Estamos sendo lembrados de que somos tão vulneráveis que, se cortarem nosso ar por alguns minutos, a gente morre. - Ailton Krenak
ISSN 1678-0701 · Volume XXI, Número 86 · Março-Maio/2024
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10/09/2018 (Nº 61) UM ENCONTRO COM FILOSOFIAS ORIENTAIS: OUTRAS EPISTEMOLOGIAS PARA SE PENSAR A EDUCAÇÃO AMBIENTAL
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UM ENCONTRO COM FILOSOFIAS ORIENTAIS: OUTRAS EPISTEMOLOGIAS PARA SE PENSAR AEDUCAÇÃO AMBIENTAL

 

Samuel Lopes Pinheiro

Humberto Calloni

RESUMO

            O artigo trata de provocar a nossa reflexão para a compreensão de uma Educação Ambiental que problematize e transcenda os limites da racionalidade Ocidental – sem, contudo, perder sua identidade cultural e historicamente consagrada – incluindo em seus aportes epistemológicos a ciência, os saberes milenares da cultura, igualmente historicamente consagrada da filosofia Oriental. Entendemos que se trata de um projeto utópico viável, pois um aprofundado estudo poderá nos indicar – a par das diferenças culturais - semelhanças de caráter ontológico e gnosiológicos que irradiam um caráter universal na tentativa de se compreender o homem, o conhecimento e o despertar da vida. A Educação Ambiental, sensibilizada pela sabedoria e ciência Oriental perceberá que a divisão Oriente/Ocidente ostentada pelas tradições é um mito que deve ser desconstruído para o bem da humanidade e do próprio Planeta Terra.

Palavras-chave: Educação Ambiental. Oriente/Ocidente. Utopia viável.

 

AN ENCOUNTER WITH ORIENTAL PHILOSOPHIES: OTHER EPISTEMOLOGIES TO THINK ENVIRONMENTAL EDUCATION

ABSTRACT

            This article is a provocation towards our reflection into comprehend an Environmental Education which problematizes and transcends the limits of a Western rationality. Without losing the consagrated and historical cultural identity of the West, including the epistemological approches of Science and the millenary knowledge of East philosophies. We understand that it is a viable utopic project, because a deeper study may indicates – although the cultural diferences – the ontological and gnoseological similarities which spreads a universal character in an effort to understand the man, the knowledge and the awakening of life. The Environmental Education sensibilized by the wisdom and science from the East may realize that the division West/ East maintained by the traditions is a myth that must be deconstructed for the good of humanity and the Earth itself.

Keywords: Environmental Education. East and West. Viable Utopia.

 

 

 

 

Palavras iniciais

Fazer...é a única maneira de mostrar que é possível transformar o mundo.

Eduardo Galeano

Não é para se falar e agir dormindo.

Heráclito

 

Os pensamentos de Eduardo Galeano (1940-2015) e Heráclito (535ª.C.– 475 a.C.) em epígrafe, inauguram este texto. Pode parecer estranho que um filósofo grego do século V a.C. e um escritor contemporâneo são evocados para fundir horizontes que possam traduzir sentidos semelhantes. Passado e presente se fundem e temos a sensação de que o tempo que passa, o tempo cronológico, é restabelecido no anúncio do que ainda restou da arte e do pensamento dos grandes pensadores do longínquo passado com a arte e o pensamento dos que recentemente findaram suas vidas.   Parece-nos ser este o procedimento a que Michel Serres (1930 - ) se refere quando nos convida a compreender o processo educativo que tem por objetivo a formação completa do ser humano: o diálogo sintônico e por vezes inesperado entre os clássicos e as ciências.  Um “terceiro instruído” é o resultado da fusão de horizontes entre os saberes que alimentaram a cultura clássica e os saberes das ciências modernas, ou seja, a formação não fragmentada, não parcializada do homem contemporâneo, ou seja: um sujeito completado pelas ciências (humanas) e ciências particulares, interdisciplinar. A Educação, enquanto formação plena do indivíduo resultaria, destarte, na compreensão voltada para a ação transformadora e eticamente referenciada. É este o sentido privilegiado que gostaríamos de transmitir aos leitores quanto às citações de Galeano e de Heráclito: provocar o despertar do horizonte utópico da Educação Ambiental.

Eis a nossa obsessão, portanto: Afinal, para onde estamos direcionando nossas práticas e em que terrenos epistemológicos nos movemos? Os verbos no infinitivo constantes nos aforismos em epígrafe: “fazer”, “falar” e “agir” propõem ações, como todo verbo. Caberia perguntarmos sobre a natureza das ações, suas mediações, seus fins e destinos últimos. Fazer, falar e agir sugerem atos ilocutórios, onde o falar do falante introduz a intenção de realizar uma determinada ação. Ora, quando miramos o eterno desejo (objetivo) de transformarmos mundo em que vivemos temos que contar com a linguagem, a ação e o modo como isto pode se dar. Neste caso, pensamos, inicialmente, que a transformação do mundo passa pelo discernimento, ao qual nos remete o aforismo de Heráclito, quando afirma da importância de não se estar dormindo, uma vez que a ação, o fazer e a linguagem comumente expressam o nosso estado de vigília.

A que mundo nos referimos quando nos referimos ao mundo e à sua transformação?

Eduardo Galeano, em seu aforismo, refere-se ao mundo da vida, das nossas formas de agir, falar e pensar; da nossa coexistência comum num mundo objetivo, geográfico, planetário. Mas para aludir ao mundo objetivo, cósmico, se quisermos, enquanto ato ilocutório que nos desperta para um quefazer, Galeano presume, necessariamente, outro conceito de mundo, o mundo da subjetividade. Mundos intercambiáveis, isto é, um não existe sem o outro; um pressupõe o Outro. E é a partir da fusão de horizontes entre objetividade e subjetividade que a noção de mundo é a um mesmo tempo de ordem física e espiritual. Em outras palavras, o mundo objetivo, em que a vida e a existência se expressam, constitui e é constituído pelo mundo subjetivo. Assim, quando postulamos a Educação Ambiental como horizonte utópico de transformação do mundo da vida, postulamos uma utopia viável, objetiva, planetária, cujo itinerário “inicia-se” pelo universo subjetivo, espiritual, cultural do ser humano. Em suma, o conceito de mundo deve evocar o conjunto de condições objetivas e subjetivas em que cada indivíduo encontra-se vivenciando sua ambientação local e/ou por extensão sua ambientação global.

À pergunta “Como mudar o mundo, sem mudar a nós mesmos?”, nossos mundos particulares, individuais? Trata-se de uma pergunta de difícil resposta se apostarmos unicamente no tempo cronológico. Por outro lado, trata-se de uma construção em que o indivíduo e a coletividade negociarão as urgências a serem administradas no mundo da vida. É que a ambientação local não se constitui isoladamente da ambientação global. Assim, para um povo que tem conquistado sua liberdade de ação e linguagem, como nas democracias – relativas ou não – as urgências se travarão na resistência contra o retorno da ditadura ou opressão do povo (posto terem conquistado a democracia). Um povo que ainda não conquistou a igualdade, a luta se travará com ênfase na fraternidade. E assim por diante. Mas como construir uma utopia de um mundo fraterno, por exemplo, se esta fraternidade não está no âmago do sujeito? Por isso, acreditamos na importância de mirarmos com afinco para aqueles estudos que investigaram com profundidade o ser humano e talvez aí descubramos a fraternidade e outras virtudes ontológicas nas quais poderemos perceber/vivenciar emergências éticas da humanidade do humano. Daí a justificativa de um encontro com outras epistemologias, no caso as filosofias orientais. Porque estas, em certa medida, abordaram e abordam sobre o ser em perspectivas muitas vezes distintas das concepções ocidentais. E se despertos, com discernimento, plenos do ímpeto de transformação, ao delinearmos nossas ações de caráter socioambiental, pudéssemos intercambiar conhecimentos com o propósito de uma compreensão mais ampla sobre nós mesmos e assim desenhar as perspectivas de ações distintas daquelas que sabidamente deram errado? É assim que percebemos a importância de um encontro com o Oriente, não como um remédio miraculoso para a cura do Ocidente, mas para se pensar e agir despertos. Este é o mote da reflexão que segue.

Na jornada humana pelo entendimento do Ser nos aventuramos em mergulhos da consciência por diferentes cenários ideológicos, doutrinários, teóricos, práticos, bem como uma gama de mitos, deuses, demônios e outras inúmeras possibilidades de comunicação que o homem se utilizou e utiliza para perceber a si mesmo, os outros e o ambiente. Inclusive as filosofias são como um campo de exploração de nossas estruturas cerebrais e de todo aparato do corpo e mente do qual dispomos para nos compreender no mundo e com o mundo, interpretá-lo e nele atuar. Somos como aventureiros de nós mesmos, numa ressignificação constante sobre o ponto que estamos e qual o (re) direcionamento que está sendo tomado.

 

 

 Oriente-ocidente, Ocidente-oriente

Edgar Morin (2011, p.27) expõe sobre uma “crise da alma, do espírito” que gera um apelo do Ocidente em procurar seus remédios no Oriente.  Talvez esta busca esteja relacionada a uma crise da modernidade ou a uma desilusão; um sentido de vazio que a materialidade retumba no interior da sociedade com a as promessas não cumpridas de progresso e felicidade. Percebemos a importância de se mirar com sabedoria para os remédios do Oriente, mas sem nos apegarmos a fórmulas mágicas ou deslumbramentos com autoenganos.  Na medida que estas pontes de ordem reflexiva e comportamental entre Oriente e Ocidente se estabelecem, ao mesmo tempo que se solidificam alguns entrelaçamentos culturais, há também os esvaziamentos de discurso e as deturpações de saberes. É o próprio movimento que a complexidade reconhece, onde forças de coesão e repulsão estão a operar ao mesmo tempo, em tensão e disputa ou, como prefere Morin, entre ordem-desordem-interação-organização. Forças que são agregadoras e de manutenção e forças que são de separação e destruição (degradação). Cabe-nos aqui discernirmos com lucidez por quais práticas optarmos.  De qualquer maneira, acreditamos que é necessário aprofundarmos a comunicação com o Oriente com discernimento. É justamente este concurso entre articulação e integração o objeto da nossa próxima reflexão.

 O Oriente como Sul Epistemológico

Edward Said, no âmbito dos estudos culturais, já nos anos de 1970 denunciava sobre o sentido de “colonialidade” do termo Oriente. O autor investiga, em seus estudos, o termo Oriente como uma invenção do Ocidente. 

O Orientalismo ajudou e foi ajudado por pressões culturais gerais que tendiam a tornar mais rígido o senso de diferença entre as regiões européia e asiática do mundo. A minha afirmação é que o Orientalismo é, no fundamental, uma doutrina política, imposta ao Oriente, porque esse era mais fraco que o Ocidente, que elidia a diferença do Oriente com a sua fraqueza (SAID, 2007: 277).

Neste sentido, o presente trabalho busca, criticamente, sair deste posicionamento etnocêntrico ao clamar muito mais pela relação entre Ocidente e Oriente do que por sua separação em termos ideológicos e políticos. Para isso lembremo-nos aqui a expressão “Epistemologias do Sul” cunhado por Boaventura de Souza Santos, reconhecido sociólogo português, que sugere o diálogo do Sul geopolítico do mundo para pensar seus próprios mecanismos epistemológicos caminhando de uma colonialidade a uma descolonialidade.

Boaventura de Souza Santos (2013) traz a imagem de uma linha abissal que separa Oriente e Ocidente em dois universos distintos: “deste lado da linha” e os “do outro lado da linha”. A divisão é de tal ordem que tem ocasionado a invisibilidade, a inexistência e a incompreensão.

Inspirados em Boaventura, propomos o Oriente como “Sul epistemológico” para o trabalho utópico de definhamento da necessidade do uso de termos que sugerem separação. Na verdade, os termos não são o alvo, porque os termos têm seu trabalho lingüístico, mas sim as próprias bases epistemológicas que alimentaram as separações.

 Filosofias Orientais

É inegável que, em grande parte, desconhecemos a cultura, a história e toda a produção intelectual, científica e artística do Oriente. O subtítulo Filosofias Orientais, bem poderia ser substituído por Filosofias ou, ainda, Filosofias de toda a humanidade, porque de fato o são. E oxalá possam ser intercambiadas, apreendidas e aprendidas não de forma a gerar mais um sentimento de colonialidade de saber ou poder, aumentando ainda mais o abismo operado pelas fragmentações, mas, ao contrário, que possam gerar emergências epistemológicas e avanços para patamares de conhecimento de realidades e da existência de toda humanidade. A seguir adentraremos no estudo em duas filosofias: o Vedanta e o Budismo.

O Vedanta é a tradição filosófica de acurado trabalho intelectual que dá corpo uma variedade de linhagens místicas indianas. Baseia-se nos Upanishads e em produções literárias posteriores que continuam a argumentação nos mesmos termos de um conceito de Brahman, que é não pessoal e isento de qualquer conteúdo mitológico (CAPRA,2011: 74).

Shankaracarya é um dos pensadores da escola vedantina do século VIII d.C. que reitera o conteúdo não dual da experiência da vida. Ele é um dos autores mais utilizados do Vedanta e, por isso, muitas vezes, no Ocidente, ao Vedanta é atribuído o título de não dualista ou advaita (não dual em sânscrito). Diz-se nestas tradições que o Advaita, a não dualidade, não é o objetivo do Vedanta, mas apenas o reconhecimento da natureza do Ser ao longo do impregnar-se do estudo prático e teórico. Dizer que o Vedanta é Advaita é quase como uma redundância de termos, pois o Vedanta pressupõe Advaita, a não dualidade.

Supõe-se que a trajetória de vida de Shankara, ou Shankaracarya, tenha durado cerca de trinta e dois anos. Ainda muito jovem, retirou-se na floresta e foi discípulo do sábio Govinda. Mais tarde, peregrinou por toda a Índia, travando discussões filosóficas com outros pensadores da época e espalhando sua concepção de não-dualismo. Escreveu comentário acerca de Brahma-sutra, Bhagavad Gita e as Upanisad. Assim como também deixou uma obra intitulada Vivekchudamani, ou traduzida como a Jóia do Discernimento em português.

Para o professor e jornalista José Tadeu Arantes (2007, p.71), interessado em temas filosóficos e espirituais de diferentes regiões do mundo, a filosofia não dual de Shankaracarya constitui poderoso remédio para a fragmentação e a ilusão da separação, ou seja, as grandes doenças do mundo contemporâneo. Para Shankara, de acordo com Arantes (2007): “deuses, demônios, homens, animais, vegetais, minerais, etc, são entendidos como manifestações da própria divindade”. Deste ponto de vista, não existiria nada neste mundo e nos outros, que não seja sagrado.

Neste ponto de discussão, gostariaríamos de incluir a noção do sagrado como constituinte inerente do ser humano, pois muitas destas filosofias orientais apresentam características de espiritualidade, embora não sejam religiões. Contudo, a complexidade do conceito nos levaria a um desdobramento considerável, devido suas inúmeras acepções.

De qualquer forma, o sagrado, neste ponto é discussão, é lembrado por ser deveras urgente para se pensar o humano. Não o sagrado referente a uma determinada religião, seita ou dogma, mas o sentido de sagrado que perpassa o ser humano em suas múltiplas buscas de conhecimento. É Umberto Galimberti (1942- ) quem destaca que:

Além da leitura religiosa, o sagrado recebe diversas interpretações antropológicas e psicológicas, por não ser apenas externo, mas também interno ao homem, como seu fundamento inconsciente, do qual um dia a consciência se emancipou e tornou autônoma, sem contudo suprimir o cenário enigmático e obscuro de sua origem (GALIMBERTI, 2003: 12).

            Ou ainda, o que Mircea Eliade, em o Sagrado e o Profano, coloca acerca do sagrado. Eliade aproxima o entendimento de sagrado de uma experiência hierofante, o que já traz a etimologia da palavra hierofania – que quer dizer: algo de sagrado se nos mostra. Podemos assim através deste sentido de hierofania, sacralizar o cotidiano, tornando singelas experiências diárias em atos hierofantes.

Poderia dizer-se que a história das religiões – desde as mais primitivas as mais elaboradas – é constituída de um número considerável de hierofanias – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra, ou uma árvore (ELIADE, 1990: 25).

            Para André Laborde o conceito de Sagrado tem relevância para o campo da Educação ambiental. Este autor conecta a dimensão onírica, por meio dos sonhos humanos, com o autoconhecimento e o sentido de noosfera em Edgar Morin. Ligações estas que podem auxiliar o indivíduo no trato com o Outro, em todas suas relações socioambientais (LABORDE, 2008: 70)

Swami Sivananda (1887- 1963), reconhecido propagador do Vedanta na contemporaneidade destaca a universalidade da filosofia Vedanta. Diz que esta filosofia é universal, de toda a humanidade e significa a identidade de um para com toda a humanidade. Posiciona todos os seres em um aparentamento comum, compreendendo a diversidade com tolerância e respeito. Inclusive Sivananda repetia muito a frase “unidade na diversidade”, como um tema a ser relembrado frequentemente. Ainda fala também da dificuldade de se praticar uma filosofia como esta, pois muitos teorizam sobre como é reconhecer o outro como extensão de seu próprio ser, mas de fato vivenciar isto no cotidiano possui muitos obstáculos, porém possíveis de serem transpostos. 

A palavra Buda vem do sânscrito, buddah, e está associado a um “entendimento de desperto”. O Buda histórico a que normalmente nos referimos, foi Sidarta Gautama, que viveu na Índia na metade do século VI a.C. Era um príncipe da dinastia Sakya que abandonou secretamente o reino de seu pai e teria se dedicado a práticas de austeridades e renúncias durante muitos anos até entrar num estado de iluminação. Após ter atingido “este estado” passa a compartilhar o que havia experimentado e, assim, formaram-se duas grandes vertentes do budismo chamadas Hinayana e Mahayana. A segunda é a vertente que mais se espalhou por outros países da Ásia e também para o resto do mundo.

Ambas as linhas abordam as chamadas “Quatro Verdades Nobres”, que teriam sido expressas por Buda. À semelhança de um médico, no início é identificada a causa da doença da humanidade, após a afirmação de que a doença pode ser curada e, por fim, a prescrição do remédio. (CAPRA, 2011: 79)

De forma resumida, segundo a filosofia budista, a característica mais marcante da condição humana é o sofrimento devido à dificuldade de compreender a natureza impermanente e transitória da vida. A causa do sofrimento estaria ligada aos apegos à ilusão (maya) e a um estado de ignorância (avidya).  Na tentativa de nos apegarmos àquilo que é impermanente, criamos armadilhas conosco mesmos por um processo de causa e efeito (karma), alimentando o círculo vicioso de ações e novas ações (samsara).

 Ainda segundo o budismo, seria possível transcender aos círculos viciosos (samsara), mas, para isso, haveria a necessidade de um autodesenvolvimento. Isto se dá através do conhecimento correto (expressão do budismo), tendo a noção da situação humana e adotar o caminho do meio entre os extremos, o que nos levaria a um estado de comunhão plena ou êxtase (nirvana nos termos do budismo).

As duas perspectivas abordadas até aqui, a Filosofia Vedanta e o Budismo são consideradas como pertencentes ao grupo de filosofias indianas. A primeira estando entre as seis escolas filosóficas ditas ortodoxas e a segunda, não ortodoxa. E por ortodoxa se diz aquelas linhas filosóficas que reconhecem a pertinência da leitura dosVedas, e por não- ortodoxas as que não reconhecem. 

 Filosofias Orientais e Complexidade

Edgar Morin expressa sua opinião acerca dos polos extremos chamados samsara e nirvana, dizendo que são como polos opostos da mesma coisa (MORIN, 2014: 36). E assim o é também para Buda e o Budismo, que encara a doutrina como uma ferramenta temporária para se atravessar o rio da vida. Em uma história relatada em Majjihima-Nikaya, Buda compara a doutrina com uma canoa que quando se chega a outra margem do rio deve ser abandonada (ZIMMER, 2008: 344-345).

Esta imagem de um rio que deve ser atravessado de uma margem a outra, utilizando-se de uma canoa para isso, como que em representação de que na margem de cá está o lado da ignorância e ilusão; do outro está a iluminação. A canoa é a doutrina com suas austeridades, disciplinas e demais ritualísticas. Esta imagem é da dualidade, as margens do rio e a canoa são importantes para aquele que está no processo de cruzar o rio, mas uma vez cruzado já não há mais canoa, nem rio, nem margem.

 Em última análise, não há nem samsara, nem nirvana. O nirvana só existe quando vinculado aos pares de opostos, no seu caso o samsara. A dualidade aqui se funde num horizonte de “unidualidade” (Morin), uma vez que ambos são distintos e complementares, duas faces de um mesmo processo: a vida é samsara e nirvana ao mesmo tempo.

Participamos da ideia de que dualidade e unidade estão ao mesmo tempo operando na vida. Assim como samsara e nirvana, assim como ignorância e iluminação, como forças de agregação e forças de destruição. A emergência de um novo pensamento passa por conceber a teia de complexidade da vida e buscar o entendimento sobre esses funcionamentos para abranger uma amplidão do conhecimento.

Entendemos que a busca do pensamento está situada no paradoxo dos infinitos universos dentro dos finitos processos da vida. Num processo dialógico entre os pares de opostos, um encontrando-se no âmago do outro. O infinito no finito, o ser interior e o ser exterior. O micro no macrocosmos e vice-versa. Concebemos o “experimento vida”, como o que está no limiar entre os pares de opostos da realidade, como uma membrana intermediária, entre o que está dentro e o que está fora, entre a consciência individual e a consciência planetária, a ambientação local e global.

Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano, fala de uma ciência rumo à consciência, ou seja, uma ciência que desperte os sentidos para os estados internos dos sujeitos, abrangendo assim também a investigação subjetiva. Isto é o que as tradições contemplativas têm enfatizado historicamente (DALAI LAMA, 2006). Contrário ao que a ciência tradicional Ocidental até então tem se preocupado, ou seja o caráter objetivo da realidade. Creio que seja importante a investigação tanto subjetiva quanto objetiva da realidade, englobando duas esferas de percepção, que são ao mesmo tempo distintas, antagônicas, concorrentes e complementares como nos ensina Morin.

            Em complemento, é ainda Dalai Lama (2006) quem expressa a tríade exposta pelos termos ciência, espiritualidade e humanidade. Argumenta a favor de um reconhecimento por parte da ciência de que o conhecimento científico não é o único prisma de conhecimento da realidade, e fechar este conhecimento apenas ao científico seria fechar ou reduzir a uma única esfera de apreensão da realidade. A espiritualidade deveria abrir-se para a ciência, assim como a ciência para a espiritualidade. Com efeito, Basarab Nicolescu tece uma crítica severa ao cientificismo ao constatar que:

A objetividade, instituída como critério supremo de verdade, teve uma conseqüência inevitável: a transformação do sujeito em objeto. A morte do homem, que anuncia tantas outras mortes, é o preço a pagar por um conhecimento objetivo. O ser humano torna-se objeto: objeto da exploração do homem pelo homem, objeto de experiências de ideologias que se anunciam científicas (...). (NICOLESCU, 1999: 21)

            Reduzir ou simplificar o conhecimento ao conhecimento científico trouxe consigo o alto custo da “atrofia do ser interior”, pois cada vez sabemos mais e mais do que somos feitos e menos compreendemos quem somos, assevera Nicolescu (NICOLESCU, 1999).

 Intercruzamento com a epistemologia ambiental

O novo na epistemologia ambiental, entre as diferentes fragmentações que se verificam, como os pares de opostos da dualidade, estaria justamente na percepção da complexidade do pensamento de que a parte está no todo, como o todo está na parte.

Nesta perspectiva, o sujeito com o corpo e seu ser inteiro percebe que é manifestação do global. Que o trabalho de emancipação de si mesmo é também um trabalho de emancipação do outro. Que o trabalho de crescimento ôntico do outro é também o seu. Os sistemas se interconectam numa retroalimentação em rede, onde as partes abastecem o todo, assim como o todo o faz as partes. Nisto, certamente as filosofias apontadas, do Vedanta e Budismo auxiliam nesta busca pelo entendimento do ser humano.

Quando esse sentimento de pertencimento de fato desponta no âmago do sujeito, ele passa a sentir um compromisso em uníssono com toda a rede da vida, porque todas as partes estão num sistema interdependente, no qual o ser humano é parte integrante. Ser humano e natureza possuem suas especificidades, mas são aspectos da vida, um não anula o outro, mas se complementam em suas extensões.  Desta percepção complexa ecoam os sentidos éticos e de solidariedade que auxiliam no processo de construção da política humana, imbuído com as características da transparência, democracia e respeito mútuo.

Na união do êxtase relatada anteriormente no hatha-yoga-pradipika existe ao mesmo tempo a união de si consigo mesmo que é também a união de si com o outro. Para a Educação Ambiental este esforço de reconhecimento do Outro dá um impulso para o deslocar dos paradigmas estabelecidos nas centralidades de visão, porque expande o sentido ético pautado em relações de interesse para o de corresponsabilidade e solidariedade (MARIOTTI, 2000), contrapondo a cultura da indiferença nas relações e da inércia política desatenta com o socioambiental.

A esperança é um estado de espera, de expectativa; mas não a do expectador que olha contemplativamente o mundo, mas daquele que espera atuando para a realização do esperado. Não é a espera otimista do porvir, mas a espera ativa que mobiliza e precipita o advento do desejado. Só a esperança ativa preenche a vida da vontade de viver de onde surgem as ideias que animam o mundo, que transformam a potência do real em um futuro sustentável (LEFF, 2010: 235).

            Entendo assim a Educação ambiental como campo propício às pedagogias que perseguem as pulsões da vida, no encontro com o outro na restauração dos sentidos do ser.  Reconhece a crise civilizatória atual e se dispõe na aventura da construção de novos sentidos de ser, contra a desesperança e o fatalismo de um abismo como destino inevitável. Assim como esta espera não é meramente expectativa, mas repleta de ação.

Com isso, o intuito desta imagem de unidade na dualidade não é para o esvaziamento de sentido da individualidade, mas para um reconhecimento do outro no processo subjetivo. Não se quer costurar à força uma totalidade abrangente idealizada, mas estimular a extensão da vida do sujeito na vida de outrem. Como uma imagem utópica que alimente os sentidos de solidariedade.

A transcendência para um futuro sustentável não aparece como a retotalização do mundo numa consciência emergente, com a finalidade do uno, mas com a fecundidade do mundo a partir da disjunção do ser e do encontro com o outro. [...] A complexidade ambiental gera o inédito no encontro com o Outro, no entrelaçamento de seres diferentes e na diversificação de identidades culturais. (LEFF, 2012: 64)

Isto que Leff (2012) coloca traduz sobre a perspectiva de uma epistemologia ambiental. Ela está pautada na geração do novo a partir da outridade e do diálogo de saberes. Reabrigando o conhecimento dos saberes que estavam excluídos do círculo de racionalidade das ciências, como as referidas filosofias do texto.

 

Palavras Finais

Filosofia Vedanta e Budismo, assim como Complexidade e Epistemologia Ambiental perpassaram por interesses próximos ao longo do texto. De alguma forma tentaram apagar um pouco das linhas abissais de separação entre o Oriente e o Ocidente, apontando a preocupação com o Outro, através do sentido de não dualidade. A complementaridade que está ocorrendo mesmo entre os pares de opostos, aparece como auxílio da visualização das invisibilidades epistemológicas do Sul, agora também oriental.

As utopias em Educação Ambiental se renovam e convidam para as perspectivas de deslocamento das centralidades de saber para pluralidade que dialoga e que busca construções epistemológicas distintas daquilo que se firmou historicamente como convenção. Daí que os apelos ilocutórios de “agir”, “falar” e “fazer” constituem os nossos horizontes de reflexão e ação apontados para um projeto utópico viável de reconhecimento do Outro (próximo ou distante) como membro de uma comunidade terrena numa linguagem de comum entendimento assentada sobre o sentimento de pertencimento, de solidariedade e de fraternidade.

 A Educação Ambiental não se limita a meras ações performativas, ainda que importantes e necessárias, para a reeducação da nossa espécie para com o meio ambiente ecossistêmico e social. Em realidade, o seu desiderato maior consiste na construção de uma ética local e universal que possibilite a maioridade da consciência humana em relação aos seus pares e no respeito inegociável das demais espécies que por direito habitam este Planeta.

Muitas revoluções ocorreram ao longo de séculos, mas nenhuma teve como objetivo revolucionar o pensamento redutor, simplificador. A Educação Ambiental tem um encontro marcado com a “trans-forma-ação” do indivíduo-sujeito através dos seus mecanismos de educabilidade ambiental. E isto porque toda a revolução inicia no microcosmo do indivíduo e irradia-se e concretiza-se em nível sociocultural. É por isso também que o conhecimento milenar da filosofia Oriental nos faculta compreender identidades de propósitos humanitários que foram subsumidas por alfândegas ideológicas de diferentes matizes. Caberia à Educação Ambiental “encharcar-se” (o conceito é de Freire) da filosofia Oriental para nela melhor compreender formas de ações transformadoras do pensamento redutor a um pensamento de caráter complexo, queremos dizer, uno e diverso ao mesmo tempo. Mas para esse ambicionado horizonte é preciso “fazer” acontecer, como diria Eduardo Galeano. Fica o desafio a todos nós, educadores ambientais.

 

 

Referências

CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Um paralelo entre a Física Moderna e o Misticismo Oriental. 29º edição. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2011.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Lisboa: Edição Livros do brasil, 1990.

GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado.São Paulo:Paulus, 2003.

 

LABORDE, André Luiz Portanova. Os Sons do Oriente: o conceito de autoconhecimento e sua contribuição para a Educação Ambiental, um estudo sobre a filosofia Hare Krishna. Rio Grande -RS: dissertação de mestrado PPGEA/ FURG, 2008.

 

LEFF, Enrique. Aventuras da Epistemologia Ambiental: da articulação das ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Editora Cortez, 2012.

LEFF, Enrique. Discursos Sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010.

DALAI LAMA. O universo em um átomo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: complexidade, política e solidariedade. 3ª edição. São Paulo: Editora Palas Athena, 2000.

NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.

MORIN, Edgar. Rumo ao Abismo? : ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

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SOUZA SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Souza e MENESES, Maria Paula (Orgs.) Epistemologias do Sul.São Paulo: Cortez, 2010.

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Ilustrações: Silvana Santos