. O contraponto básico é que devemos reinventar novos
parâmetros de vida para além do enfoque economicista expresso na nossa bandeira
nacional “ordem e progresso”. Durante o lançamento da década da educação para o
DS, na América Latina e Caribe, fizemos oposição explícita lançando o Manifesto
pela Educação Ambiental. Com apoio da REBEA, eu e o Mauro Guimarães conseguimos
fazer um “certo barulho”. O que seria proposta brasileira, se alargou
rapidamente, e hoje temos signatários de quase todos os continentes (falta
Oceania) e cerca de mil pessoas do mundo inteiro a favor da identidade da EA. O
número é reduzido, mas eu considero a qualidade destas pessoas. Quem assinou o
manifesto demonstra coragem em ainda lutar contra o forte aparato autoritário,
recusando a fazer parte do passivo “natural”, ainda resiste e não perde a
esperança. Frente aos danos ambientais, muitas vezes me dá a impressão que falta
gente nesta luta e que somos muito poucos. Recolher mil assinaturas, assim, é de
significado qualitativo enorme à tessitura de uma EA mais
política.
- Diante de tantos desafios impostos para a
consolidação desta prática educacional, qual é, deles, para você, o maior
desafio da Educação Ambiental?
* Não acredito no aprisionamento
da EA como uma ilha paradisíaca fora do continente. O Brasil está em crise e o
mundo também. Vivemos um momento histórico da humanidade sem precedentes e a EA
não poderia se furtar de problemas globais. Portanto, nossos desafios são
enormes. No plano específico, acredito que há várias ameaças, desde a ausência
de tempo para flexibilizar currículos e promover formação dos sujeitos, passando
pela ausência de financiamento em projetos comunitários, até o próprio enfoque
desenvolvimentista que acarreta a injustiça ambiental. Como conseqüência, as
assombrosas violências contra o segmento ambientalista que empipocam cá e lá,
ameaçando a vida de pessoas que exatamente lutam por elas. Nossa ação está muito
longe de ser finalizada e não tenho certeza se iremos ganhar na proteção e
justiça ambiental. Entretanto, a esperança continua para que nossos filhos e a
famosa geração futura consigam, minimamente, viver com dignidade.
*
Acredito que os desafios são inerentes às temáticas que cada qual atua no campo
da EA. Geração de lixo, poluição de qualquer tipo, desmatamento, energia
tradicional, usinas hidrelétricas, perda da biodiversidade, emissão de gases que
causam estufa e danificam a camada de ozônio, ausência de formação dos sujeitos,
currículo inflexível, escolas e universidades tradicionais. Governos
insensíveis, segmentos sociais alienados, pobreza e miséria, entre tantos outros
dilemas do mundo que inevitavelmente refletem na EA. Neste exato momento, onde
ultrapasso um momento ruim e histórico de minha própria vida, acredito que a
violência (social, ambiental, individual) seja o maior desafio à
EA.
- Fale-nos um pouco sobre os "sabores" e "dissabores" da
Educação Ambiental.
* Considerando que os dissabores já foram
citados na questão anterior, permito-me a lançar boas tessituras da EA.
Entretanto, o paradoxo se estabelece na imensidão do que acredito que seja EA,
pois não sabemos definir ou escrever algo grandioso em poucas palavras. E quando
conseguimos, fica faltando alguma coisa, porque não se descreve complexidades do
mundo quando estamos no interior dele. Sou uma destas pessoas apaixonadas pela
causa ambiental e por isso mesmo, cometo erros terríveis. Se fosse mais fria,
menos envolvida e menos emocional, talvez a racionalidade pudesse ofertar mais
conceitos. Entretanto, sinto que é esta emoção que torna a EA tão admirável e
significativa na minha vida. É melhor vivê-la do que conceituá-la. Se eu fosse
poeta e me perguntassem qual seria a melhor estação pra poesia, pensaria... Será
no calor do verão sob o céu azul do mar, com um copo gelado de um suco ou fruta
da estação; ou se na florida primavera de aromas e cores que inspiravam a
palavra. Talvez a poesia fosse mais internalizada na beleza do outono das folhas
secas, refletida na solidão purpúrea da alma. Ou, quem sabe, na aridez do frio,
do copo do vinho ao ritmo dança dos corpos cansados pelo sexo na labareda das
chamas da lareira. Mas sendo uma educadora ambiental, a melhor estação da EA é a
poesia.
- Há algo que não perguntei e que você considera
importante de comentar?
* Agradeço a constante atenção e
parabenizo, por mais uma vez, a Revista Eletrônica da Educação Ambiental em
Ação. Também gostaria de dizer que a lista facilitada pela Bere é uma das mais
sensíveis, pois brota da cooperação, da solidariedade e da bondade de seus
participantes. Num mundo grotesco exposto às mentiras, violências e corrupções
de todas as ordens, é muito acalentador ler as mensagens que circulam entre seus
participantes. São manifestações que nos conduzem a refletir que “um outro mundo
é possível”.
- Deixe uma frase, uma palavra, uma poesia ou uma
idéia que você pode compartilhar com os/as leitores/as da revista eletrônica
Educação Ambiental em Ação:
* Não restam dúvidas que a palavra
da EA já foi dita. Há uma tradição dos patrimônios conceituais e práticos dela
inegáveis e um movimento de resistência para que ela continue a sua rota
existencial. Haverá os que duvidam dela, indagando sobre sua utilidade ou poder
de revolução. A EA que compreendo é a forma da minha própria existência, de
respirar pela manhã e contar estrelas pela noite. É meu jeito de viver, querendo
escutar o riso da vida. E é delicioso saber que atitudes triviais e singulares
do meu cotidiano possa ser compartilhados com esta linda comunidade de
aprendizagem. Obrigada pela oportunidade.
Michèle, nós,
Editoras e Colaboradores(as) da revista eletrônica Educação Ambiental em Ação
agradecemos imensamente pela gentileza de conceder-nos esta entrevist@.
Aproveitamos para agradecer pela constante parceria e pelo compartilhamento de
seus saberes com a EA em Ação desde o início. Muito
Obrigada!
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